A pulsão de morte foi o nome dado por Freud para nossos instintos (ou pulsões, dependendo da tradução e da interpretação da obra do autor) voltados para a cessação de dor, tensão e busca pelo prazer. Esse prazer é algo que não segue a ordem natural das coisas e tenta driblar a pulsão (ou instinto) que promove a vida. Ele é ligado à destrutividade, diferente da agressividade, tão importante para a defesa da vida.
A pandemia trouxe para o eixo das discussões psicanalíticas as questões ligadas às pulsões de morte. Estamos com as Unidades de Saúde sobrecarregadas, e os profissionais exaustos. A pandemia do novo coronavírus é um termômetro mortal para avaliar o quanto somos capazes de cuidar dos outros e de nós mesmos. O vírus, que é transmitido pelo contato humano, não vacila em qualquer ambiente. Isso fez com que voltássemos a pensar como uma sociedade pode extravasar suas tensões, por meio da interação grupal.
Não temos como não associar as atuais festas clandestinas, potencializadoras do adoecimento em massa por COVID-19, das festas do “Clube do Carimbo”, relatadas pelo programa Fantástico, Jornal O Globo e Estadão, em 2015. Nessas festas, os organizadores liberavam um jovem com HIV positivo em encontros animados, promovidos para a prática de sexo bareback (sem o uso de preservativo) ou com camisinhas furadas propositalmente pela organização, sem o conhecimento dos participantes. O jornalista Leonardo Filomeno, do site www.manualdo homemmoderno, afirma que a brincadeira era como de roleta-russa, baseada na falsa crença de que se todos tivessem a doença, ela deixaria de ser um problema.
Tal ação é considerada crime de contágio de moléstia grave e pode dar pena de três meses a um ano de prisão. O site ricmais.com.br informou que foi feita uma ação chamada de “Operação Antivírus” com o apoio do Ministério Público do Rio de Janeiro e apreensão na Grande São Paulo e no interior do estado, para prender a quadrilha que promovia tais festas.
Passados seis anos daquelas festas letais, agora, de uma forma não muito diferente, mas aparentemente, apenas aparentemente, menos intencional, encontramos pessoas organizando festas durante a pandemia, cujos responsáveis prometem evitar o contágio do vírus com testagem prévia dos participantes. Esses cuidados, quando acontecem, não são suficientes para evitar a contaminação. E, em uma festa com bebidas alcoólicas e muitas vezes substâncias ilícitas, a fuga da realidade é predominante. Há um rebaixamento do superego, parte do aparelho psíquico que auxilia na responsabilidade, controle e bom senso junto com o ego e, como consequência, a crença dos riscos e limites do mundo são diminuídos ou menosprezados.
Diferentemente do “Clube do Carimbo”, de 2015, em que a contaminação ocorria para alguns dos membros, as festas atuais fornecem as “lembrancinhas” que vão para casa com os participantes e podem infectar e matar uma família inteira. Vemos que os idosos e as pessoas com comorbidades são as mais atingidas. Mesmo estando em casa, podem se contaminar se os próprios membros da família não se cuidarem. E ainda, as novas variantes do vírus, além de mais letais, contaminam pessoas cada vez mais jovens e até crianças. Então, não é em vão pensar que nunca o cuidado com o outro e consigo esteve tão à prova, e a pulsão de morte latente em todos nós se tornando vívida. Acreditar que, principalmente, um jovem adulto ignora todos os cuidados de saúde por sua própria escolha ou pela dificuldade de lidar com as limitações do “enclausuramento” e pela essencial necessidade de ter de desenvolver recursos para aprender a viver mais consigo e com os seus, tendo um pouco de empatia, está na ordem do dia. É a prioridade entre tantas prioridades para conter a doença. Ao invés de “para fora”, “para o mundo” é preciso pensar que, na luta interna de cada um, a pulsão de morte está se tornando mais presente e se não deslocada para um trabalho conjunto com a pulsão de vida e em harmonia, pode levar concretamente muito mais pessoas ao óbito, como se não bastassem as mais de 4 mil mortes por dia no País.
Portanto, festas do “Carimbo” e/ou festas clandestinas, que sempre promovem aglomerações, são nódulos que mostram o adoecimento de uma parcela importante da população e nós, profissionais da saúde mental, não podemos nos inibir de apontar esses problemas como sintomas sociais. Faz-se necessário preparar e cuidar da população por inteiro e, neste momento, a saúde mental precisa ser estimulada para que situações que coloquem pessoas em risco e aflorem desenfreadamente pulsões de morte possam ser evitadas em prol de um futuro melhor para todas as pessoas. Somente focando juntos neste mesmo objetivo conseguiremos superar mais esse desafio. Não há saída individual.
(*) Profa. Esp. Petruska Passos Menezes é psicóloga e psicanalista, integrante do Círculo Psicanalítico de Sergipe, tem MBA em Gestão e Políticas Públicas pela FGV (Fundação Getúlio Vargas), Gestão Estratégica de Pessoas (pela Fanese), Neuropsicologia (pela Unit) e em curso Gestão Empresarial pela FGV.
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