quinta-feira, 21/11/2024
cartas
Filha roubando a própria mãe. Cartas macabras Imagem: Pixabay

Somos frutos do que acreditamos

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Luiz Thadeu (*)

Janeiro de 1984, dia ensolarado, praia de Copacabana, Rio de Janeiro. Lembro porque foi quando fui desposar Heloísa Helena. Dia escaldante do verão carioca, fomos  à praia. Refestelado na cadeira, chega uma cigana pedindo para ler a mão, prevê meu futuro. Como nunca tive curiosidade sobre o futuro, sou dos que gostam que as coisas aconteçam no tempo de Deus. Tenho curiosidade zero sobre os mistérios da vida. Por gozação, perguntei o valor do serviço. Ela falou o valor que não me recordo mais, a moeda era cruzeiro novo. Hoje, algo como R$ 50,00. Leitor assíduo do Jornal do Brasil, com um exemplar nas mãos, disse: “Se para ler minha mão, me cobras esse valor, imagina para ler esse jornal, tinha que fazer empréstimo para te pagar”. Não perdeu mais tempo comigo, seguiu sua lide: vestido comprido, turbante, colares e pulseiras coloridas, a abordar o próximo banhista.

Nunca me interessei em saber o que vem pela frente, não sou supersticioso: passo por baixo de escada, já atropelei um gato em minhas andanças pelo mundo. Espelho se partiu em minha frente, não tenho cor favorita em Réveillon. Sexta-feira, 13, é igual a qualquer dia da semana. Não bato em madeira. Não leio horóscopo.

Ainda universitário, recenseador do IBGE, lembro de uma passagem pitoresca. Ao coletar dados, após um dia duro, andar mais que carteiro – não usava muletas -, ao fechar o questionário, pedi para a entrevistada assinar a folha final.

-Moço, hoje não posso assinar nenhum papel.

-Mas, por quê?

-Li meu horóscopo, diz que hoje não devia assinar nenhum documento.

Fazer o quê? Era obediente ao que lera. Não a contrariei, passei para o próximo.

Tenho conhecidos supersticiosos que, até para assistir ao jogo do seu time, só veste determina camisa, ou não muda a cueca.

Após um período de convalescença, reencontrei um casal de amigos, no supermercado. Há tempos não nos víamos, não acompanharam minha Via Crucis. Na cabeça deles, tinham uma dívida comigo. Umbandistas, convidaram para acompanhá-los ao centro que frequentavam. Após algumas desculpas, resolvi ir. Sou cético; às vezes não é bom ser tão racional. Lá fui ao centro, acompanhando-os. Hora da consulta, uma senhora incorporada, voz masculina, a fazer-me perguntas, acredito, para me enquadrar em algo que justificasse que precisava dos serviços espirituais. Perguntas feitas, respostas obtidas. Encerrada a sessão, chama meus amigos, e lhes comunica: “Ele não tem problema algum”. Ledo engano, problemas eu tinha e continuo tendo, mas o radar dela não os detectou.

Em andanças pelo Velho Mundo, sempre me deparo com ciganas, geralmente vindas do leste europeu. Estão à caça dos crédulos para ler suas mãos, prevê seus futuros e garantir o delas, já que todos precisam do vil metal para sobreviver.

Faço esse preâmbulo para falar do exótico e vultoso golpe dado por uma filha, juntamente com videntes, em uma mãe octogenária e milionária.

Ocorreu no Rio de Janeiro. A polícia começou a investigar o sumiço dos quadros depois que Geneviève Boghici, 82 anos, procurou a delegacia e disse que a própria filha, Sabine Boghici, fazia parte de um esquema para extorquir dinheiro dela com a ajuda de outras três mulheres que se diziam videntes.

Segundo a polícia, elas contaram à viúva que a filha Sabine estava doente e iria morrer em breve. Com a ajuda da filha, convenceram Geneviève, a mãe, a pagar por um suposto tratamento espiritual, que custou mais de R$ 5 milhões. Macabro.

As três mulheres são da mesma família e já tinham passagens pela polícia por aplicar golpes: Jaqueline, Diana e Rosa Stanesco, conhecida como Mãe Valéria de Oxóssi. Os investigadores afirmam que a mãe desconfiou e parou de transferir o dinheiro, passando a ser agredida e ameaçada de morte pela própria filha. A viúva contou que chegou a ser trancada em casa pela filha e a ficar sem comida. Foi quando joias e quadros começaram a sumir. Segundo peritos, prejuízo estratosféricos de R$ 720 milhões. Com uma filha dessa, ninguém precisa de inimigo.

Cético, pergunto: Essa filha precisava disso, já que é herdeira da mãe? Não era mais fácil convencê-la a vender um quadro que vale milhões e resolver o problema? Resumo da ópera: Sabine Boghici está presa, juntamente com as comparsas, perdendo o respeito e a confiança da mãe, e sua liberdade.

Somos frutos do que acreditamos, mesmo sendo surreal.

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(*) Luiz Thadeu Nunes e Silva  é engenheiro agrônomo, palestrante, cronista e viajante: autor do livro “Das muletas fiz asas”, o sul-americano mais viajado do mundo com mobilidade reduzida, visitou 143 países em todos os continentes da terra.

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Sobre Luiz Thadeu Nunes

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Eng. Agrônomo, Palestrante, cronista e viajante: o homem mais viajado do mundo com mobilidade reduzida, visitou 151 países em todos os continentes da terra. Autor do livro “Das muletas fiz asas”.  Membro do IHGM, Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão; ABLAC, Academia Barreirinhense de Letras, Artes e Ciências; ATHEAR, Academia Atheniense de Letras; e da AVL, Academia Vianense de Letras, membro da ABRASCI. E-mail: luiz.thadeu@uol.com.br

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