As feridas, segundo Charles Albuquerque, não são evitáveis, mas fruto de uma fatalidade. Podem surgir por bactérias, vírus, fungos, vermes, acidentes de trânsito, que são muitos no país. Ou até por causas desconhecidas, praticamente imprevisíveis e inevitáveis. Entretanto, Charles ressalta: “O que pode ser evitado na maior parte das vezes é a cronificação dessas feridas. Frequentemente uma ferida se cronifica por incompetência do sistema (pessoas e processos) em diagnosticar a verdadeira causa da ferida e tratá-la”.
Como médico, Charles não pode prometer a cura e isso sempre lhe causou um certo desconforto. “Isso sempre foi um conflito para mim. Na verdade, nunca aceitei bem o fato de não poder prometer a cura do paciente, a subsistência da vida do paciente, nem o sucesso do tratamento que está a realizar”, confessa.
“Eu sempre penso em curar… em burlar a fatalidade. Por isso, encontrei uma saída para esse conflito: eu prometo a mim”, garante. Mas quando não consegue, sofre como quem fracassou ou como um mau perdedor que não pode subir ao pódio ao final de uma maratona. Além de curar feridas crônicas, Charles também é escritor. E no seu livro, “O Dote de Letícia”, lançado recentemente ele define não apenas como um livro, mas “um presente que vai transformar quem o lê”. Ele também escreveu, a cinco mãos, “Fio da Meada – protocolo 428T”, “uma das melhores brincadeiras literárias que fiz”.Mas será que o dermatologista que cura feridas, escreve livros, também é expert em curar feridas do coração?
Descubra a resposta, ao ler esta entrevista envolvente que Charles Albuquerque concedeu ao portal Só Sergipe.
SÓ SERGIPE – O senhor disponibiliza um curso online chamado “Feridas Fora da Caixa”, que visa compreender “os impeditivos à cicatrização e a autorregeneração tecidual”. Isso quer dizer que seu curso promete a cura das feridas crônicas?
CHARLES ALBUQUERQUE – Essa pergunta é tão interessante quanto pertinente. A atividade médica é uma obrigação de meio, não de resultados. Ou seja, o médico compromete-se a cuidar e tratar e não pode prometer a cura, a subsistência da vida do paciente, nem o sucesso do tratamento que está a realizar. Com exceção dos médicos que trabalham com estética, esses estão sujeitos aos resultados que prometem.
Isso sempre foi um conflito para mim. Na verdade, nunca aceitei bem o fato de não poder prometer a cura do paciente. Para mim seria como entrar num jogo só por jogar ou entrar numa corrida sem pensar em perseguir o pódio a todo custo. Eu sempre penso em curar… em burlar a fatalidade. Entretanto, não posso prometer isso ao paciente. Por isso, encontrei uma saída para esse conflito: eu prometo a mim. Sempre me prometo que farei tudo que estiver ao meu alcance para curar o paciente que me chega… e quando não consigo, sofro como quem fracassou ou como um mau perdedor que não pode subir ao pódio ao final de uma maratona.
SÓ SERGIPE – A quem é destinado esse curso e quantas pessoas já o fizeram?
CHARLES ALBUQUERQUE – O Curso Feridas Fora da Caixa é destinado a todos os profissionais da saúde que trabalham com pacientes portadores de feridas crônicas, que lecionam ou que pretendem atuar nessa área como enfermeiros e enfermeiras. Assim como para médicos(as) que estão mais sujeitos(as) a tratar pacientes com feridas: cirurgiões (geral, plástico, vascular, ortopedista), dermatologistas, endocrinologistas e plantonistas de enfermarias, bem como médicos da família. Outros profissionais da saúde que recentemente têm buscado aprofundamento na área de feridas crônicas são os fisioterapeutas e nutricionistas.
SÓ SERGIPE – Quais foram os estudos que o levaram à conclusão de que estas feridas complicadas realmente cicatrizam?
CHARLES ALBUQUERQUE – Muito boa a pergunta. Foi a fisiologia, a epidemiologia e a experiência clínica aplicada. Vou explicar.
A fisiologia explica como funciona nosso corpo. E, quando se trata de cicatrização, a fisiologia mostra que todo ser biológico saudável tem capacidade de autorregeneração, de cicatrização. Insetos, aves, mamíferos assim como nós humanos passamos a vida cicatrizando nossas próprias chagas, na maior parte das vezes, sem qualquer remédio ou ajuda externa. A cronificação de uma doença é a exceção.
A Epidemiologia que, em resumo, é o estudo das características de uma doença na sociedade mostra que em média 1% da população humana tem uma ferida crônica neste momento. Se você imaginar que é pouco provável que exista alguém que nunca feriu sua pele, podemos deduzir que 99% das pessoas curam-se de suas feridas, ou seja, não evoluem para uma ferida crônica. Esse dado é suficiente para dizer que a evolução natural dos ferimentos é a cura… e quando ela não ocorre é porque há um impedimento à normalidade…há um impedimento à cura.
A experiência clínica aplicada tem a ver com os pacientes que chegaram ao nosso serviço portando feridas crônicas por 5, 10 e até 40 anos, e depois de aplicarmos os princípios terapêuticos que defendemos vimos suas feridas cicatrizadas.
SÓ SERGIPE – Que são feridas crônicas?
CHARLES ALBUQUERQUE – São as feridas que não cicatrizaram como deveriam até a 6ª semana depois de surgirem, feridas crônicas também são chamadas de úlceras.
SÓ SERGIPE – Que fatores externos mais comuns podem provocar feridas? E que doenças podem levar ao surgimento destas úlceras?
CHARLES ALBUQUERQUE – Os principais fatores externos que causam feridas são os traumas, principalmente, os acidentes de trânsito. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) estima em 45 mil mortos anuais por acidentes de trânsito no Brasil. E cerca de 1,25 milhão de pessoas morrem, no mundo, de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). Entretanto, outro fator importantíssimo cujos verdadeiros dados são negligenciados pela ciência é o tabagismo. O cigarro é um fator externo que está extremamente ligado à causa de surgimento e perpetuação de feridas crônicas na pele. Não só isso, muitos cirurgiões estão respondendo a processos judiciais por péssimos resultados e ou complicações de feridas cirúrgicas porque ignoram os efeitos danosos do cigarro na cicatrização das suturas que fazem e na capacidade de cicatrização de seus pacientes. A literatura científica mostra evidências de que seria importante que cirurgias eletivas em fumantes só fossem marcadas, no mínimo, quatro semanas após a cessação do tabagismo para reduzir o risco de complicações da cicatrização.
Quanto às doenças que podem levar ao surgimento dessas úlceras crônicas, as chamadas doenças ulcerogênicas, são mais de uma centena, mas infelizmente a maior parte dos profissionais costuma lembrar apenas das mais frequentes: insuficiência venosa e arterial, diabetes e hipertensão.
SÓ SERGIPE – O pé diabético pode causar feridas, não é verdade? Há casos em que as pessoas são obrigadas a amputar o pé ou, às vezes, parte da perna. Nos seus estudos há uma chance para se evitar uma amputação?
CHARLES ALBUQUERQUE – Costumo repetir que não existe pé diabético. Diabetes, simploriamente, pode ser definida como uma doença por deficiência no pâncreas em produzir a quantidade de insulina necessária para se retirar o excesso de açúcar do sangue. Como o pé não possui pâncreas, logo não pode ter diabetes. Pé diabético, para muitos entendidos é apenas uma força de expressão… para mim, é um nefasto rótulo que vem ajudando a amputar muitos pés de pessoas portadoras de diabetes mundo afora.
Apesar de muita gente repetir e ensinar que diabetes causa feridas, eu repito que o diagnóstico de diabetes não causa feridas. O que causa feridas é a falta de controle de açúcar. Os estudos mostram dois dados interessantes que concordam com o que eu falo: uma pessoa diabética que mantenha seus níveis de açúcar sob controle com dieta, atividade física, medicações e ou insulina tem menos chance de adoecer e vive mais do que uma pessoa sem o diagnóstico de diabetes. Outro dado é que apenas 10 a 15% dos diabéticos desenvolvem ferida nos pés, ou seja, de 85 a 90% dos diabéticos não portam uma ferida nesse momento… logo, no diabetes, o normal e mais frequente é não ter feridas. Quando uma pessoa diabética desenvolve uma ferida crônica, normalmente ela tem outro fator ulcerogênico associado.
SÓ SERGIPE – As feridas são evitáveis?
CHARLES ALBUQUERQUE – Ferir-se, criar feridas traumáticas não é completamente evitável, é uma fatalidade. Há feridas que surgem por infecções diversas (bactérias, vírus, fungos, protozoários, vermes) também não dá para evitar completamente. Há feridas que surgem por problemas vasculares, inflamatórios e até por causas internas desconhecidas, são praticamente imprevisíveis e inevitáveis. Entretanto, o que pode ser evitado na maior parte das vezes é a cronificação dessas feridas. Frequentemente uma ferida se cronifica por incompetência do sistema (pessoas e processos) em diagnosticar a verdadeira causa da ferida e tratá-la. E assim, o sistema passa a ser o agente cronificante da ferida fazendo curativos que não curam por anos imprevisíveis e incontáveis.
SÓ SERGIPE – Esse tratamento para cura de feridas que o senhor ensina no curso é de fácil acesso para pacientes pobres, normalmente os mais esquecidos pelo poder público?
CHARLES ALBUQUERQUE – Acredito que não podemos pensar em tratamento ideal sem lembrar do custo do tratamento. Não seria aceitável pensar em saúde pública prescrevendo tratamentos que só o Bill Gates pode pagar. Busco desenvolver estratégias que visam a compreensão do processo cicatricial na retomada da cicatrização.
Explico: quanto você gasta para cicatrizar sua própria ferida quando você se corta? Frequentemente, quase nada. Lava com água e sabão, passa um antisséptico, coloca um band-aid ou gaze e esquece, pronto, cicatriza. Isso porque seu corpo está saudável e não tem impedimentos à cura.
Então como faço? Gasto energia tentando descobrir por que o paciente não cicatrizou depois de 5 ou 10 anos de curativos diários. Quais os impedimentos existentes na ferida, no seu corpo, na sua história de vida ou na conduta dos profissionais anteriores que não deixaram a ferida cicatrizar? À medida que esses impedimentos vão sendo retirados ou contornados o paciente retoma a cura utilizando curativos de baixo custo… é muito simples de se compreender isso.
SÓ SERGIPE – Esse tratamento já está disponível no Serviço Único de Saúde (SUS)?
CHARLES ALBUQUERQUE – Infelizmente, não consegui ainda multiplicar este conhecimento dentro de Sergipe, apesar de tudo isso ter crescido aqui. Já ensinei essa técnica para servidores municipais de Bertioga (São Paulo), enfermeiros e médicos de Natal, João Pessoa, Recife, Mossoró, Cuiabá e Curitiba. Sabemos que santo de casa demora a fazer milagres. Sei que um dia vou espalhar esse “milagre” por aqui também. Mas a boa notícia é que, apesar da indiferença local a esse trabalho, dezenas de sergipanos de vários municípios já foram tratadas e beneficiadas por esse tratamento no serviço filantrópico no qual sou voluntário no Bairro Santa Maria, o Centro Médico Odontológico Servos e Servas da Santa Trindade, que é mantido pela caridade de ilustres e caridosos sergipanos e pela doação de material de uma empresa de correlatos para ferida de São Paulo.
SÓ SERGIPE – O senhor também estudou doenças tropicais. Há uma semelhança entre elas e as feridas?
CHARLES ALBUQUERQUE – Sim. Trabalhei no Centro de Medicina Tropical de Rondônia, em Porto Velho, e fiz pesquisas em doenças tropicais pelo CEPEM. Também atendia no ambulatório municipal de referência para leishmaniose, foi onde começou meu envolvimento com dermatoses tropicais. Muitas doenças dermatológicas tropicais evoluem como feridas crônicas se não forem corretamente diagnosticadas e tratadas. Penso que o raciocínio é o mesmo. Uma grande amostra das feridas crônicas não cura porque não foi ainda diagnosticada e tratada da forma correta.
SÓ SERGIPE – Além de médico e expert em feridas, o senhor também é escritor. No dia 22 de janeiro, deste ano, lançou o livro “O Dote de Letícia”. E no Instagram, o senhor diz que “não é um livro, é um presente que vai transformar quem o lê”. Por quê?
CHARLES ALBUQUERQUE – Obrigado pela oportunidade de falar também desse produto sergipano. Apesar de sermos pernambucanos, eu e Telma, escolhemos Aracaju para constituir nossa família. Adônis e Letícia nasceram aqui. Durante a gestação de Letícia, decidi transformar meu banzo em arte. Eu já tinha alguns livros rabiscados e não publicados. “O Dote de Letícia” foi um presente que decidi deixar para ela. Resolvi fazer uma exumação da minha alma, pois como todo ser pensante tomei consciência da minha finitude. Letícia nasceu justamente quando eu completava 40 anos… idade na qual meu pai morreu, súbita e inesperadamente, num acidente de trânsito. Eu tinha apenas 12 anos de idade… não sei o que ele pensava do mundo nem o que esperava de mim… eu queria garantir que Letícia saberia quem foi seu pai… mas a brincadeira se tornou maior que o escritor e acabei fazendo algo que surpreendeu todos que leram, até a mim. No entanto, eu havia me prometido que aquele seria seu presente de 15 anos. Coloquei o livro no cofre durante todo esse tempo, até o dia do seu aniversário. “O Dote de Letícia” não tinha a proposta de transformar, apenas de instruir e encantar a leitora. Mas como foi fruto de uma transformação, acabou contaminado pelo teor da sua pena… para minha alegria e de quem o lê.
SÓ SERGIPE – Quanto tempo o senhor passou escrevendo este livro e quem é Letícia?
CHARLES ALBUQUERQUE – Escrevi a maior parte durante a gestação de Letícia, que é minha filha. Voltei a rabiscar no seu primeiro ano de vida. Depois em 2013 quando ela já estava com 5 anos fiz um complemento da obra. Ele ficou esquecido até agora quando peguei para revisão de João Lover antes da publicação.
SÓ SERGIPE – O “Dote de Letícia” tem um pouco de “O mundo de Sofia”, de Jostein Gaarder?
CHARLES ALBUQUERQUE – Eu precisaria ler “O mundo de Sofia” para saber de fato o quanto eles se parecem. “O mundo de Sofia” foi lançado no Brasil quando eu estava no final da Faculdade de Medicina e naquela época eu li apenas sua resenha e ele entrou na minha triste lista de postergação de leitura onde dezenas de livros aguardam para serem lidos… Sei do que se trata “O Mundo de Sofia”, porque foi um livro de grande relevância mundial. E confesso, ficarei feliz se forem parecidos e, principalmente, se “O Dote de Letícia” fizer o mesmo caminho literário que ele (risos). Os primeiros passos, ele já deu, no momento, está sendo traduzido para inglês e espanhol em Portugal (risos).
SÓ SERGIPE – É também de sua autoria “Fio da Meada – protocolo 428T”, romance escrito a cinco mãos. De que trata esse romance e como foi a experiência de ter outros quatro autores?
CHARLES ALBUQUERQUE – O Fio da Meada foi uma das melhores brincadeiras literárias que fiz. Comecei a escrever esse romance/novela a partir das horrendas e fabulosas histórias que eu escutava dos garimpeiros, ribeirinhos e índios que eu atendia durante o tempo que fiz pesquisa com polimorfismos humanos na Amazônia. Logo, convidei um amigo e depois outro e mais outro, até que finalizamos em cinco, para complementarem os diálogos que eu começava. Em comum, nós éramos controladores de voo com outras formações. Nossas visões díspares criaram uma história inusitada que ficou guardada por mais de 20 anos. Até que, em 2021, um dos coautores me pediu permissão para publicar e o fez sob seu estranho pseudônimo, W.Omokunrin Oluko. Trata-se de uma saga fantasiosa que se passa por três gerações, na cronologia de cem anos, durante a construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré… a história é uma viagem fabulosa.
SÓ SERGIPE – Na sua lida como escritor, o senhor diz que escreveu vários títulos “que estão aguardando a sagrada hora da exumação”. Quantos livros já tem escritos e quando a “sagrada hora da exumação” chegará?
CHARLES ALBUQUERQUE – Boa! Quisera me debruçar sobre todos eles agora e retirá-los do computador e dos rabiscos. Mas o processo de criação pode ser efusivo como um vulcão ou lento como a maturação do parmesão (riso). Nem sempre controlamos a vontade quando não temos a obrigação de produzir. Tenho oito títulos a finalizar, sendo dois de poesias, dois de medicina e 4 romances. Penso que o próximo a sair será “O Monge e o Depravado no Caminho de Santiago”. Esse romance irei terminar durante o Caminho de Santigo. Só não me pergunte qual dos dois eu sou. Certamente, estou muito longe de ambos… talvez, no fiel da balança (risos).
SÓ SERGIPE – Conversamos sobre seus estudos para curar feridas crônicas, sobre seus dotes como escritor, mas gostaria de saber mais uma coisa: o senhor também cura ferida do coração?
Eis que Charles Albuquerque escreveu um poema para responder à indagação:
Ferida do coração não tem remédio que dê jeito
Não tem cirurgia que extirpe
Não tem xarope que cure
Não tem curativo que sare
Nem médico que repare
Se for causada por perda irreparável só o tempo …
Ele faz beber o elixir do esquecimento
Se foi aberta por ingratidão de filho
essa não tem solução
é ferida crônica que corta a própria razão
Se for crescendo de mansinho
causada pela solidão,
essa é mais fácil
Basta ajudar o próximo
que chega à cicatrização
Se for aguda como corte de facão
Causada por uma traição
Essa dói mas passa
sara sem cicatriz
Basta se amar mais do que amava a pessoa infeliz
E amar muito mais o amor que há de vir.