quinta-feira, 21/11/2024
Carlos Pinna de Assis

Carlos Pinna era um homem raro

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Luciano Correia (*)

Nunca fui de fazer necrológios. Até hoje me devo textos sobre as perdas de amigos queridos que foram brilhantes no que fizeram na vida, começando pelo jornalista Fernando Sávio, que nos deixou ainda jovem, em 1989, mas já dono de si e de uma literatura moderna, o melhor texto de nossa imprensa até hoje. Foi quem nos apresentou a todos os beatniks da geração lisérgica de Kerouac, Burroughs, Ginsberg e ele, o gênio maior, Charles Bukowski – não era da geração beat, entendidos? O bukowsquiano Chico Mocó, maior cronista oral da vida boêmia aracajuana da quadra dos 70-90. O professor Luiz Alberto, doce e terno amigo, intelectual temperado por teoria, prática e coerência, uma de minhas conversas preferidas.

De Marcelo Déda, outro amigo querido, que, apesar do poder e da pompa, nunca deixou de ser um amigo, dos primeiros que tive em Aracaju, cúmplice de histórias minhas; e eu também de muitas dele. Luiz Antônio Barreto, intelectual que ocupava um lugar na cultura que, ao nos deixar, não deixou herdeiros. Em matéria de conhecimento histórico e sergipanidade, ficou sem segundos, terceiros, quartos lugares. Ficou um buraco que as velhotas e velhotes que engabelam os bestas da UFS jamais ocuparam.

Ontem Sergipe perdeu uma autoridade cinco estrelas, robusta, dessas que vestiam fardas das academias, do poder político e institucional do Estado. Tem tudo, pelo currículo e por tudo que fez por onde passou, para ser com justiça nome de uma grande avenida, um hospital ou universidade. Carlos Pinna de Assis, com sua cultura jurídica, bagagem política e técnica, era também um homem da cultura. O melhor seria dizer: um homem de espírito, humanista, inteligente, democrático, diplomático, um gentleman, como todos dizem. Acontece que era muito mais que isso.

Durante anos não privei da convivência com ele, pela diferença de idade e dos mundos de onde vimos, embora eu estivesse paralelamente o encontrando, por exemplo, nos períodos em que trabalhei na comunicação do governo João Alves. Ele um homem talhado para o exercício do poder, senhor de protocolos e liturgias, um profissional que conferiu solenidade aos cargos que exerceu, com a dignidade de poucos que os exerceram. Eu, um outsider, militante político dos panfletários movimentos de esquerda, da geração boca suja da Folha da Praia, um iconoclasta desde a adolescência.

Mas essas diferenças não impediram que nos aproximassem nos últimos anos, para além dos cumprimentos civilizados e elegantes que a celebridade do “doutor Pinna” sempre me dispensava. Pelas funções que ocupei nos últimos anos na gestão de Edvaldo Nogueira na Prefeitura de Aracaju, primeiro na Secretaria de Comunicação e hoje na Funcaju, travei com Pinna relações de trabalho que aprofundaram uma amizade que só cresceu exponencialmente. Eu, sempre incrédulo, seguro por não merecer as homenagens e a generosidade deste homem tão maior do que eu para gastar adjetivos comigo.

Assim foi em alguns livros que publicamos numa parceria do Tribunal de Contas de Sergipe com a PMA, quando os “enfados” da tarefa nos obrigaram a ir algumas vezes a Salvador para tratar de assuntos editoriais na Edisa, a editora oficial do governo da Bahia. Foi quando tive a chance rara de desfrutar de quatro horas de conversa na Linha Verde, descobrindo que o advogado Pinna, como o jornalista destas mal traçadas linhas, também foi aluno da UFBa, em períodos diferentes e que, só a partir dessa constatação, descobrimos tantos amigos e referências comuns. E degustar um almoço no novamente chic Hotel da Bahia, ali no Campo Grande/Avenida Sete, por onde passei nos quatro anos em que morei na residência universitária da UFBa no Corredor da Vitória, menino pobre, com dinheiro, muito mal, pra pagar a meia passagem até a feira de São Joaquim para comprar um melão e duas bananas-da-terra para complementar a pobre ração servida na R1.

Pinna sempre foi generoso comigo, seja na apresentação que fazia aos seus amigos importantes (um deles, nesse mesmo almoço no Hotel da Bahia, alguém laureado pela ONU e que esta memória corroída não recorda) ou em reuniões como na vetusta Academia Sergipana de Letras, quando me convidou para falar do meu livro sobre convergência digital e novos arranjos do jornalismo no patamar tecnológico. Outras vezes, sem pauta definida, me convidava para almoços no velho Cacique Chá, ocasião em que eu me convencia – justamente pela ausência de algum assunto específico – que fora convidado pelo instituto puro e simples da amizade.

Vai embora um dos maiores homens públicos de Sergipe dessa quadra mais contemporânea, na verdade um jovem ainda com tanto a fazer na província, sobretudo no campo da cultura. Um homem divertido, alto astral, avesso a disputas renhidas: a própria elegância em pessoa, em forma e conteúdo. Vai embora um amigo querido que eu tinha tantos planos para desfrutá-lo no status conferido por ele, o de amigo. E que, pelos tantos que tenho perdido e pelos poucos de valor que têm ficado, me deixa imensamente mais pobre e triste.

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(*) Jornalista e presidente da Fundação Cultural Cidade de Aracaju (Funcaju).

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Jornalista e presidente da Fundação Cultural Cidade de Aracaju (Funcaju).

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