Por Leo Mittaraquis (*)
Sobre texto de apresentação da obra e as partes um, dois e três do livro (de um total de nove): “O Vale dos Abortados”; “Jonas”; “Verbo e Palavra”.
“Entre o Céu e o Inferno, existe o Humano”
Mateus Ma’ch’adö
Mateus Ma’ch’adö está longe de ser um iniciante. Entretanto, com toda a certeza, é um iniciado à larga e à excelência. Seu recente livro é fidelíssimo testemunho disso, e o é em forma e conteúdo. YHVH deve ser compreendido, no campo da crítica literária, como livro, obra literária. O que não o afasta, de modo algum, da tradição — recordemos Harold Osborne — que mantém a consciência de que o ato poético se manifesta em fato racional, portanto, explicável e, concomitantemente, insondável mistério, do qual as origens ocultam-se no mais absconso da alma, entre as tramas do impenetrável tecido divino. A partir desta construção estética e filosófica, na qual são essenciais os fatores intuição e empatia, e a adotar, em termos, o idealismo metafísico de Osborne, entendo a produção poética de Ma’ch’adö em torno dos eixos teológico, teleológico e neoplatônico. Ou seja, o propósito do autor em aplicar a lente do espírito a um objeto de conhecimento, no caso, a relação pessoal do poeta com Deus e a relação de Deus com o mundo, desde a criação deste por Aquele.
No mais das vezes, abordo com muito cuidado o possível aspecto transcendental [no sentido escolástico], se estou a debruçar-me sobre o exercício poético, mais exatamente, o de elaborar poemas. Porém, no que tange às composições, vale dizer, ao total da lavra de Ma’ch’adö, não há, em mim, na condição de crítico, o risco de confundir o caráter, augusto, venerando, inviolável, respeitável assumido e manifesto pelo autor, mediante os sinais do Sagrado no conteúdo, com o conceito ordinário do mítico, num deixar-me levar pela crença em coisas sobrenaturais, sem base racional. Pois, ciente de que “Fides quaerens intellectum”, porto-me, sabendo-me indigno e não autorizado, qual discípulo de Santo Anselmo de Cantbury. Para maior entendimento quanto a essa minha posição, recomendo leitura atenta de The Cambridge History of Medieval Philosophy, organizada por Robert Pasnau, pesquisador e autor do mais elevado calibre.
Ma’ch’adö, calejado pelo lidar com a poesia, com a prosa e com a ensaística, sempre e sempre no mais alto nível – “Origami de Metal”; “A Mulher Vestida de Sol”; “A Beleza de Todas as Coisas”; “Nerval”; “As Hienas de Rimbaud [romance]; “17 de Junho de 1904 – O dia que não amanheceu” [ensaio sobre a obra de James Joyce] – entrega, com generosidade, mais uma produção cuidadosa em todos os aspectos: desde o planejamento gráfico até a composição textual.
O poeta demonstra a rara capacidade de mover-se com elegância e leveza ao longo da extensa e constante – nas palavras de João Ubaldo Ribeiro – lida de estivador, ou seja, o compor seus poemas com largo conhecimento de causa, método e efeito. Pois bem disse Horácio, “ser sabedor é o princípio e a fonte do bem escrever”. Sem dúvidas, Mateus Ma’ch’adö o sabe.
Ante o leitor, juiz destas mal traçadas linhas, eu, a cuidar para não ser acusado de derramar elogios ocos e frívolos, apresento as provas.
O livro é dividido em nove partes: “O Abismo de D’us” [apresentação], “O Vale dos Abortados”, “Jonas”, “Verbo & Palavra”, “Adoração”, “10 5 6 5”, “Apócrifo”, “Posfácio” e “Notas” [estas não são apenas notas, mas, sim, constituem um pequeno roteiro instrumental referente a passagens bíblicas essencial para o enriquecimento da leitura].
Quanto à apresentação, escrita pelo próprio autor, esta é caracterizada por referências votivas, confessionais, glorificantes, pari passu ao distinto gesto de abrir as portas do discurso e receber convidados entre os melhores e entre os perfeitos, a saber: Carlyle, Borges, Dante, Ezra Pound, William Blake, Elias Paz e Silva – os melhores; Deus e Jesus – os perfeitos.
Afinado com os signos e símbolos não arbitrários, presentes na complexa e esmerada e breve introdução, o poeta exercita, com engenhosidade, tanto o “tom” transcendental quanto o “tom” materialista, próprio do labor terreno, a oferecer ao leitor, mais que mera justificativa, senão o caminho das pedras, este a se revelar dotado de clareza e segurança, ainda que estreito. Afinal, largos não são os caminhos em direção ao conhecimento.
Ma’ch’adö se decide pela trilha da cura intelectual e espiritual, a meditar os preceitos e respeitar os caminhos, a aliviar a própria mente das noções sobre as quais, se o incauto insiste, perder-se-á no labirinto das contradições.
Quem conhece, se ungido com o óleo da benevolência, oferece a mão, previne e explica. Nesse sentido, este comentário crítico não alça voo à mesma altura das palavras do autor de YHVH. Concedo, então, espaço ao poeta:
“Em relação ao presente livro, propriamente dito, começo uma nova fase, não apenas na forma, na sua estilística, mas também no conteúdo. Com YHVH, dou início a um resgate, pessoal, da antiga tradição poética, com formas fixas; daí que todo o livro é constituído por sonetos, em grande parte. A formação da tradição poética na cultura ocidental, reconhecida, hipervalorizada e disseminada como parâmetro para a criação, é a greco-romana, porém a cultura judaico-cristã, tendo a Bíblia como Cânon poético-literário, também é fundadora da nossa cultura. E, bem como testificou o poeta William Blake, a Bíblia é o Código dos códigos da literatura ocidental, ou seja, mais que a obra homérica”.
Ma’ch’adö prossegue, então, numa inversão copernicana, a deslocar Homero do centro do sistema planetário que é a Tradição Ocidental, apoiando-se na percepção williamblakeana de que é a Bíblia, além de “Livro dos Livros”, também, qual centro gravitacional, o “Código dos Códigos”. Deste modo, o poeta, ciente da missão que lhe foi confiada, adverte que:
“O que significa que a minha poética não irá se prender, em se tratando de formas fixas, na tradição greco-latina, mas aos poucos seguirá adiante, buscando mais a sua identidade no cânone da tradição bíblica em sua forma e estrutura”.
Ou seja: na produção poética de Ma’ch’adö, os poemas épicos, fundados nas guerras, nas grandes conquistas, cedem lugar às Sagradas Escrituras. Mateus exalta o Verbo e minimiza a própria verve, quase que a anulando, a nos recordar, num tom admoestador, que, apesar de reconhecer – sob a referência de regeneração e salvação – a si o poeta e o profeta, as duas condições ainda se encontram em aperfeiçoamento. Valho-me, então, aqui, das sábias palavras de Elias Canetti: “O que ocorre, na realidade, é que ninguém será hoje um poeta se não duvidar seriamente de seu direito de sê-lo”.
Em tempo: que não incorra, caríssimo leitor, ao ler este artigo, no equívoco de “entender” que estou a pôr as narrativas mitológicas contra a narrativa bíblica. Recomendável, então, refletirmos sobre a seguinte observação da pesquisadora e historiadora Edith Hamilton: “A mitologia grega é em grande parte composta de histórias sobre deuses e deusas, mas não deve ser lida como uma espécie de Bíblia Grega, isto é, um relato da religião grega. O mito nada tem a ver com religião. É a explicação de algo na natureza. Os mitos são a ciência primitiva, resultado da primeira tentativa dos homens de explicar o que viam ao redor deles”.
Portanto, nada de surto behaviorista neste rascunho. Meu objetivo é esclarecer e interpretar o mais minuciosamente possível, dentro dos meus limites, das minhas deficiências, o discurso do poeta.
O Vale dos Abortados
O que impacta ao leitor, nesta primeira parte, logo no primeiro poema, é a voz do bebê abortado. Este detalha como a coisa se deu. Ma’ch’adö não se inclina amenizar a crueza do procedimento. Leiamos, das duas primeiras estrofes – os poemas foram compostos na estrutura de sonetos –, o quarto verso de cada uma: “Pensou: de carne é só um pacotinho”; “Já não vivo mais, virei um bosteiro”.
“O Vale dos Abortados” é um severo “J’Accuse”. Ma’ch’adö, mediante sete poemas em forma fixa, numerados, sem título, assume-se resoluto antiabortista. Os poemas, é bom frisar, não obstante o tom de protesto, são bem elaborados. Nada há de panfletário. Os dois abortados que depõem – primeiro e segundo poemas – são porta-vozes do autor. São o leitmotiv que dará, ao longo dos sete poemas, o tom aos diálogos estarrecedores.
Nesta condição o discurso poético decorre em primeira pessoa, num intercâmbio entre narrador e protagonistas. O poeta transfigura-se entre aquele que ouve e reporta; aquele que narra em primeira instância; aquele perplexo e amedrontado homem comum e devoto.
A partir do terceiro poema, desta primeira parte, Ma’ch’adö, deixa-se “ouvir”. Sua voz, doravante, se manifesta entre choros infantis e a fala do poeta Dante Alighieri. O autor de YHVH busca no divino florentino o seu Virgílio, ou seja, seu guia em meio a uma senda infernal:
Sobre um morro alto, à beira da ravina,
a escuridão cegava ao tentar discernir,
sombra ilustre que surgiu em tua luz divina.
Ao reconhecê-lo me assustei, sem saber reagir.
Ao se aproximar, só perguntei: onde estamos?
Aqui é o também chamado Vale do Infante
Respondeu com voz solene o poeta Dante.
Debaixo de choro de criança, vagamos.
A primeira estrofe do poema III tocou a mim por ser um eco refinado dos trechos iniciais, versos 1, 2 e 3 da Divina Comédia (Canto I):
Em meio caminhar de nossa vida
fui me encontrar em selva escura:
estava a reta minha via perdida.
A segunda remeteu-me aos versos 61, 62 e 63:
Quando eu já para o vale descaído
tombara, à minha frente um vulto incerto
que por longo silêncio emudecido
E aos versos 64, 65 e 66:
parecia, irrompeu no grão deserto:
“Tem piedade de mim”, gritei-lhe então,
“quem quer que sejas, sombra ou homem certo”.
O poeta (autor de YHVH) sofre a contingência própria de um peregrino, encontra-se perdido. Tanto mais por tudo à volta manter-se às escuras. A alegoria ressalta a falta de conhecimento, a oscilação quanto a fé. O corpo e a alma fraquejam, sentem o rondar do engano, da corrupção, da dor e do mal. Tal como Dante foi advertido às portas do Inferno, quanto à negação da segunda virtude, Esperança, o mesmo dar-se-á quando os poetas Ma’ch’adö e Dante se encontram no vale. Lemos dos dois quartetos do Soneto IV:
A opressão era tamanha em densa treva
que às vezes Dante, atento, me segurava.
Veio a nós a alma atormentada de uma criança:
Oh tolos! Deixem aqui toda a esperança!
Gemeu apontando o dedo em riste contra nós,
quando partiu em revolta com olhar atroz.
Dante suspirou um riso melancólico,
julguei tal Comédia um ato simbólico.
Tal qual o Inferno, livro primeiro de A Divina Comédia, o Vale, o qual tomo, na obra de Ma’ch’adö, como um personagem por si só, instrui aos “visitantes” a abandonar a santa expectativa. Determinação verbal e implacável – o seu manifesto de propósito e intenção. Toda a unidade de substância daquele horripilante lugar baseia-se, portanto, num completo estado de dor, vazio, “de naturezas defraudadas, de vil perversidade”.
O autor de YHVH quer sair, o mais rápido que possa, do Vale dos Abortados.
Para fora daquele abismo, enfim, partir.
Ao ver Dante com o olhar esmagado
dizer: Estou cansado, muito cansado.
O esgotamento, a falta de forças para continuar e, até mesmo, o não saber ou não querer saber do que o faria prosseguir. A fé do poeta Florentino talvez esteja a falhar. Quem sabe não esteja em condições de recordar Jeremias31.25: “Vou restaurar os corpos cansados. Vou renovar almas fatigadas”. Ou apenas quer dormir, como o fez, velado por Virgílio. Mas, num incidental contraponto, a fadiga de Dante é o fator impelente da decisão do poeta-peregrino – para Dante a vida é uma peregrinação – sair dali de uma vez por todas.
Dante e Mateus – na Divina Comédia e em YHVH – querem livrar-se daquela terrível experiência. Mas, no início, as tentativas são frustradas. Por si sós não encontram forças para que possam fugir do inferno. Ou de parte deste. E o inferno, esta é minha tese, possui uma antecâmara, o vale. Os poetas, em suas contingências, suas adversidades pessoais, se veem num vale escuro, infame e medonho. Necessitam, ambos, de um guia.
Dante, na Divina Comédia, encontra Virgílio [ou é encontrado pelo poeta gálico-cisalpino]. Quais valores Virgílio representa? Resposta: razão, habilidade à toda prova de compor poemas, civilização, cultura e síntese perfeita das virtudes.
Ma’ch’adö, em YHVH, encontra Dante. E quem será o poeta florentino para o paulista, natural de Jundiaí? Não apenas um guia, mas, sim, o guia. Menos no sentido de orientá-lo pela andança e mais como aquele que o desapossa de quaisquer erros de percepção ou de entendimento, de enganos dos sentidos e da mente:
Ainda confessou o poeta, ao fim da jornada:
Se ilude quem crê que a dor é aliviada
com a morte, nem sempre é assim além da vida.
Ma’ch’adö enxerga em Dante o que este distingue em Virgílio: além de intercessor, é a fonte constante de estudo e inspiração. O autor de YHVH tem, naquele considerado por Victor Hugo, em “Nossa Senhora de Paris” como o arquigênio que justificou a existência do século XIII, mesmo nascendo na segunda metade deste período. Foi, e ainda o é, o mestre das palavras no sentido exato.
Palavras, versos, estrofes, poesia. Não percamos o rumo – são essas as referências operatórias, materiais, críticas com as quais devemos prosseguir. O estado espiritual do autor de YHVH é revelado pela graça da sua oratória.
Jonas
Os poemas dedicados a Jonas não devem, de maneira alguma, ser compreendidos tão somente conforme intertextualidades, no simples consistir em citações indiretas da saga vivida pelo profeta. Operam, isto sim, numa condição interseccionada em relação ao relato bíblico. A poesia de Ma’ch’adö está a interpretar o já dito mediante sua forma de manifestar esteticamente o que resulta da interpretação. O que não redunda, em um primeiro momento, em novidade alguma. Por isso mesmo, são equilibrados. A sequência em tom épico, “Jonas”, é antecedida por uma fala de Mateus (12:39-41), à guisa de epígrafe, e composta por quinze cantos. Sete destes são dotados de informação acessória ao texto entre parênteses: “Canto I (Prólogo); “Canto II (Invocação)”; “Canto III (Dedicatória)”; “Canto IV (Relato)”; “Canto XIII (Ira de Jonas)”; “Canto XIV (A Oração Profética de Jonas)”; “Canto XV (Epílogo)”.
O papel do crítico é apontar, sem temer as consequências, o que na obra ele percebe. Em caso de equívoco, irá rever o que disse sem muxoxo. O Canto I, alçado à condição de prólogo, revela que o poeta, mantém, não obstante perseverar, quanto às referências, na lista definitiva de livros inspirados e autorizados que constituem o corpo reconhecido e aceito das escrituras sagradas encontradas nas religiões do Judaísmo e do Cristianismo; mantém, também, um pé na tradição inerente, na antiguidade, à tragédia (cânone homérico), a valer-se do prólogo, mediante o qual se faz a exposição do tema, efetivamente a tomar o lugar de um primeiro ato explicativo.
Eis o poema:
Da santa Escritura o espírito revelou
terrível profecia de morte e destruição.
De um povo rebelde, cheio de iniquidade,
Por muito sujou a terra, e o Eterno se irritou.
Assim decidiu o Senhor pesar tua mão
com toda a tua ira acabar com a cidade.
Para isso, ao jovem profeta Jonas ordenou:
Vai-te à grande Nínive e contra ela clama
porque a sua malícia veio a mim como chama.
Ouvir a voz de D’us é coisa terrível,
é coisa de temer e tremer corpo e alma,
diante de mistério poético tão crível,
é preciso ter discernimento e calma.
E assim com o filho de Amitai aconteceu.
Se foi, por covardia, Jonas hebreu,
ou ainda se foi por causa de caprichos teus,
o profeta, fugiu da presença de D’us.
A decisão de Ma’ch’adö por compor cantos à sequência de acontecimentos fecunda em incidentes que é a história de Jonas não é empreitada de pouca monta. O poeta o sabe. Diante de tão complexa lavra, Ma’ch’adö recorre a D’us, ao Espírito Santo. Eis as segunda e terceira estrofes do “Canto II (Invocação)”:
Para tanto peço inspiração divina,
peço então unção dobrada ao Espírito Santo.
Para D’us oração e incenso de alfazema.
Sentir a presença de Shechiná
Pra receber verso perfeito, um cântico
como o de Salomão, teus cantares, santo
dos santos, ou de Davi, antes de Rei, Poeta,
salmos de fé, arrependimento e obediência.
Quero a Shechiná, do Eterno, a Tua presença,
Porém, de D’us só posso esperar clemência.
Comecemos com o termo de origem hebraica Shechiná: é uma palavra hebraica que significa habitar ou estabelecer-se. No sentido bíblico representa ou significa a presença de Deus habitando ou estabelecendo-se sobre você. Uma das funções deste termo foi (e é) evitar aplicar uma perspectiva antropomórfica a Deus. Ele “desce” e “habita” em Glória, vale dizer, a glória de Deus é a beleza do Seu espírito. Não é uma beleza estética ou uma beleza material, mas a beleza que emana do Seu caráter, de tudo o que Ele é. A glória do homem – dignidade e honra humana – desaparece (Pedro 1:24). Mas a glória de Deus, que se manifesta em todos os Seus atributos juntos, nunca passa. É eterna.
É minha prerrogativa, sem pretender-me à arrogância, na função de crítico, não apenas parafrasear o autor. Na verdade, creio que seja um dos cuidados mais importante quando me ponho a proceder com uma análise, já que a mesma, pela natureza filológica própria do verbo, implica em dissolução, separação, o que, por sua vez encaminha-se para o método com o qual descrevo o que caracteriza e compreende o objeto, culminando na avaliação sem preconceitos deste objeto. Neste sentido, disponho-me, da mesma forma, ao confronto civilizado. Neste ensaio que “inaugura” minha coluna no SóSergipe, ainda que pese minha amizade e profunda admiração por Mateus Ma’ch’adö, poeta, romancista e ensaísta, inegavelmente superior a mim na elaboração de poemas, desejo refundar e consolidar o perfil de crítico, de quem emitirá a opinião favorável, desfavorável, contrária [não necessariamente desfavorável – há, não raro, confusão entre os valores semânticos] quanto às produções das quais me acercarei.
Mais uma vez: Ma’ch’adö singra as águas do cânone judaico-cristão. Isto está claro mediante alerta na apresentação [“O Abismo de D’us”] e ao longo de todo o livro. Contudo, afloramento de águas profundas, ressurgências do homérico [e joyceano] mar escuro como vinho se dão enquanto a navegação prossegue.
No meu modo de compreender estas coisas, num chamado a mim à responsabilidade que é minha, a Tradição Ocidental não permite a orientação por apenas um dos caminhos. Ambos os cânones, ao mesmo grau que se excluem em natureza, se integram no que concerne ao sistema na forma de símbolos que comunicam ideias, fatos, crenças e sentimentos, entre outras possibilidades.
O gesto de invocação, dizendo isto de forma rasa, para não me alongar em demasia, detém forte presença na produção poética da antiguidade: A invocação da musa refere-se à prática de apelar a uma divindade, solicitando uma bênção, conhecimento, habilidade, inspiração, a emoção certa, ou testemunho na forma de uma oração. Estas musas foram invocadas dependendo das esferas literárias que lhes foram atribuídas: Calíope, a musa da poesia épica; Terpsícore, a musa da dança; Tália, a musa da comédia; Urânia, a musa da astrologia; Polimnia, a musa da música sacra; Melpômene a musa da tragédia; Erato, a musa dos poemas de amor; Euterpe, a musa da flauta; e Clio, a musa da história.
Invocar a musa era uma prática comum feita por muitos poetas que remontam à Grécia antiga – Tradição Ocidental sob cânone homérico. Os autores buscam a ajuda desses seres superiores quando começam a compor um poema e colocam essas invocações logo no início do manuscrito [com exceções], servindo à maneira de prólogo.
Mateus Ma’ch’adö mantém o diálogo, ao mais alto nível com as duas tradições. Porém, com elegância rara, sem acessos, sem surtos fundamentalistas, declara sua fidelidade ao cânone bíblico. Esta disposição de manter observância da fé jurada e devida, compromisso rigoroso com um sentimento que não esmorece com o decorrer do tempo, está bem descrito, numa busca pela exatidão, no “Canto III [Dedicatória]”:
O que oferecer a Jesus, meu Redentor?
Pois, tudo Dele é misericórdia e graça.
Que posso dar para expressar todo o meu amor?
E que talento? Que Dom? Que ministério?
Ensino ou coragem em mim é trapaça.
Caridade ou cura, aos meus olhos, mistério.
Pastoreio; pra tanto não tenho couraça.
Diaconato; muito me faltaria; força
seria apenas um dos muitos requisitos.
O que tenho além de poemas esquisitos?
Além da minha escrita, o que posso ofertar,
Se nem santidade ou testemunho tenho?
Tenho agora este épico poema, este engenho.
É pouco, e nada, entulho tenho certeza.
Ó Jesus, meu Salvador, aos teus pés venho!
Rima e métrica – e isto vale para todos os poemas do livro, aqui, sob crítica, em maior ou menor grau – são fatores de disciplina estética, vale dizer, o conjunto das regras que presidem a medida, o ritmo e a organização do verso, da estrofe e do poema e a relativa uniformidade de sons na terminação de dois ou mais vocábulos que têm impacto no gosto estético, no envolvimento emocional, no tomar consciência de dada condição de si.
A poesia pertence ao campo da literatura, e literatura é, quando condensada na materialidade representada pela unidade denominada livro, uma construção humana e racional que utiliza sistemas linguísticos, aos quais confere valor estético. Os fatores fundamentais para a realização da obra literária são o autor, a obra, o leitor e o intérprete. Por outro lado, as motivações transcendentais do autor não devem ser desprezadas. Eis o emblemático binômio: inteligibilidade e sensibilidade.
Como o crítico/leitor deve se posicionar ante o discurso poético que se dispõe a elevar coração e alma a Deus, levando-se em conta, pari passu, o eixo sintático no espaço epistemológico, vale dizer, o livro (materialidade), os sons, os signos linguísticos? Ora, o crítico é um intérprete, portanto, um elemento operatório a estruturar sua perspectiva quanto a obra em questão.
No que concerne a mim, digo que o crítico/leitor deve estabelecer um pacto ao mais alto nível de excelência com o autor e com a obra. O que implica, já observei, na ausência de homogeneidade ante convicções, crenças adotadas; ante os pontos de vista que se opta em um domínio particular.
YHVH é uma obra altamente qualificada quanto à forma e ao conteúdo. Não fosse o caso, teria eu, às mãos, um folhetim de rezinhas escarradas sobre o papel por um sujeitinho, com ares de bardo, revelando-se tão somente um mequetrefe. Jamais desperdiçaria meu tempo e meu intelecto com algo assim. Tenho mais, muito mais o que fazer.
Quanto à segunda parte de YHVH, “Jonas”, penso que posso parar por aqui. O leitor interessado prosseguirá. E procederá, a partir das suas referências pessoais confrontadas com as observações críticas feitas por mim. Afirmo que valerá a pena. Afinal, é sobre o livro – e sobre o objeto livro – que este artigo trata. Então, o mais importante é o ato de ler. A leitura produzirá conhecimento de acordo com a perspectiva do leitor, inclusive opiniões contrárias. Não nos enganemos: a atribuição de valores estéticos deve considerar a probabilidade de se estabelecer uma condição dialética.
Verbo e Palavra
As passagens bíblicas reditas sob forma de poemas por Mateus Ma’ch’adö nesta terceira parte são doze. Evitarei especulações quanto a possíveis valores cabalísticos. Motivo? Não é minha praia. E torno a observar: não obstante ser eu um crente, sob o status de homem, de indivíduo, tentar seguir, tortuosamente, os retos caminhos do Senhor Pai Altíssimo, não é minha prerrogativa, neste artigo, fazer eco, sem mais nem menos, à mensagem religiosa do autor de YHVH. Atentar-me-ei à forma, ao conteúdo, nos parâmetros estéticos, o que não quer dizer que ignore o valor da interioridade espiritual que se apodera cognitivamente dos objetos dispostos na obra sub judice. Decerto que, por mais epistemológica que seja minha abordagem, ela sempre manterá íntimo diálogo com o discurso doxológico [no sentido litúrgico, bem entendido, e não no sentido leibniziano] que perpassa a produção literária. Afinal, a leitura do objeto literário, mesmo a crítica – e, talvez, esta mais do que outras –, é carregada de polissemia. O que posso, creio, tentar, é moderar a incidência da multiplicidade de sentidos. O fato é: aquilo que se faz evidente ao autor, com frequência assim não se apresenta ao crítico. Atentemo-nos a alguns pontos, os quais despertaram, nesta sequência, meu interesse.
Do primeiro poema (poema I), destaco os três últimos versos:
Veneno mata quando sai da boca,
do Verbo da Vida o Homem foi criado
da Ciência do Verbo, ele se corrompeu.
Ora, no contexto da obra, o Verbo, oriundo do Divino e Absoluto Eterno, em conformidade com o ser a Palavra do Senhor, se apresenta em sua perfeição e poder absolutos, o qual está situada para além da realidade sensível. Eis o Verbo da Vida, este que cria o Homem. E o homem será puro enquanto tão somente souber quem deve ser. A divina ignorância o mantém na pureza.
O conhecimento, a ciência, se quer absoluta e sistemática a respeito do conjunto de qualidades, propriedades e atributos universais que caracterizam a natureza própria do que se compreende como concreto não é garantia de que, a partir deste domínio, impor-se-á o Bem. Por toda a nossa existência terrena, pós–pecado original, dependeremos do que dissermos e fizermos, motu próprio, a título de conhecimento, de consciência das coisas, do jeito que devemos nos portar diante daquelas, ou seja, no mundo.
E o clamor expiatório anuncia-se no primeiro verso do terceto: “Veneno mata quando sai da boca”. Agrava-se o perigo e o mal, pois, o dito o é com conhecimento de causa. Há intenção e culpa. Ma’ch’adö faceja Verbo e Ciência, e se o primeiro substantivo representa a dádiva generosa do direito à vida, o segundo, destituído da ideia luxiforme do bem [Platão] ou da consciência quanto a Deus qual luz iluminadora [Agostinho], corrompe, causa prejuízo moral, e é o cruel exercício da intenção perversa, da malignidade.
O segundo poema, desta sequência, e o último do qual acercar-me-ei, confirma, mais uma vez, a mestria de Ma’ch’adö em tratar com o fenômeno palavra, e com a marca do erro, da violação, se a manifestação verbal é humana, terrena, pretensiosa:
A pedra por tijolo e o betume por cal
ergueram tamanha torre para tocar
o céu, e sob vil ordem de Ninrod reinar.
Que ainda hoje vai à Terra seu espírito mau,
prova é o desdenhoso Parlamento Europeu,
seu prédio inspirado na Torre de Babel
pela conhecida pintura de Brueguel.
Tal é o espírito do rebelde Prometeu.
O injusto Ninrod desafiou o reino do céu,
construindo a torre e a D’us Pai se rebelando.
Homem mau, manipulador, dominando,
ainda em nossa era moderna seduzindo
povos, governos; nada veem atrás do véu.
E dia após dia o mal vai o mundo conduzindo.
Alinhar a Torre de Babel, notadamente a partir da tela de Pieter Brueguel, com o prédio do Parlamento Europeu, é um feliz golpe de argumento. Não necessariamente original. Já se havia citado coisa similar, no meio jornalístico, desde a inauguração do edifício. Aliás, o projeto arquitetônico dialoga bem com a passagem bíblica (Gênesis 11:1-9): O topo da torre parece inacabado, para simbolizar o projeto europeu ainda em construção, um trabalho perpétuo em progresso.
Contudo, é preciso segurança, não necessariamente de originalidade, para encaixar ideias já batidas num poema leve, correto e harmônico, de modo a não sobrar aresta. Ma’ch’adö alcança êxito também neste sentido.
Afinado com as ideias, com as referências apreendidas nos dois poemas, os quais comentei acima, concluo este primeiro artigo valendo-me também dos versos de John Milton:
Ninguém se admire que as riquezas floresçam no inferno; esse solo é
o que mais merece o precioso veneno. Aqui, aqueles que se vangloriam de
coisas mortais e, pasmando, citam Babel e os trabalhos dos reis de Mênfis,
aprendam como seus maiores monumentos de fama, de força e de arte, são
facilmente superados por espíritos condenados que completam, numa hora,
o que os reis, com incessantes fadigas e inumeráveis mãos, dificilmente executam num século.
Na próxima vez, trarei minhas impressões sobre as partes seguintes de YHVH, esta bela obra. Que eu encontre, no Senhor Pai Altíssimo disposição, clareza, humildade e sabedoria para fazê-lo.
Nota Biográfica
Mateus Ma’ch’adö nasceu em Jundiaí, SP, mas reside em Bragança Paulista. É formado em gestão ambiental e é produtor de conteúdo no canal Biblioteca D Babel no YouTube.
Assim como de forma privada já havia externado ao caro amigo Mittaraquis minha alegria por sua chegada ao Portal Só Sergipe, quero registrar de forma pública a satisfação em ter lido sua primeira coluna YHVH – Razão, transcendência e redenção na poesia de Mateus Ma’ch’adö. É chover no molhado falar da qualidade técnica e crítica de Mittaraquis. Dentre tantas observações que podemos fazer sobre o escopo da crítica uma, em especial, chamou minha atenção. A identificação da poesia do Mateus com o cânone da literatura judaica, cristã e neoplatonica, resgata, em certa medida um entendimento sobre a interseção entre o Logos da cultura grega e o Logos judaico e cristão. Dos textos apologéticos passando pelas parábolas, cartas, cantos, provérbios e cosmogoinias, a Bíblia revela-se como um Grande Código. A recepção desse entendimento como plataforma crítica contribui sobremaneira para uma discussão não apenas de âmbito metafísico e espiritual, mas, também, para relacionarmos o valor cultural dos diversos gêneros literários. Exceto a Súmula, gênero que surgirá ao tempo da Escolástica , os demais generos já marcavam presença no Grande Código. Embora o ensaio critico de Léo, sem desmerecer a agudeza de suas observações, não tenha chamado a atenção para a importância poética e literária da Bíblia no tocante à Educação, como bem fez o critico americano Northrop Frye, seu Ensaio acerca da obra de Mateus Ma’ch’adö supre uma lacuna discursiva que precisamos reanimar. Confesso que não conheço com tanta intimidade quanto o Léo a obra de Mateus Ma’ch’adö. A leitura desse Ensaio de tamanha monta intelectual serviu como um poderoso aperitivo. Aguardemos os demais.