André Luiz Baião Campos (*)
Se em 2020 todos os cantos do mundo, quase em uníssono, gritam devido a uma doença causada por um vírus respiratório, o denominado Sars-CoV2 (causador da covid-19), há que se pensar nos ruídos que rondam seus ouvidos à noite e que, durante o dia, parecem sussurrar que o próximo pesadelo poderá ser uma arbovirose.
Arbovirose é um termo que designa um grupo de doenças causadas por vírus e transmitidas por artrópodes (mosquitos por exemplo). Existem mais de 150 espécies de vírus já relatadas como envolvidas em infeções de humanos, desde as mais conhecidas do grande público, como a dengue e a chikungunya, até outras menos famosas como a “Febre do Nilo Ocidental”, a “Febre do Mayaro” e a “Febre Oropouche”. Essas três, por exemplo, têm ocorrência esporadicamente detectada em regiões da Amazônia, da mata atlântica e do Pantanal brasileiro, assim como em diversos países.
O nome Arbovirose sintetiza a designação inglesa dos “arthropod borned virus”, com uma ideia literal imprecisa de “vírus nascido dos artrópodes”. Na verdade, os mosquitos são apenas transportadores desses vírus, pegando-os em hospedeiros vertebrados e transmitindo a outros, ciclos conhecidos como enzoóticos.
Isso no ambiente silvestre acontece com natural equilíbrio: onde os mosquitos se reproduzem há uma variedade de mamíferos, aves, anfíbios e répteis que podem servir para os seus ciclos reprodutivos. Os vírus, com maior ou menor especificidade, sobrevivem entre estes seres sem dizimá-los e sem tampouco desaparecerem, não obstante transformando-se de tempos em tempos, pela mágica das mutações. Assim os vírus justificam sua existência numa dessas espirais da história natural que, mal ou bem, conhecemos e que parece se repetir desde sempre.
A ação do ser humano e sua movimentação sobre o planeta, com a urbanização desordenada, o desmatamento e a modificação drástica das paisagens vêm trazendo uma conta a ser paga. As relações de produção geram ciclos hipertrofiados de exploração e consumo dos recursos naturais que resultam, entre outras mazelas humanas, nas mudanças climáticas, hoje evidentes pelas métricas de aquecimento global. Além disso, o destino inapropriado dado ao lixo e ao esgoto cria novos possíveis criadouros e mantém o ambiente favorável à adaptação dos ciclos para os vírus e os mosquitos.
Constituindo-se como o principal vertebrado presente e disponível para a adaptação e infecção pelos vírus, o ser humano ajuda sobremaneira na reprodução dos mosquitos. Como consequência, sofremos com as “novas” doenças. Nem são novas e nem foram “feitas para o ser humano”. As arboviroses, como a dengue e a febre amarela, assolam há tempos algumas regiões e emergem e reemergem em cada território onde possam encontrar ambiente propício.
Se a relação com a alimentação, moradia, transporte, higiene expõe a humanidade a novos vírus respiratórios como o Sars-coV2, a produção, a extração, a monocultura e a ocupação caótica do ambiente reservará a cada dia novas surpresas em relação às arboviroses. Há alguns anos os Estados Unidos enfrentaram surtos de Febre do Nilo Ocidental. A emergência do Zika vírus atemorizou e deixou sequelas por onde passou, tomando proporções intercontinentais. Chikungunya veio a aparecer com altas taxas de ataque e morbidade no Brasil, causando temporários alertas. Mas o passar do surto leva a sociedade a nova zona de conforto e descuido, a despeito dos alertas dos cientistas da Epidemiologia.
As autoridades não estão acostumadas a coordenar ações a partir de áreas de incerteza e probabilidades. Investir recursos econômicos em alguma ação para algo que ainda não aconteceu parece abstrato e antipático ao capital, tão materialista. A ideia de gastar recurso e energia com um “inimigo do futuro e que não se vê” soa como desperdício para o governante simplista e seus apoiadores. Eles não conseguem e nem querem ir a fundo no motivo dessas “pragas invadindo o seu espaço” e que vêm dividindo as suas vidas em períodos de surtos e epidemias. O turvo raciocínio econômico liberal e o cálculo eleitoral pragmático formam os elementos para a triste equação que resulta em terreno fértil para as epidemias e o grande número de vidas em risco.
O inimigo, que na verdade é resultado da própria atividade desordenada, exploratória e economicamente desigual do ser humano, assusta-o como se fosse um pesadelo, criado pelo seu próprio sono, mas que neste caso não está a conseguir despertá-lo antes que as perdas e danos estejam diante de seus olhos.
(*) André Luiz é médico em Aracaju, mestre em Saúde Pública e especialista em Medicina de Família e Comunidade
** Esse texto é de responsabilidade exclusiva do autor. Não reflete, necessariamente, a opinião do Só Sergipe.