Marcus Everson Santos (*)
Para o amigo Léo Mittaraquis
Ó consciência! A que abismos de terrores e medos me trouxestes, do qual fuga não há. Em fundo fundo mais me afundo.
John Milton – Paraíso Perdido (Verso 840)
O avanço da ciência e as reflexões levadas a cabo pelo “sujeito da modernidade” passaram a dirigir um olhar cada vez mais lógico e racional para os fenômenos da natureza. Tal como advogava Descartes, em seu “Discurso do Método”, era necessário colocar em suspensão toda a realidade de forma metódica e, por via da dúvida hiperbólica, inquirir o mundo. Tido por muitos como um dos principais mentores intelectuais da modernidade, Descartes entendia que a subjetividade não é psicológica e, sim, lógica, quer dizer, concernente a uma ordem das razões. Com Descartes, tornou-se necessário conduzir a razão à procura das verdades científicas. Conduzir a razão a verdades nas ciências significava elevar a nossa natureza racional a certo grau de perfeição:
“Aprendi a não crer demasiado firmemente em nada do que me fora inculcado só pelo exemplo e pelo costume; e, assim, pouco a pouco, livrei-me de muitos erros que podem ofuscar a nossa luz natural e nos tornar menos capazes de ouvir a razão”.
(DESCARTES, 1979, p.33)
O ofuscamento da luz natural humana deveria ser substituído pela clareza e distinção, critérios racionais capazes de orientar o espírito à verdade. Será por meio desse tipo especial de racionalidade que se dará um novo tratamento frente aos elementos de compreensão do mundo. Desejavam os filósofos da natureza que todos os fenômenos naturais fossem analisados a partir de uma visão racional e mecânica, deixando de ser dependente do místico e do religioso. Em Descartes, ao invés de seguir os diversos preceitos que compõem a Lógica, ele apoiou seu método de investigação em apenas quatro etapas:
[…] jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal; isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e de nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e tão distintamente a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida; o segundo, o de dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas parcelas quantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor resolvê-las; o terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos; e o último, o de fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir.
(DESCARTES, 1979, p.37-38)
Segundo Descartes, as regras do método visavam, dentre outras coisas, conduzir o espírito rumo à verdade. Particularmente, sua regra da evidência mostra o desencanto com a “inutilidade” prática das Letras, deslocando, a partir disso, a sua atenção para o estudo das matemáticas. A sedução pelas matemáticas levou Descartes a buscar uma construção sólida e exata frente às leis da natureza. O desenvolvimento de sua trajetória filosófica o levou a acreditar que havia uma ligação profunda entre as leis da matemática e as leis da natureza, revivendo o antigo ideal pitagórico de submeter o universo aos números, conduzindo a razão para um conhecimento claro e distinto.
Na contramão das reflexões de Descartes, Giambattista Vico, com a publicação de seu “Método de Estudos de Nosso Tempo”, de 1709, expressou a sua visão anticartesiana tanto do ponto de vista do método geométrico-analítico na Física e na Mecânica quanto do método das Ciências Naturais, sobretudo, quando aplicados nos estudos acerca dos problemas humanos. Sobre tal contraponto, o estudo do professor Humberto Guido, “Providência divina e ação humana, a ideia de história da Scienza Nuova de Vico”, nos diz que:
“[…] Vico está de acordo com o racionalismo, porém, é preciso fundamentar essa certeza. Para tanto, não serve o formalismo do cogito, pois o pensar, nos termos que são empregados por Descartes, é apenas o indício da convicção do eu que se descobre dotado de pensamento até mesmo no instante em que nega a própria existência”.
(GUIDO, 2006, p. 124-125).
Os estudos acadêmicos de Gramática e Latim, típicos do Humanismo Escolástico, continuaram a marcar forte presença na Itália, entretanto Vico contrapunha-se tanto à tentativa de matematização das questões humanas quanto ao puro exercício gramatical na difusão da ciência. Na perspectiva de Vico, não era cabível subordinar todas as esferas de questionamento à evidência única e exclusiva da razão abstrata. A partir dessa percepção, Vico esboça em sua obra Ciência Nova a ideia de que a história das nações, de seu desenvolvimento histórico, esteve sob o amparo da divina providência que se expressa no engenho humano:
“[…] O homem dispõe do livre arbítrio, embora débil, de converter em virtudes as paixões, desde que naturalmente ajudado por Deus com a providência divina, e, sobrenaturalmente, pela divina graça”.
(VICO, 1979, p.33).
O estudo do professor Guido (2006) aponta-nos ainda que:
“Os escritos de Vico representaram com propriedade a tendência predominante do ambiente cultural e acadêmico da Nápoles barroca, e o lugar alcançado por Vico na história da filosofia confirma a sua condição de protagonista e principal intérprete desse cenário. Vico optou pela conciliação entre a herança deixada pelos antigos e a bagagem científica dos modernos. É essa aproximação entre o passado e o presente, entre o pensamento clássico e a filosofia das Luzes que dita a linha de ação do pensamento de Vico, e está contida nas suas obras.”
(GUIDO, 2006, p.119)
Afastando-se progressivamente de uma visão teológico-histórica, em que se colocava Deus como o grande regente universal da história, substituindo-o pelo novo engenheiro, o próprio homem, as descobertas técnicas e científicas seguiram seu curso, promovendo fortes transformações políticas, sociais e econômicas. Cada uma dessas mudanças expressa exatamente uma correspondência entre o fato e a verdade histórica como resultado da ação humana.
Sendo o homem e sua razão natural o novo condutor da história, aquilo que progressivamente assistimos acontecer em seu desenrolar é resultado de sua responsabilidade. Pesa sobre o homem moderno o desafio de enfrentar cada nova dificuldade social e política por meio da razão. A chave da Ciência Nova em Vico exige que os homens mergulhem cada vez mais nos fatos concretos da história com vistas a conhecer os resultados de sua ação efetiva. Gradativamente, o impulso por se instalar uma nova ciência e um novo olhar sobre o mundo foi recolocando a história das sociedades em um novo curso progressivo de boas intenções.
A escatologia revolucionária moderna confiou à razão humana a missão de reconstruir o mundo, mas, seu impulso demasiadamente humano ignorou as idiossincrasias dessa nova fé. O culto à razão progressista ensejou reconstruir o paraíso perdido. Mas, como se costuma dizer: “de boas intenções o mundo está cheio”.
O movimento revolucionário moderno, mesmo contando com instrumentos de crítica, também se sustentava em um credo. Para melhor abrigar os seguidores do credo revolucionário no constante aperfeiçoamento do homem por meio do progresso científico, a fé na perfectibilidade histórica da humanidade serviu como principal argamassa. O filósofo e cientista político John Passmore, em seu livro “A perfectibilidade do homem”, afirma que:
[…] perfectibilistas produziram argumentos que mostram que nada na natureza do homem o impede de ser perfeito. E para contrapor a visão de que a perfeição humana só poderia ocorrer através da graça divina, eles demonstraram, para satisfação própria, que o homem pode ser aperfeiçoado através do uso judicioso de controles educativos ou genéticos.
(PASSMORE, 2004, p.389).
Com o que nos aponta Passmore (2004), as noções de progresso e de perfectibilidade do homem são caríssimas ao pensamento moderno, de modo que não se poderia tratar da modernidade sem levar em conta a utopia subjacente à crença de que o futuro reserva um destino melhor diante do que ocorreu no passado e, para sua consecução, basta apenas que se apliquem instrumentos científicos corretos e que o homem conheça os resultados de sua ação efetiva. Tais instrumentos de controle e organização social concorreram para o surgimento do Estado Moderno juntamente aos instrumentos sociais, políticos e educacionais definidores de uma nova civilização.
Todo esforço da razão humana, embora tenha se arvorado atingir uma compreensão geral da história, não passou de pura arrogância. Embora os filósofos modernos entendessem que o esforço em conduzir a razão às verdades nas ciências significava elevar a natureza racional do homem à perfeição, tal esforço jamais foi alcançado. Visões mecanicistas e gnósticas, respectivamente, as reflexões de Descartes e Vico não passaram de miragens da razão.
No paraíso perdido da religião científica moderna, quanto mais ampla a razão humana contemplou a hipótese da perfectibilidade, mais fundo fez sucumbir sua autoconsciência frente ao abismo. Mutatis mutandis, variações do conceito de perfectibilidade tiveram consequências catastróficas tanto do ponto de vista das liberdades individuais quanto do destino político e social de muitas nações que, ao radicalizarem tal ideia, fizeram uso de expedientes eugênicos e totalitários.
Diante da imperfectível perfectibilidade humana e, guiado por um ardiloso e insistente “arcanjo perdido”, o credo da subjetividade revolucionaria moderna escolheu “reinar no inferno que no céu servir”. (John Milton).
Esse magnifico Artigo me passou uma grande sensação de pertencimento ao mundo depois de muito tempo de contato com a Luz ofuscante da Razão. Sabedoria, Estética e História deslizando sobre meus neurônios e ajustando os circuitos cerebrais de forma suave e sensível. O Professor Marcus Éverson é uma daquelas pessoas que sentimos orgulho por ter passado na nossa vida. O mundo seria muito melhor se suas palavras fossem ouvidas com mais atenção.
Excelentes reflexões, nobre amigo Marcus Éverson.
O seu texto evoca um paralelo inconfundível com a crítica contundente de Dostoiévski contra o que ele chamou de “espírito euclidiano” (expressão cara a ele), como assinalou o filósofo russo Nikolai Berdiaev.
A arbitrariedade e a revolta contra o Pensamento motor do mundo dissimulam à consciência humana o próprio acesso à ideia de liberdade: a liberdade se coloca desde logo como inacessível ao espírito que se desprendeu deste Pensamento.
Não há no mundo tanto mal e sofrimento senão porque a liberdade repousa no seu fundamento.
Sem dúvida, pelo preço de sua arrenegação poder-se-ia evitar o mal e o sofrimento. O mundo então seria obrigatoriamente bom e feliz.
Mas ele teria perdido sua semelhança com Deus. Pois esta semelhança reside antes de tudo na liberdade, não como um presente obrigatório de uma ordem (cientificista, materialista, positivista, socialista, teocrática), mas na liberdade como uma precedência necessária a qualquer ordem.
O mundo que quisera ter criado “o espírito euclidiano” em revolta de Ivan Karamazov, ao contrário do de Deus que está repleto de mal e de sofrimento, seria um mundo feliz e bom.
Mas nele não haveria liberdade, tudo nele teria sido obrigatoriamente racionalizado.
“O espírito euclidiano” poderia construir sobre a necessidade um mundo essencialmente racional, do qual o irracional seria banido.
Entretanto, não há nenhuma medida comum entre o sentido que anima o mundo divino e “o espírito euclidiano”. Ela fica-lhe impenetrável, encerrado que está num espaço de três dimensões.
É mister penetrar numa quarta dimensão para perceber o sentido divino do mundo, e a liberdade é justamente a Verdade da quarta dimensão, inacessível nos limites da terceira.
“O espírito euclidiano” é, pois, incapaz de resolver o problema da liberdade.
Isso explica por que Dostoiévski repudia tanto a teoria humanitário-positivista irresponsável que encara o mal de um ponto de vista social, exterior ao homem.
O castigo espreita o homem nas profundezas extremas de sua própria natureza.
Dostoiévski só alude com ódio a essa teoria humanitário-positivista. Via nela a negação da profundeza da natureza humana, a negação da liberdade do espírito humano e da responsabilidade que lhe é aderente.
Um tal rebaixamento do homem, uma tal negação de sua primogenitura excitava a cólera de Dostoiévski. Não se podia exprimir com calma sobre esta doutrina, então bastante espalhada, e ainda hoje o é.
O homem não pode se rebaixar a despojar o fardo da responsabilidade para descarregá-lo sobre circunstâncias exteriores de que ele seria pretensamente o joguete.
Toda a obra de Dostoiévski é uma refutação dessa calúnia jogada sobre a natureza humana.
Uma força impessoal não poderia ser responsável pelo mal, não poderia ser um motor primeiro.
Dostoiévski tratou o mal de maneira antinômica, e a complicação de sua atitude levou alguns a duvidar que ele fosse cristão.
Dostoiévski negou-se a encarar o mal do ponto de vista da Lei. Ele quis “reconhecer o mal”, e nisto foi, à sua maneira, um gnóstico.
O mal é o mal. Sua natureza é interior e metafísica, não exterior e social.
Por isso, Dostoiévski pode parecer um escritor perigoso, porque é indispensável lê-lo na atmosfera da liberdade individual.
E todavia é preciso reconhecer que ninguém tão poderosamente como ele lutou contra o princípio do mal e contra as trevas.
Mas a moral da lei não pode servir de resposta àqueles de seus heróis que se embrenham pelo caminho do mal.
Pois não se expia o mal por um castigo exterior, mas pelas consequências inelutáveis que ele traz em si.
Assim, é possível compreender a antipatia de Dostoiévski contra o catolicismo e o socialismo: a liberdade deve preceder a ordem, e não ser meramente um presente necessário de uma ordem dada.
Há uma ideia sobre a qual Dostoiévski torna reiteradas vezes: é a do liame existente entre o socialismo e o catolicismo.
Vê ele no catolicismo, na teocracia papista, a mesma sedução que no socialismo. O socialismo não é para ele senão um catolicismo secularizado.
Por isso a “Lenda do Grão Inquisidor” foi escrita simultaneamente contra o socialismo e contra o catolicismo (mais contra o socialismo que contra o catolicismo, na opinião de Nikolai Berdiaev).
Dostoiévski creu que a ortodoxia oriental tinha salvaguardado esta liberdade cristã mais que o catolicismo ocidental, apesar de esta crença não ter sido sempre justificada. A liberdade cristã não existiu no bizantinismo, na teocracia imperial, mais do que na teocracia papista.
Marcus Éverson, o seu texto é bastante elucidativo no sentido de despertar a consciência e o espírito humano contra a degenerescência da liberdade em despotismo, sob as máscaras do bem.
Bom dia, meu irmão em armas.
“Se você insiste em mudar o sistema que é lhe imposto, você é escravo dele. O importante é criar o próprio sistema”
Olavo de Carvalho
Saúdo a você, Marcus Éverson, intelectual pleno e maduro, portador de cognoscibilidade no mais alto grau de excelência. Seu artigo, a mim dedicado, alça altura bem acima do meu paupérrimo espírito.
Honra-me e constrange-me. Sentimento, este último, consequente do receio de que minha percepção estético-filosófica não detenha lastro necessário que faça jus a tal gentileza, a tão significante e precioso carinho.
Tanto mais por você exercitar, nas entrelinhas, com larga elegância, a anamnese. Seu artigo, vale dizer, sua reflexão a mim direcionada, traz, via graça divina da palavra, o ato conservador e sagrado, isto é, platônico (no melhor estilo de Vico, o qual em Método de Estudos de Nosso Tempo condena a reprodução das grandes obras de arte da antiguidade. Serão sempre, segundo ele, arremedos), de recuperação, pelo menos, de algumas referências das quais não devemos, sob risco de danação, abrir mão, muito menos alterá-las. O que creio ser o correto e o estratégico, neste caso, é preservá-las em sua essência e sua forma.
Assim, criemos nossos próprios sistemas, sem pretensões à originalidade, mas, sim, conforme as duas sagradas linhas de pensamento civilizatório – a greco-romana e a cristã – , em consonância com a essence absolue da Tradição Ocidental.
A ouverture com versos de John Milton só colaborou para que eu fosse acometido pelo êxtase que supera o risco aristotélico e perda e partida. Pelo contrário: firmou-me na doce e trágica temporal eternização de um belo instante – a leitura das suas palavras, caro amigo.
Para tanto, em plena concordância com Giambattista Vico (e quem sou eu para contrapô-lo?), virtude plena é fruto abençoado do engenho humano — quando este, em salmodiante humildade, submete-se à Luz da Inteligência Divina, nos passos de Santo Anselmo, “fides quaerens intellectum”.
Voltando ao filósofo e historiador italiano, Vico (citado com maestria por você), saibamos cultivar e preservar (o destino do Ocidente, do qual somos filhos, não raro ingratos, depende fundamentalmente disto) a linguagem, o mito e a cultura para que compreendamos, profundamente, nossas próprias motivações, e saibamos selecionar bem as alicerçadas na sólida argamassa da Virtude.
Não sei (divergindo um tantinho do amigo) se Vico incorreu em miragens tanto quanto Descartes. Afinal, o napolitano diz em Ciência Nova que: “A física dos ignorantes é urna metafísica vulgar, com a qual atribuem as causas das coisas que ignoram à vontade de Deus, sem considerarem os meios de que se serve a vontade divina”. Ou quando parafraseia Políbio: “Pois, se nele não existissem religiões e, portanto, repúblicas, não existiriam absolutamente no mundo filósofos e, se a providência divina não tivesse conduzido as coisas deste modo, nunca se teria qualquer ideia nem de ciência nem de virtude”.
Em tempo: a coragem do amigo em incluir, num artigo aparentemente endereçado aos leitores em geral, assinala a ironia, pois, com Passmore, seu texto, caríssimo, revela-se ainda mais iniciático. Ou seja: nosso debater diário, espiritual e empírico, com a presença dos concomitantes termos antípodas – Causalidade/Mente Divina. Bem, que cada um busque em seu cada qual a melhor forma de compreender, se puder fazê-lo.
Bem, sendo, este aqui, um texto de agradecimento, traído pela paixão da amizade e da admiração, certamente revelar-se-á eivado de equívocos e tolices. Oro que não sejam tantos.
Rejubila minh’alma ao viver tal experiência intelectual (coisa como uma fenomenologia transcendental, por que não?), de privar de tão qualificada amizade.
Forte Abraço, Ósculo Santo!