quinta-feira, 21/11/2024
Kombi, Elis Regina
ID.Buzz e a Kombi lado a lado no comercial VOLKSWAGEN/REPRODUÇÃO

Elis e Maria Rita: ainda somos os mesmos?

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Por Prof. Dr. Claudefranklin Monteiro Santos

 

O que eu poderia acrescentar de novo à mais nova polêmica envolvendo, mais uma vez, temas sensíveis como memória, seus efeitos e seus usos? Certamente, não muito. Mas, como cidadão e historiador não poderia deixar de expressar algo, nem que fosse no sentido de reforçar o que já vem sendo expresso, sem que isso, de modo algum, contamine a minha admiração pelas personagens envolvidas; de modo particular uma delas, ainda viva para, se for o caso, não necessariamente se defender, mas dar a sua versão dos fatos. Até que isso ocorra, vou na direção de tudo que já vi, ouvi e li: foi um tremendo mau gosto, para não dizer um verdadeiro constrangimento nacional e internacional.

Refiro-me ao comercial que “celebra” os 70 anos da Volkswagen. A empresa contratou os serviços da AlmapBBDO, tendo como um dos mentores da peça, Marco Gianelli (Pernil), que criou uma propaganda usando inteligência artificial para “recriar” a imagem, em vídeo, de Elis Regina, fazendo um dueto com sua filha, a também cantora, Maria Rita, interpretando a canção “Como Nossos Pais”, de autoria de Belchior.

Quando meu filho me mostrou o comercial, já em tom e reação indignadíssima, à primeira vista, como parece ter sido a intenção de seus mentores, causa arrepio na pele, um nó na garganta e os olhos ficam marejados. Mas, logo depois, o lado racional e crítico fala mais alto e percebe-se uma série de coisas que, talvez, nem mesmo os filhos de Elis, que autorizaram a gravação e exibição do comercial, tenham percebido. O fato é que a repercussão está sendo muito mais negativa do que positiva.

Particularmente, não pretendo entrar em detalhes ou me posicionar sobre dois pontos que estão entre os provocadores de algumas das discussões: o respeito à memória da falecida (Elis morreu no dia 19 de janeiro de 1982); e a questão da inteligência artificial. Quero me ater sobre a questão da memória histórica e os efeitos que seu uso pode causar nas pessoas e como seu uso pode também atender a uma parte da sociedade que tem nostalgia de regimes totalitários, como o ocorrido no Brasil entre 1964 e 1984.

Antes, me permitam pensar como teria se sentido o autor da canção, o cantor cearense Belchior, falecido no dia 30 de abril de 2017. Conhecido por seu senso crítico e por suas lutas em favor da liberdade de expressão no melhor sentido que essa palavra pode denotar, certamente sequer teria autorizado. Se houve um “desrespeito” à memória de Elis, penso que também a dele deve ser posta em questão.

De tal sorte que me sinto plenamente contemplado com a análise de Thiago Amparo, em artigo intitulado “Por trás do deepfake da Elis”, publicado na Folha de São Paulo, no dia 6 de julho do corrente ano, do qual, só o início do primeiro parágrafo já dá a tônica da polêmica e do que eu e uma boa parte das pessoas pensam sobre o assunto: “Não quero lhe falar, meu grande leitor, das coisas que aprendi nos comerciais da TV, por mais emocionantes que possam ser e de fato são. Quero lhe contar, em vez disso, como muitos não sobreviveram à ditadura e tudo o que aconteceu com eles, inclusive envolvendo empresas”.

Se por um lado a Volkswagen desperta nostalgia por conta de veículos como o Fusca e a Kombi, por outro ela, ao longo de suas sete décadas de existência, também esteve envolvida em situações de deixar qualquer pessoa ruborizada. E artigos como o de Amparo e outros, além de pronunciamentos de diversos especialistas em redes sociais vão nessa direção, apontado os males da empresa e seu envolvimento com o regime militar brasileiro, por exemplo.

Assim, como disse antes, quero apenas reiterar o que antecipei no início desta crônica, indo ao encontro destas análises e dizendo que a referida propaganda se  não foi um grande mal-entendido, certamente foi de um enorme vacilo, isso se não teve uma intencionalidade por trás para agradar essa gente que sente saudade da ditadura. O fato é que o comercial em si nos leva a pensar, como fizera Belchior, se realmente ainda não somos os mesmos e vivemos como nossos pais. Particularmente, tenho a certeza que não, do contrário, não estaríamos nós aqui a nos indignar e a questionar sobre as reais motivações desse comercial, se meramente empresariais, se políticas, se emocionais ou do quer que tenha sido.

Aprendi com a sabedoria popular, sobretudo com a educação de minha mãe, que por trás de uma boa intenção nem sempre se tem uma boa índole, mas se escondem as mais cínicas e perversas maquinações. Assim, fico com um trecho da canção de Belchior que diz, com muita precisão e válido para todos os tempos, sobretudo o nosso: “Você me pergunta pela minha paixão / Digo que estou encantada como uma nova invenção / Eu vou ficar nesta cidade, não vou voltar pro sertão / Pois vejo vir vindo no vento cheiro de nova estação / Eu sei de tudo na ferida viva do meu coração” (1976).

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Sobre Claudefranklin Monteiro

Claudefranklin Monteiro Santos
Professor doutor do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe.

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