Os(as) leitores(as) que acompanham a coluna têm percebido a importância do aporte adicional de recursos para a educação básica que o novo Fundeb trará. Como se sabe, estima-se que haja a adição de 17 bilhões de reais nos próximos anos, recursos que devem ser destinados para a manutenção e desenvolvimento do ensino infantil, fundamental e médio.
Pois bem, na madrugada da última sexta-feira, 11 de dezembro, a Câmara dos Deputados deu o primeiro passo para que o novo Fundeb seja regulamentado e executado já no ano que vem. O relatório apresentado pelo deputado federal Felipe Rigoni (PSB/ES), parlamentar que compõe a denominada bancada da Fundação Lemman, representava um importante avanço. Além de deixar nítida a destinação dos recursos, incorporou outros elementos relevantes, como a questão da gestão democrática, da destinação dos recursos para o ensino infantil e, mesmo sofrendo algumas críticas, estabeleceu parâmetros mais equânimes para a distribuição dos recursos para as escolas, considerando o número de matriculados, índice de desenvolvimento econômico e social, nota no IDEB, etc.
Entretanto, o acordo fechado em torno do relatório foi desfeito no ato da votação. A bancada do governo federal apresentou um conjunto de destaques que, grosso modo, significa a destinação de recursos públicos para escolas particulares ou religiosas.
A primeira medida aprovada foi a liberação do uso de recursos do Fundeb na celebração de convênios com as escolas vinculadas ao Sistema ‘S’ (Senai, Sesc, Sesi, Senac). O destaque aprovado possibilita que as redes estaduais/municipais de educação pública paguem ao Sistema ‘S’ pelos serviços prestados por ela, seja na oferta de ensino profissionalizante ou, até mesmo, na oferta de vagas no ensino regular. Em outros termos, em vez de construir escolas profissionalizantes, a medida permite que a ampliação das vagas ocorra em instituições privadas, o que é um atentado contra o caráter o público da educação. Não custa lembrar que o Sistema ‘S’ é beneficiado com a isenção do salário educação e a transferência de recursos públicos para ela.
Outro destaque aprovado permite que o dinheiro do Fundeb seja destinado ao pagamento do salário dos(as) trabalhadores(as) da educação em geral, incluído aqueles(as) que trabalham em escolas confessionais/filantrópicas, e não apenas aos(às) dos(as) docentes, como prevê o texto constitucional. Não custa lembrar que boa parte dos recursos do Fundeb é utilizado para o cumprimento da lei do Piso Nacional do Magistério, medida importante para a valorização profissional do(a) professor(a). Com a ampliação da base dos beneficiados, muito provavelmente ficará mais difícil o salário dos(as) professores(as) ter aumentos, o que obrigará a revisão da Lei do Piso ou até mesmo seu fim.
Entretanto, talvez a medida mais preocupante tenha sido a que permite o uso de recursos do Fundeb em escolas privadas (confessionais e filantrópicas). Diferentemente do ensino superior, no qual a maioria das matrículas está em instituições privadas – com ou sem fins lucrativos -, as matrículas da educação básica se concentram, majoritariamente, na escola pública. Dados do Censo Escolar da Educação Básica, estudo elaborado pelo Ministério da Educação, apontam que, em 2019, 71% dos matriculados no ensino infantil estavam em escolas públicas, 80% do ensino fundamental e 87% do ensino médio.
Ora, ao liberar o uso de recursos do Fundeb para as escolas confessionais e filantrópicas, a Câmara dos Deputados autoriza os(as) governadores(as) e prefeitos(as) ampliarem as vagas em escolas não-públicas, a exemplo do que aconteceu no ensino superior nos últimos 30 anos. É o caráter público e gratuito da escola, direito garantido pela Constituição, que está em jogo. Além disso, tal medida permite a adoção do voucher como política de financiamento da educação básica. O voucher é o caminho mais curto para a mercantilização da educação.
Essas três medidas desconfiguram o espírito do novo Fundeb, aprovado para garantir mais recursos para o financiamento da educação básica, contribuir com o cumprimento das metas do Plano Nacional de Educação (PNE), valorizar o magistério e fortalecer a escola pública. Em outros termos, de forma oportunista e traiçoeira, a bancada do governo federal na Câmara dos Deputados trai a essência do Fundeb ao permitir o uso de recursos públicos em escolas privadas. Agora é torcer para que o Senado reverta esta situação e recoloque o Fundeb no seu trilho original. É isso que se espera dos senadores e senadoras do país.
(*) Christian Lindberg Lopes do Nascimento é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Graduado em Filosofia (UFS), doutor em Filosofia da Educação (UNICAMP) e pós-doutor em Educação (UNICAMP).
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