quinta-feira, 21/11/2024
O intrépido Roninho

Roninho, socialista moreno, nosso dândi tropical

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jornalismo
Luciano Correa (*)

Morreu Roninho, o intrépido Ronald Cabral Simas, morador da rua Salgado, moleque criado nas velhas indjagens de Aracaju, entre as boates da Atlética, Iate Clube e os bares da malucada dos anos 60. Porte atlético, moreno escuro, parecido com o tipo “cabo verde”, cheio de ginga, namorador, bom de papo e de murro. Já o conheci rapaz, dez anos mais velho do que eu, moleque recém chegado de Itabaiana e já de saída da UFS para cursar Jornalismo na Bahia. Durante quatro anos fui uma espécie de correspondente da Folha da Praia em Salvador e, quando vinha por Aracaju, sempre passava na redação da Folha para pegar uns trocados e, principalmente, me fascinar com a loucura que foi a primeira geração do semanário.

A redação era aberta o dia inteiro, começando pelo gerente Moura, o único que não era cachaceiro, portanto, podia chegar cedo e abrir o jornal. Os demais iam e vinham o dia todo. Amaral, editor e dono, Fernando Sávio, Carlos Magno, Bittencourt, Gigi, Zenóbio Melo, Ilma Fontes, Henrique Barbudo’s, depois Antônio Passos, Elton Coelho, Roberto Lessa e mulheres, muitas e lindas mulheres. Muita conversa inteligente, alguma bebida e maconha de hora em hora, no terraço do edifício Cultura Artística, a lendária SCAS, onde funcionava a redação da Folha, no segundo andar, e outros escritórios ocupados por uma fauna não muito diferente daquela turma esquisita do jornal.

Roninho era o diretor comercial, bom vendedor, sempre às voltas com algum mirabolante projeto que dividiria o mundo em antes e depois de sua ideia. Eu, embora vivesse uma vida efervescente como estudante de Jornalismo na UFBA, entre as festas e revoluções do movimento estudantil – muito mais festa que revolução, é bom dizer – ficava impressionado com a gente torta e interessante que encontrava ali.

Pouco tempo depois Roninho saiu da Folha, sem brigar, mas reclamando de Amaral, sobre comissões, participação de lucros e coisas que tais. Uma briga de dois sabidos, embora eu achasse, no fim, que Roninho tivesse mais razão. Nunca deixamos de ser amigos, sempre me divertindo quando o encontrava, na rua ou nos bares. Sempre metido com novos projetos, amores recentes. Irônico, cáustico, disparava uma metralhadora de impropérios em cima do desafeto da hora.

Uma vez, eu trabalhando na Prefeitura, fui avisado pela secretária que “um rapaz todo quebrado, com o rosto inchado e cheio de curativos” me procurava na antessala. Dei com um Roninho exasperado contra a Prefeitura de Aracaju, a quem iria processar, culpada do buraco na rua de Arauá que provocou sua cinematográfica e violenta queda da bicicleta. Foi um dos primeiros jovens de uma classe média viciada em carros a trocar o motor pelas rodas da bike. Não sei no que deu, mas ficou décadas falando mal do prefeito de então, repetindo sempre uma mesma piada que ele julgava engraçada e ferina. Até hoje não entendi a tal piada.

Ainda no período da Folha da Praia, voltou de uma longa viagem ao Acre trazendo para Sergipe as maravilhas do Santo Daime, que ele transformou em um misto de ritual, festa e meio de fornicar com as minas. Em outro momento, quando eu trabalhava na sucursal em Sergipe da Tribuna da Bahia, irrompeu na redação do jornal, na rua Itabaiana, com um sujeito que ele chamava de “Madeirinha, o homem que come bosta”, que ele descobrira, o tal fenômeno, na simpática cidade de Frei Paulo. Fiquei mais irritado com a interrupção do meu trabalho do que achei graça na história. Eu tinha horário pra enviar minhas matérias para Salvador e já redigia meu texto no próprio telex, onde, ao concluir, já despachava através de uma fita onde gravávamos nossa produção do dia. Mas, em atenção a uma velha amizade, parei para ouvir a história do incrível homem que comia merda. Felizmente eu consegui adiar para outro dia a demonstração prática e cabal das habilidades do nosso herói freipaulistano. De modo que jamais foi cumprida a promessa, ou ameaça. A partir daí, sempre que o encontrava, não deixava por menos: “E o Madeirinha, tem notícia?”.

Bonito, gostava de um terno de linho branco que às vezes usava na noite, cheirando a patchouli e acompanhado de alguma morena. Transbordava em eloquência, seja para anunciar a mais nova ideia, ou para encantar a moça. Assim viveu, nesse sonho que, vendo de cá, não sei se deu certo. Porque, apesar da verve e da inteligência, sempre me pareceu infeliz, de alguma frustração que atravessou seus caminhos sempre.

Fui perdendo os companheiros da Folha da Praia aos poucos: Sérgio Picolé, Zenóbio Melo, Altamiro, Iran, Caga Voando e os três que eram a alma do periódico: Fernando Sávio, Ilma Fontes e o próprio Amaral. Depois de alguns anos sem vê-lo, sempre que passava em sua casa, na rua Salgado, me perguntava por onde andaria essa versão de Don Quixote do bairro São José. Até que, no ano passado, num evento da Lei Aldir Blanc no Centro Cultural de Aracaju, reencontro Roninho, um jovem setentão, falante, ainda atlético, com as ironias de sempre e uma menina muito linda e décadas e décadas mais jovem.

Deixei os dois na casa dela, na rua Dom José Thomaz. Nunca mais os vi. Soube que a guria era uma paixão platônica. Não tive como tirar essa história a limpo com meu querido amigo Roninho. Foi embora esta semana, carregando essa tristeza que eu suspeitava latente no seu coração de menino.

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(*) Luciano Correa é jornalista, doutor em Comunicação, atual presidente da Fundação Cultural de Aracaju (Funcaju).

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