Na origem das palavras, privilégio vem do latim privilegium.ii. Vantagem atribuída a uma pessoa e/ou grupo de pessoas em detrimento dos demais;). Já corrupção vem do latim corrumpere, “destruir, estragar”, quebrar, arrebentar”. Parecem diferentes, mas têm semelhanças. A prática da primeira tem base legal. A segunda esconde-se na ilegalidade, porém ambas têm sentidos danosos e corroem o aperfeiçoamento da democracia.
Desde Clístenes (Atenas, 565 a.C. – 492 a.C.), político grego considerado um dos pais da democracia, até o século XXI se busca seu aperfeiçoamento. Nos dias atuais esta forma de governo merece coragem radical para sua adequação à contemporaneidade sob pena de sê-la equiparada a qualquer outra forma de governo. Segundo pesquisa publicada pelo Data- Folha de 05/10/2018, “69% dos brasileiros acreditam que a democracia é sempre melhor do que qualquer outra forma de governo, contra 12% que acham que a ditadura é melhor em certas circunstâncias. Para 13%, tanto faz se o governo é uma democracia ou uma ditadura”. Eis um alerta!
Os países no século XXI passam por crises em seus modelos tidos como democráticos. O povo cada vez reage se manifestando pela insatisfação com os estilos atuais de gestão tida como democrática. Tal reação popular resulta em retrocessos ou avanços momentâneos. Veja em 2019 a Bolívia, França, EUA, Inglaterra, Argélia, Irã, Hong Kong, Chile, Haiti, Equador, Venezuela, Argélia, Sudão, Hong Kong, Zimbábue, República Tcheca, Porto Rico, Espanha, França, Iraque, Irã, Líbano, África do Sul, Índia com manifestações populares eclodindo nas ruas, assustando democráticos à moda antiga. O que está acontecendo? Foi de repente? Quais as causas?
Como consequência do uso de privilégios, da prática da corrupção e de modelos econômicos conservadores, a desigualdade social cresce assustadoramente no Brasil e no planeta. Em alguns países como Abdelaziz Bouteflika na Argélia, Omar al-Bashir, no Iraque, Porto Rico e no Líbano renunciaram a planos de se manter no poder.
Importante analisar outro ingrediente, a crescente desigualdade socioeconômica. O número de milionários no mundo quase dobrou de 2010 para 2019″. As desigualdades persistem”, diz o secretário-geral da ONU. A década termina com uma persistência da concentração de riqueza no mundo”. Má gestão levou a maior desigualdade”, diz presidente do Insper”
A população frustrada, face à desigualdade social, corrupção e privilégios aumenta a desconfiança nas ações dos gestores públicos. Governantes surdos diante dos apelos da sociedade não se propõem a uma ressignificação da gestão abolindo privilégios, extirpando a corrupção e reduzindo a desigualdade.
Aventureiros se elegem com sentimento nacionalista-conservador numa época cada vez mais globalizada nas comunicações e na economia. Em outros países como no Chile, o governo submeteu-se à reformulação da própria constituição. O que era um “modelo” para a América Latina ruiu ante a distância entre ricos e miseráveis. Surge o voto de protesto porque os candidatos não aperfeiçoaram ideias democráticas. O velho estilo da democracia ruiu. Para romper com o voto de protesto o candidato precisa propor novos caminhos contra a corrupção, desigualdade social e privilégios. Senão a ira de muitos eleitores será sempre protestar.
Setenta por cento da população mundial vive em países onde a desigualdade social aumenta. Conforme as Nações Unidas “a desigualdade de renda está em alta, já que os 10% mais ricos da população mundial ganham quase 40% da renda total”. Da mesma fonte, 82% de toda a riqueza criada em 2017 foi para a parcela de 1% mais privilegiada. Para o secretário-geral da ONU, Antônio Guterrez, “as desigualdades persistem”. 262 milhões de crianças não vão ainda para a escola e 10 mil pessoas morrem por dia por falta de acesso à saúde. Nos países ricos, 87% da população tem acesso à internet. Mas nos países mais pobres, a taxa é de apenas 19%.
Elite econômica
Conforme Jamil Chade, colunista do UOL em 31/12/2019 “em 2018, 26 pessoas controlavam o mesmo volume de riqueza que 3,8 bilhões de pessoas que formam a parcela mais pobre do mundo. Metade da população mundial vive com menos de US$ 5,5 ao dia. Até a elite econômica mundial em Davos passou a admitir nesta década que a desigualdade é uma ameaça. Desde 2017 colocara a desigualdade como os maiores riscos para a economia global e alertava que tal concentração levaria à vitória de Donald Trump e a votação do Brexit”. No Brasil temos muitos seguidores. Na Europa, “somente Bélgica, Noruega, Polônia e Suécia conseguiram reduzir a desigualdade”.
A fronteira entre a miséria e luxo é tênue como condomínio particular no Lago Michelle e da favela de Masiphumelele, na Cidade do Cabo (África do Sul) Favela do Jardim Colombo, no bairro do Morumbi, em São Paulo. Em Sergipe tem 42,8% da população em situação de pobreza segundo a Síntese de Indicadores Sociais (SIS), divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No Brasil, a proporção de pessoas pobres era de 25,7% da população em 2016 e subiu para 26,5%, em 2017, acentuando-se em 2019. Relatório da Desigualdade Global, da Escola de Economia de Paris afirma que a concentração de renda no Brasil é ainda maior: o 1% mais rico se apropria de 28,3% dos rendimentos brutos totais. Somos o país democrático mais desigual do mundo. É muita miséria para poucos ricos. Urge sensibilidade moral e social dos governantes.
A maioria dos milionários e bilionários não pensa nem age para combater a desigualdade e possivelmente arma guerras para forçar nova correlação de forças enquanto o povo “inocente” esperneia na miséria. O planeta é o maior condomínio que começa ficar pequeno para seus condôminos. Se não houver compartilhamento as ilhas luxo serão cada vez pressionadas.
Alguns com cargos de 10,20, 30, 40 mil reais mensais e ainda tem o privilégio de carro, motorista, assessor, diárias, auxílio moradia, etc. pagos dos impostos arrancados do povão que vai ao trabalho numa “lata de sardinha” chamada de ônibus recebendo apenas mil reais por mês. É assim nas estatais, no legislativo, executivo e judiciário. Para existir nos dias atuais democracia plena é necessário transparência, fim dos privilégios e rigor imediato na derrota constante da corrupção. Improvável que a população aceite gestor ganhando “oficialmente” milhares de reais por mês. A ira que durava anos para ensejar uma revolta se potencializa hoje em poucos dias. Entre 2013 e 2020 os exemplos confirmam.
Turbilhão de mudanças
O recado da população está acontecendo no Brasil desde 2013. A democracia precisa ser ressignificada. O planeta vive turbilhões de mudanças. A prática da democracia precisa avançar no aperfeiçoamento de seus ideais. Reduzir a desigualdade, abolir privilégios e combater a corrupção com participação direta da comunidade é um bom caminho antes que seja tarde. Antigas fórmulas, antigos discursos, contradições argumentativas, não sobreviverão ante a velocidade da informação e o aumento da miséria.
A história serve de exemplo para se construir o presente. O presente está urgentemente instantâneo. Gestão séria, transparente, compartilhada e sem privilégios das autoridades no exercício da função pública são necessidades históricas para sobrevivência da democracia contemporânea.
(*) Valtênio Paes de Oliveira é professor, advogado, especialista em educação, doutor em Ciências Jurídicas, autor de A LDBEN Comentada -Redes Editora, Derecho Educacional en el Mercosur- Editorial Dunken e Diálogos em 1970- J Andrade.