quinta-feira, 21/11/2024
Sêneca

É loucura ou inteligência?

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“Nunca existiu uma grande inteligência sem uma veia de loucura.” Aristóteles (Citado por Sêneca, em Tranquilidade)

Rocelito Paulo Pinto
Rocelito Paulo Pinto (*)

José Barba Longa era um bom sujeito, e como tal, morava na praia, com vista privilegiada para o mar. Sua moradia ficava em um morro que despenca sobre as ondas do oceano, seu domicílio era uma brecha entre as pedras, abrigada das águas marinhas e pluviais.

Sua refeição eventual vinha ora da pesca, quando o mar compassivo lhe permitia um agrado písceo, ora do restaurante, quando ele ficava de butuca nos carros dos clientes, ou da sopa doada uma vez por semana pelo pessoal da Igreja que ele ia buscar muito mais pelo sorriso que recebia do que pela refeição, afinal, eram meninas bonitas, perfumadas, bem-vestidas e de boa família, e que educadamente lhe falavam “boa noite!”, “que Deus o proteja!”, “até semana que vem, seu José!”

Sua alcunha já o descrevia, seus longos cabelos brancos desgrenhados lhe ditavam a idade, não precisava detalhá-lo em mais nada, mas nem sempre foi assim…

José Barba Longa começou a vida vendendo livros de porta em porta, numa época em que não tinha barbas, época em que comprar livros era expressão social de cultura e economia, e toda casa de gente importante tinha uma estante repleta de livros; época em que o vendedor de livros não era confundido com político, religioso, pedinte, defensor intransigente da natureza ou consultor de cosméticos.

José era até um bom vendedor de livros, mas era muito melhor na resenha, pois sabia sintetizar o conteúdo sem contar a história, e na maior parte das vezes sua versão era melhor do que a do próprio livro e, assim, José valorizava as obras que vendia. Muitas pessoas compravam livros do José, não pelo livro, mas pela pessoa que era José.

Um dia disseram a José que ele venderia muito mais se, ao invés de caminhar com os livros até os clientes, ele fizesse com que os clientes caminhassem até os livros que ele vendia, porque assim ele teria mais livros para vender e as pessoas teriam mais obras para comprar, e ele, por sua vez, ganharia mais dinheiro…

José pensou “que mal tem em ganhar mais dinheiro?”. Então José alugou uma porta, e ali estacionou seus livros, mas os antigos clientes ainda pediam que José continuasse a levar os livros em seus domicílios, porque assim eles não perderiam tempo escolhendo títulos quando José já poderia levá-los escolhidos. E José passou a vender livros de dia em sua pequena porta, e no final da tarde corria para vender livros nas portas dos clientes.

Um dia o cansaço tomou conta de José, e percebendo que já tinha barba por fazer, também viu que não dava mais conta de vender e levar livros, e assim contratou um auxiliar para entregá-los, mas não demorou muito e os antigos clientes que recebiam livros em casa, passaram a caminhar até a sua minúscula livraria, com a desculpa de que o auxiliar que entregava livros não era o José, pois só ele sabia ser aquela pessoa inteligente com quem os clientes adoravam conversar.

O movimento cresceu, José quase não lia mais os livros que vendia e já se perdia entre os volumes amontoados, até que, um dia, um cliente vestido de fiscal lacrou o pequeno estabelecimento por falta de alvará e de um livro de contabilidade do qual José não tinha conhecimento.

Então, José indignado, e precisando vender livros, contratou um despachante, abriu uma firma, alugou um ponto maior num prédio histórico no centro da cidade. Agora José, com barba desenhada, alvará, conta em banco, seis auxiliares de venda, descobriu que, para vender livros, precisaria de contador, de emitir nota fiscal e que teria um inusitado sócio chamado Governo.

Foi assim que José se acostumou a um mezanino, de onde, ocasionalmente, postava-se sobre uma poltrona, alisava a barba que passou a cultivar com estilo, observava o movimento da livraria, analisava como seus colaboradores lidavam com os livros e só assim percebeu que entre eles havia uma mulher que não vendia quase nada. Então, um otimista José virou patrão, estabeleceu metas e filosofia de empresa, mas nem isso fez com que aquela mulher vendesse um montante que fosse digno e, enfim, o paciente José demitiu aquela funcionária, com todos os direitos que o contador julgara que ela tinha.

Decorrido alguns dias, José foi intimado e precisou de advogado. A ex-colaboradora denunciou José, que só então percebeu que, ao lado dos livros que narravam histórias, havia outros que descreviam regras que ele não leu. José foi multado impiedosamente porque havia funcionários e funcionárias, mas não havia banheiros distintos para eles e elas, o que teria prejudicado a dignidade daquela funcionária, que se via obrigada a dividir um espaço tão íntimo com quem ela não teria a menor intimidade.

José não compreendeu nada, mesmo assim seguiu fielmente a orientação de seu advogado, pagou multa, honorários advocatícios, indenização da funcionária, e ainda leu um livro sobre organização das estruturas do ambiente de trabalho. Agora só faltava cumprir a determinação extrajudicial com prazo determinado para construir um banheiro feminino em sua livraria.

Entretanto, havia outro livro com regras para prédios históricos. José não poderia mexer na estrutura do prédio sem contratar arquiteto, engenheiro, especialista em preservação de ambientes históricos, empresa de construção, autorização no patrimônio histórico, licença na prefeitura.

José pensou: as mulheres eram em menor número, melhor demiti-las e substituí-las por homens até que conseguisse resolver o complicado problema do banheiro feminino.

José foi intimado pela segunda vez e novamente precisou de advogado. José foi denunciado pelo grupo de ex-funcionárias, acusado de preconceito contra mulheres, por recusar-lhes a preservação do emprego sob a desculpa de não ter banheiro feminino, dissimulando sua vingança em face de justa demanda adotada anteriormente, manifestando evidentes indícios de sua opinião sobre a incompetência feminina para vender livros. José foi exemplarmente multado e dessa vez precisou do Banco.

Depois que pagou a multa, com o coração descompassado, José se pôs a ler as múltiplas e infinitas folhas de diminutas letras do contrato do empréstimo bancário. José lia, mas não entendia por que ao solicitar simples socorro financeiro, e arcar com juros tão ofensivos, precisaria contrair seguro de vida e seguro contra perda do emprego.

José percebeu que, ao assinar o reconhecimento da taxa de administração, também contribuiu para a campanha de combate à pesca predatória das baleias-azuis, proteção dos macacos pregos da Amazônia, preservação do farol tricentenário de São Francisco do Tatuí Pequeno e vigilância da nascente do Rio Vaza Barris.

A multa estava paga, todavia, reformas num prédio histórico que nem era seu, financeiramente nem pensar, então José pensou, e transferiu sua livraria para um Shopping: lá teria ar-condicionado, segurança, estacionamento para clientes e cento e dez banheiros para todo mundo, e sem o menor problema de dignidade.

Porém, os clientes do Shopping não eram clientes de José e nem gostavam tanto assim de livros! E agora José tinha alvará, vinte e sete colaboradores e colaboradoras, contador, advogado, empréstimo em banco, sócio com nome de governo, impostos, condomínio, aluguel, taxa de manutenção de ar condicionado, ticket alimentação, auxílio transporte…

A livraria faliu!

Mês passado a Prefeitura teve que despejar José Barba Longa de sua fenda na encosta, pois alguém demandou ação judicial em defesa do morro como área de preservação ambiental. Em face do tamanho da barba do Barba Longa, ele foi encaminhado para um abrigo psiquiátrico público, onde o diretor se recusou a interná-lo.

– Seu José, disse o doutor, o senhor não pode permanecer aqui! Os testes demonstram que o senhor não tem problemas mentais.

– Eu, Doutor, problemas mentais? Não senhor, de maneira alguma! Mas se o senhor puder observar melhor, vai verificar que lá fora todo mundo tem, e como tem! Está todo mundo ficando louco, Doutor! Pode ter certeza, e por isso é melhor para todo mundo que eu permaneça aqui.

O incêndio de Roma, 18 de julho de 64, óleo de Hubert Robert, no Museu de Arte Moderna André Malraux, em Le Havre

Vendo que o médico permanecia impassível, José relutou:

– Aproveitando a oportunidade, Doutor, o senhor já conheceu a obra  Tranquilidade da Alma? É do Sêneca… Filosofia pura, leitura indispensável para dias tenebrosos.

– Deus me livre, Sêneca foi conselheiro de Nero, o louco que incendiou Roma.

– Foi sim senhor, mas Conselheiro era cargo de apoio, não era cargo de poder. Se Sêneca tivesse poder sobre Nero, Nero teria estudado “Tranquilidade da Alma”, e hoje seria visto como sábio, mas ele preferiu brincar com fogo, por isso entrou para a história como louco.

– Está vendo seu José? É exatamente por isso que eu digo que senhor não pode ficar aqui… O senhor tem muito conhecimento, o senhor é muito inteligente mas não é louco.

– Mas pensando bem, doutor, é melhor ser louco do que ser inteligente, não é mesmo?

– Como assim?

– Nero era louco e o senhor se lembrou dele… Sêneca era inteligente, mas o senhor usou uma referência exterior de alguém com a loucura do Nero para rejeitar a inteligência do Sêneca… Se eu fosse louco como disseram que eu era, eu poderia ficar aqui sendo sustentado pelo Poder Público, com direito inclusive à sua assistência, mas se eu for inteligente como o senhor quer que eu seja, serei desalojado deste abrigo assim como a prefeitura me despejou do morro… Isso é ou não é loucura, Doutor?

 

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(*)  Militar, filósofo, torcedor da Estrela Solitária, apaixonado pela vida e amante da liberdade, Fluminense por acidente, sergipano por opção.

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(*) Militar, filósofo, torcedor da Estrela Solitária, apaixonado pela vida e amante da liberdade, Fluminense por acidente, sergipano por opção.

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