Ainda aproveitando o segundo domingo de agosto, ontem, onde comercialmente comemora-se o dia dos pais, trago uma reflexão, talvez na contramão para alguns leitores, mas fortemente presente nos dias atuais: como deve ser a relação pais e filhos? Muito antes, há mais de trinta anos, Neimar de Barros nos convidava a esta reflexão, conforme a transcrição de seu poema abaixo.
“Não Tenho Tempo
Sabe meu filho,
Até hoje não tive tempo para brincar com você.
Arranjei tempo para tudo,
Menos para ver você crescer.
Nunca joguei dominó, dama, xadrez ou batalha naval com você.
Percebo que você me rodeia,
Mas sabe, sou muito importante e não tenho tempo…
Sou importante para números, convites sociais,
Uma série de compromissos inadiáveis…
E largar tudo isso para sentar no chão com você…
Não, não tenho tempo !
Um dia você veio com o caderno da escola para o meu lado,
Não liguei, continuei lendo jornal.
Afinal, os problemas internacionais
São mais sérios que os da minha casa.
Nunca vi seu boletim nem sei quem é sua professora,
Não sei nem qual foi sua primeira palavra,
Também, você entende… não tenho tempo…
De que adianta saber as mínimas coisas de você
Se eu tenho outras grandes coisas a saber?
Puxa, como você cresceu!
Você já passou da minha cintura. Está alto!
Eu não havia reparado isso.
Aliás, não reparo quase nada, minha vida é corrida,
E quando tenho tempo, prefiro usá-lo lá fora.
E se uso aqui, perco-me calado diante da TV,
Porque a TV é importante e me informa muito…
Sabe, meu filho…
A última vez que tive tempo para você, foi numa cama,
Quando o fizemos!
Sei que você se queixa,
Que você sente falta de uma palavra,
De uma pergunta minha,
De um corre-corre,
De um chute na sua bola.
Mas eu não tenho tempo…
Sei que você sente falta do abraço e do riso,
Do andar-a-pé até a padaria para comprar guaraná,
Do andar-a-pé até o jornaleiro para comprar “Pato Donald”,
Mas sabe, há quanto tempo não ando a pé na rua?
Não tenho tempo…
Mas você entende, sou um homem importante,
Tenho que dar atenção a muita gente,
Dependo delas… Filho, você não entende de comércio…!
Na realidade, sou um homem sem tempo!
Sei que você fica chateado,
Porque as poucas vezes que falamos é monólogo, só eu falo.
E noventa e nove por cento é bronca:
Quero silêncio, quero sossego!
E você tem a péssima mania de vir correndo sobre a gente,
Você tem mania de querer pular nos braços dos outros…
Filho, não tenho tempo para abraçá-lo,
Não tenho tempo para ficar com papo-furado com criança.
Filho,
O que você entende de computador, comunicação, cibernética,
Racionalismo?
Você sabe quem é Marcuse, Mac Luan?
Como é que vou parar para conversar com você?
Sabe filho,
Não tenho tempo, mas o pior de tudo,
O pior de tudo é que…
Se você morresse agora, já, neste instante,
Eu ficaria com um peso na consciência
Porque até hoje
Não arrumei tempo para brincar com você,
E na outra vida, por certo,
Deus não terá tempo de me deixar, pelo menos , vê-lo!”
No século passado o escritor já nos inquietava. Hoje, filhos encontram justificativas fúteis para não estarem com os pais, pais põem filhos oito horas na escola e até 24 horas em hotelzinho com o mesmo pretexto, “não tenho tempo”. Diálogo, cumplicidade, compartilhamento de emoções, respeito a cada individualidade, compreensão no exercício de valores passados e presentes, gratidão, acolhimento facilitam a convivência prazerosa. Muitos culpam a “falta de tempo” como rude justificativa.
Na relação pais e filhos é preciso cada vez mais ter tempo, estar juntos, porque na hora que ela se tornar saudade, ficará impossível ser reconstituída nos moldes do que pretenderá eventuais arrependidos. Não existe falta de tempo, existe sim, questão de vontade, preguiça ou de prioridade, tema refletido por muitos estudiosos, dentre eles, o filósofo Mario Sergio Cortella. O que o poeta chamava à atenção no século XX está cada vez mais turbinado no século XXI. Culpa nossa de cada dia.
(*) Valtênio Paes de Oliveira colabora quinzenalmente, às segundas-feiras. Ele é professor, advogado, especialista em educação, doutor em Ciências Jurídicas, autor de A LDBEN Comentada -Redes Editora, Derecho Educacional en el Mercosur- Editorial Dunken e Diálogos em 1970- J Andrade.