Por Léo Mittaraquis (*)
O rio subterrâneo, no dizer de Will Durant, que corre ao longo da produção poética YHVH, traz, em suas águas, a composição transcendente. E por estar situado além da realidade sensível, é o estado não-finito e não-temporal. É uma não-experiência, e só é possível ser concebida como um estado de espírito puro, para além do tempo e do espaço. Portanto, a produção literária que venha a “testemunhar” tal estado, o nega de imediato, pois, a produção, isto é, todo tipo de atividade ou processo que dá origem a um determinado serviço, objeto ou produto, só se dá na realidade concreta e operatória.
Sejam quais forem as individualmente válidas percepções transcendentes do escritor [autor da estrutura discursiva da produção literária], caso haja, por parte dele a intenção de fazer destas percepções a fonte dos dados utilizados na construção da narrativa, ele irá operar com a materialidade, com a realidade operatória, a interagir com a efetividade cultural e histórica [estética e ideológica], para se fazer lido, compreendido, analisado e criticado.
Como crente [aquele que crê, sem, necessariamente, filiar-se a uma denominação], posso desejar ser simpático à representação do estado alcançado pelo poeta. Como crítico, tenho, diante de mim, tão somente a produção literária, no caso, o livro de poemas. O livro, materializado, põe-se no mundo, torna-se mundano, palpável, tangível e potencialmente acessível a todo e qualquer indivíduo, independentemente da respectiva percepção espiritual [caso a tenha] e de mundo.
Abordo os objetos de arte como objetos do orbe [incluem-se os livros, decerto].
A produção poética de Mateus Ma’ch’adö é submetida à análise que leva em conta como seus poemas são construções que trazem à tona, aos olhos do leitor, a prodigalidade em imagens, num evidente e bem orquestrado estímulo de associações intelectuais e emocionais de beleza por meio de palavras sugestivas de realidades visuais. Tais associações transcendem o sentido do senso comum, do genérico, indo muito além em termos de possibilidades plásticas e discursivas. A poesia canta louvores, há ritmo, há regularidade e encadeamento.E, ao recusar-me às mistificações inócuas, há como deitar todo este material sobre a superfície terrena e investigar, revolver, recolher amostras.
Transcende o poeta, não o crítico.
E, se pareço repetitivo, de fato estou a repetir-me, pois, a leitura crítica, vale dizer, a sistemática interpretação e análise e, consequentemente, o julgamento do texto, pressupõe abordar de forma operatória o objeto, extraindo deste, novas possibilidades de leitura, as quais devem ser postas à disposição do leitor. O faço para evitar os costumeiros equívocos.
Sim, a percepção crítico-pragmática por mim adotada é a leitura crítica sob égide da estética com orientação moral e filosófica. Opero sob o pressuposto [sem metafísica barata, senão sob referência dialético-pragmática] de que a produção literária desempenha papel ético e moral em, pelo menos, um segmento da sociedade. Com isso em mente, minha leitura aborda o objeto com base na forma, mas, também seus méritos [ou deméritos] éticos.
Esses são, em termos gerais, os fundamentos nos quais fundamento e pelos quais proponho meu sistema de leitura crítica.
Dito isto, ou tudo isto, mais uma vez, e nunca é demais, chamo a atenção do leitor para um ponto importante: Ma’ch’adö não reescreveu um saltério. São poemas. Concebidos, limados e polidos com a mestria de um antigo e respeitado ourives.
Contudo, santa ironia, suas composições dialogam muito bem com as devoções judaico-cristãs. E mais: há algo de musical em alguns poemas ao longo da obra. Não admira que saltério seja o nome de um antigo instrumento de cordas.
Nesta segunda e última parte abordarei as seções IV “Adoração”; V “10 5 6 5”; VI “Apócrifo”; VII “Posfácio”
O leitor que se recordar da numeração disposta por mim na primeira parte deste artigo, perceberá, certamente, que difere desta disposta agora. O motivo é que, na primeira, eu havia considerado analisar com minúcia a apresentação, “O Abismo de Deus”, e as “Notas”. Não o farei doravante.
Seção “Adoração”
Em “Adoração”, quatro sonetos sob o título “Sobre a Majestade de Yeshua Ha Mashiach” rendem glória ao Senhor dos Exércitos, mas que, também, é o Cordeiro que se dispôs a sacrificar pelos pecados do mundo. Os poemas honram a esfera de felicidade profunda sustentada pelo desfrute da presença de Deus diante das elegantes e maravilhosas formas animais não humanas a se fazer presentes quase que a cada linha. Portanto, o eterno Filho de Deus, gozando da comunhão da Santíssima Trindade, dá aos seres [não só aos humanos] uma participação sob o status de criatura em tal bem-aventurança.
No título, o conceito de Majestade, no sistema filosófico judaico e cristão, traz a visão do Salvador. Ele vê o AMOR como um componente da única qualificação substantiva ou da própria essência de Deus. O verso, glorificante, eleva, exponencia, numa divina e única estruturação sintagmática constituída pelos atributos – onipotência criativa, a bondade, a providência, o governo e a imutabilidade. O tempo passa no mundo, na esfera dos gêneros e espécies, contudo, o Ser, verdadeiro, cognoscível na medida em que o espírito supera o caráter enganoso e ilusório das impressões sensíveis, tornando-se apto à contemplação das formas eternas e imutáveis da realidade, acima do espaço e do tempo, o É perene.
Ciente e maravilhado ante a Lei, Ma’cha’adö manifesta-se em thauma taxionômico. Eis o primeiro, dos quatro sonetos de “Adoração”:
A Majestade de Cristo está na pele,
dos leopardos e jaguares, salpicada
em gloriosas rosetas e na revoada
dos flamingos em alaridos qu’impele
sopro divino, das águas o marejar
e nas praias do mundo, no cruzar dos ninhos
dos oceanos, pelas jubartes, golfinhos
baleias azuis e cachalotes no quebrar
frio das geleiras pelo dente dos narvais;
nosso unicórnio dos mares e a beluga,
entre céu e mar, em grandes batalhas navais.
E orcas na caça de um leão marinho em fuga,
Também do Filho pertencem os arrebóis,
E a Tua majestade, vale mais que mil sóis.
Catálogo complexo, sintético, aprimorado da vida selvagem, composição em nada aleatória. Ma’ch’adö elabora um rol dinâmico. As estrofes revibram pelo movimento, pela força e pela graça dos corpos de animais quase etéreos [flamingos] e do possantes, letais, fascinantes, mamíferos marinhos. Evitarei estender-me pela simbologia zoológica amplamente trabalhada pelo poeta ao longo dos quatro sonetos da seção “Adoração”. Arrisco-me a observar que Ma’ch’adö cita animais pouco conhecidos, como o Gato Mourisco, o Gato de Palas, o Leopardo de Amur, o Íbex, o Tilacino e o Feneco.
Adora-se ao que se crê. Cultua-se. E se aplico o viés antropológico, sempre a considerar o objeto-livro como produção cultural, devo partir do princípio [de maneira alguma com valor absoluto] de que a crença, a religião é, sob consenso e senso comum, tipicamente humana. Como bem observa o sacerdote, professor e filósofo italiano Battista Mondin, “o fenômeno da religiosidade não é percebido em outros seres vivos”. Entretanto, o estado de transcendência percebe a mediação entre o Verbo e o Homem à cargo da Natureza. Os quatro sonetos clamam para que tiremos as traves, as escaras, dos nossos olhos, notadamente dos olhos do espírito, e aceitemos que o espantoso e belo mundo animal se encontra sob a majestade de Yeshua Ha Mashiach. O Verbo, nos versos dos sonetos que constituem a seção “Adoração”, está inscrito nas espécies, em cada exemplar delas.No segundo soneto, lemos no primeiro quarteto:
Gato mourisco na sombra dormideira
tem o selo da majestade de Cristo,
Ou gato de Pálas marcando, benquisto,
seu cheiro; a urina no caule da videira.
E no primeiro terceto:
Tal glória se vê no Evangelho de Mateus
ou no macho, o garboso Ibex dos Pirineus.
Ou pela vida do último tilacino.
O último verso, do terceto reproduzido acima, causa-me estremecimento. A dor da falta, diante da ausência do que destruímos enquanto nos impomos mediante a urbe; diante do que percebo, em mim, ser capaz de perpetrar.
Ao que se sabe, o último tilacino [Lobo da Tasmânia] passou, primeiramente, por um processo natural de extinção. Contudo, os remanescentes foram dizimados por colonos, na Austrália e na Nova Guiné. Afirma-se que o último exemplar morreu em cativeiro num zoológico.
E assim, o poema induz a mim o sentimento de melancolia, da dor opressiva semelhante ao remorso no peito.
A habilidade de Ma’ch’adö em posicionar as referências no campo canônico por ele estabelecido, o que certamente inclui os sonetos da sessão “Adoração”, é ressaltada com segundo quarteto do terceiro soneto:
No lombo do Takin ou no Leopardo de Amur
Abraão – vá por ti – deixando a cidade de Ur.
Ter no casamento, entre homem e mulher,
a bondade do rei e a sabedoria de Ester.
O takin detém elevado significado religioso. No Butão, o animal foi adotado como símbolo do país. Há, também, a crença de que, por causa da sua pelagem dourada, haja alguma relação com o mito grego do “Velocino de Ouro”.
Quanto ao leopardo de Amur, esta espécie é natural da região de Primorye, no sudeste da Rússia e no norte da China. É, ademais, conhecido como “leopardo siberiano”, “leopardo do extremo oriente”, “leopardo coreano”.
No imaginário oriental, há possibilidade de estar relacionado à divindade chinesa Xinangmu, esposa do Imperador de Jade e guardiã dos Pêssegos da Imortalidade.
Ao lançar Abraão sobre o lombo do takin e do leopardo de Amur, Mateus Ma’ch’adö põe um pé no solo do cânone oriental, calcando-o com firmeza. Para que Abraão deixe a cidade de Ur, é preciso, antes de tudo, que lá ele esteja. Observo que Ur não era uma provinciazinha qualquer: Na época em que Abraão apareceu em cena em 2.000 a.C, Ur já existia há 1.800 anos. Continuaria a ser habitada até 450 a.C, cinquenta anos após a morte de Sócrates. Uma cidade portuária importante e movimentada na Mesopotâmia. Devido à sua localização perto da junção dos rios Tigre e Eufrates, impunha-se como ponto central para o comércio que recebia navios tão distantes como a Índia. Como você pode imaginar, era muito rico. Na verdade, era a cidade mais rica da Mesopotâmia. Liderada por um Rei-Sacerdote, algo típico daquela parte do mundo onde as duas funções costumavam ser combinadas. Veremos isso mais tarde na história de Abraão e Melquisedeque. Significativo é prevenir ao leitor de que na seção “10 5 6 5” o segundo poema é dedicado à “Malki Tzedek”, o rei-sacerdote.
Ressalto, mais uma vez, em virtude da profusão de dados que pode causar alguma confusão [a mim, o tempo todo, tenho de consultar e consultar alfarrábios], que a tradição canônico-literária do Leste Asiático começa, segundo pesquisadores, na China antiga. Mas inclui a literatura do Vietnã, da Coreia e do Japão; a tradição indiana, que se origina com os clássicos sânscritos e pali da Índia Antiga e continua até o moderno Sul da Ásia, Tibete e Sudeste Asiático. Sem esquecer-se da tradição islâmica, escrita em árabe clássico, persa ou em suas línguas sucessoras na Ásia Central e no Oriente Próximo.
Sabedor desses fatos, compreendo que ler e interpretar YHVH, de Mateus Ma’ch’adö, é manter o conceito de cânone à guisa de bússola. Ou seja, o conceito que determina a qualidade e o valor a longo prazo das obras cumpre a função estética, epistemológica e moral. Digo, portanto, ao leitor, que mesmo textos e escritores que não são especificamente considerados canônicos são e serão sempre avaliados, por mim, em relação ao cânone mais amplo para determinar seu valor literário. E é o que faço, numa perspectiva estética e histórica, ao abordar a obra em questão.
Seção “10 5 6 5”
Mais adiante, no posfácio do livro aqui abordado, Ma’ch’adö se dedicará a comentar as implicações culturais e espirituais em torno do “Nome de Deus”. Por enquanto, na seção “10 5 6 5”, abordarei, resumidamente, os poemas “A Serpente”, “Malki Tzedek” e “O Abismo de Deus”.
Primeiro poema:
A Serpente
Alguém disse: dantes de ser possuída
pelo Espírito do Mal, instituída,
a serpente, assim belíssima fera,
da mor Sabedoria o próprio Templo era.
Presente na criação dos Mundos de Luz,
antes de haver um homem e uma cruz.
Ela era a fiel guardiã da Româzeira;
que de toda árvore era a derradeira.
Pois o mal foi infiltrado pela Queda,
e do Primeiro Homem, foi vil moeda
de troca, germinando nas entranhas.
do dourado palácio do coração,
no DNA santo da primeira geração.
E daí nasceu o erro das coisas estranhas.
Gênesis 3:1 diz: “a serpente era mais astuta do que qualquer um dos animais selvagens que o Senhor Deus havia feito”. Astuto também pode ser compreendido como sutil. O que sugere uma tendência desfavorável de caráter, com uma conotação de ser inteligente ou astuto. Até mesmo pode ser levado em conta o adjetivo “prudente”. O caráter maligno da serpente é consequência da Queda e da maldição posterior, e não da sua característica quando foi criada.
Dito isso, volto-me ao poema, em sua estrutura. É um soneto e exprime, de forma reveladora, sobre o “primeiro destino final” do homem no início da Criação. Vale observar que, o “destino” é escrito mediante a natureza abstrata do réptil. O qual ainda não é tão somente o terrível ser de caráter rasteiro, abjeto, falso, mau e traiçoeiro. O poeta propõe, de acordo com sua percepção das Sagradas Escrituras e outras fontes que, antes de ser possuída pelo Espírito do Mal, a serpente podia ser reconhecida como partícipe do Belo e Divino. Espaço digno de respeito, onde a sabedoria era guardada.
O DNA, ácido nucleico que possui destaque por armazenar a informação genética, alçava o status de sagrado. Por causa da Queda, o desvio do caminho considerado correto fez surgir o estado espúrio de suspeição no mundo, dominando a essência da existência humana.
Segundo Poema:
Malk Tzedek
Existiu um homem, em um templo distante,
misterioso, não teve vida gestante.
Sem genealogia, foi Sacerdote e Rei;
sua única missão era cumprir de D’us a Lei.
Melquisedeque, que é também rei de Shalem;
prefigura Cristo rei de Jerusalém,
visitou Abraão, levando pra ceia pão e vinho,
sagrou o patriarca e mostrou novo caminho:
Bendito seja Abraão pelo Altíssimo D’us,
o Possuidor da terra e dos céus. O D’us
que entregou os seus inimigos na mão
tua. A porção de tudo deu-lhe o dízimo, Abraão.
Chamado Rei da justiça, o mais justo
entre os filhos do Altíssimo, o mais augusto.
Expressivo, o meio pelo qual o poeta Mateus Ma’ch’adö informa ao leitor de que o título do poema não é, propriamente, o nome do personagem bíblico. No hebraico, Malki Tzedeq, pode ser traduzido, quase que literalmente, como “Rei da Justiça”; origina-se de melekh [rei] e tzaddiq [justo]. Portanto é qualidade de Melquisedeque, como é grafado no primeiro verso do segundo quarteto.
O nobre e justo que reconhece, sob orientação divina, outro que sustenta os mesmos traços de caráter, de índole.
Salto, retrógrado, para o terceiro verso do primeiro quarteto: “Sem genealogia, foi Sacerdote e Rei;”.
Harmônica, leve e engenhosa, a solução [não necessariamente original] de Ma’ch’adö neste poema é, na minha perspectiva estética, um dos pontos altos de todo o livro: um homem desprovido de antepassados, sem linha de filiação.
Recorro, aqui, a “Hebreus 7:3”: “Melquisedeque aparece na história sem pai nem mãe, e não existem anotações sobre nenhum dos seus antepassados. Não há menção da origem nem do fim dos seus dias, sendo semelhante ao Filho de Deus; ele permanece sacerdote para sempre”.
Ma’ch’adö tem conhecimento do status de Melquisedeque. Eu abordo esta condição, sob a lente lógica, genealógica [paradoxalmente] e histórica. A trajetória de vida do personagem é a história, a gênese do seu próprio nome. O qual é uma representação da elevação na qual se encontrava seu espírito, e o antropônimo. Afinal, sim, Melquisedeque é um homem.
Fascinante! Assim diria Senhor Spock. Atente, caro leitor, à leitura de todo o soneto. Pequeno pela natureza mesma, amplo pela mensagem que abriga, tanto mais pelas infindáveis e prolíficas discussões que se dão até hoje sobre o rei e sacerdote: alguns na tradição judaico-cristã viam Melquisedeque como um sacerdote celestial, sem pai ou mãe e eterno. A descoberta de fragmentos de pergaminho em 1956 na Caverna 11 em Qumran em que o personagem principal é Melquisedeque, foi chamada de Rolo de Melquisedeque, escrito no primeiro século AC. Melquisedeque aparece como um juiz escatológico que descerá do céu nos últimos tempos para destruir o diabo, chamado Belial, no Dia da Expiação no décimo Jubileu. O próprio Hebreus retrata Jesus, pós-ressurreição, como um sacerdote celestial da ordem de Melquisedeque. Então, ao lado da perspectiva materialista do livro-objeto, do caráter operatório do processo de composição poética, a apreensão do transcendente proposta pelo autor de YHVH revela-se plena de sentido numa perspectiva teológica particular.
Décimo poema da seção “10 5 6 5”:
O Abismo de D’us
Aconteceu que alguns homens eruditos,
embora cultos, viviam muitos conflitos.
Entre eles um matemático, um teólogo
e um cabalista, além do maior filólogo.
Tomados de ambição lograram intento
impossível; descobrir o verdadeiro
nome de D’us; ainda que por um momento
soubessem que não é dado, pra um formigueiro,
saber tal mistério. Fizeram complexos
cálculos, envolvendo letras e anexos
números; usaram até gematria.
Estudaram magia, astrologia e idolatria.
E com supercomputadores quânticos
resolveram os problemas semânticos.
Mais dias se passaram de trabalho intenso,
no final do sexto dia de estudo imenso,
quando por fim um nome foi revelado,
deixando o grupo de homens exaltado,
no mesmo instante um por um, os tolos homens,
se desintegraram nulos como reféns
das próprias escolhas. Assim como cada
ser humano existente, em sua derrocada,
toda a criação começou a desaparecer;
do reino animal cada ser veio a padecer,
do reino vegetal o verde se desfez,
do reino mineral cada grão de escassez
se tornou, cada átomo em sua dança
entrópica. Uma força sugou a esperança.
Sol, lua, planeta, outros sistemas tiveram
o mesmo fim; e as estrelas começaram
a cair; nem o próprio céu ficou disperso;
com seus trilhões de galáxias o universo
lento se enrolou como um velho papiro
pra dentro da boca de D’us, um suspiro.
Pelo Eterno, o fim do sexto dia foi escrito.
Se quisesse incorrer em ato de preguiçoso e apenas afirmar que este poema é um exercício estético de síntese a partir da arrogância e da estupidez humana, estaria a incorrer em erro crasso.
Até porque o Posfácio do livro, intitulado “O Nome de D’us” apresenta outra faceta do poeta Mateus Ma’cha’adö: impressionante capacidade de argumento, de forma fundamentada, com larga intimidade para com as fontes das quais se vale.
Temerário, portanto, fazer eco sem dispor de voz afinada com a proposta. O que levarei adiante, então, é uma pálida tentativa polissêmica, vale dizer, pôr-me diante multiplicidade de sentidos. Provavelmente, a nenhum dos quais eu venha a aplicar especulação terá a ver, de maneira exata, com a intenção do poeta.
O poema “O Abismo de Deus” me leva a deixar que a mente divague um tantinho. Coisa não de todo recomendável. Mas é tarde, quase três e trinta da manhã. E daqui a duas horas estarei na cozinha preparando o café da manhã para minha belíssima esposa que, no momento, sendo alguém de elevada sensatez, dorme o sono dos justos.
A primeira estrofe traz quatro campos do saber, a levantar questões profundas sobre a existência dos números; a investigar a natureza do divino, convergindo fé e razão; a concentrar-se na obtenção de conhecimento de Deus através do estudo do seu nome, além de compreender uma tradição teosófica que busca aproximar-se de Deus através do significado da criação e, por fim, a consciência estoica de aceitar que vive um mundo atópico para a contemporaneidade.
Divago: Deus como o cérebro do Universo. Neste há o propósito, o qual implica numa mente, a qual leva ao argumento racional de que há a eterna manutenção do Universo, com base em leis, e leva ao argumento ontológico de que a consciência de Deus concedeu à espécie humana que vivesse e, se não compreendesse, pelo menos admirasse e respeitasse a grandiosidade acima e em torno de nós. O que faz-me lembrar de Kant, ao concluir sua “Crítica da Razão Prática”: “Duas coisas enchem o ânimo de admiração e de veneração sempre nova e crescente, quanto mais frequente e persistentemente a reflexão ocupa-se com elas: o céu estrelado acima de mim e a lei moral em mim”.
Lembra, também, e me é impossível não lembrar, de Roger Penrose e suas entidades matemáticas que remetem à temida [por cientistas] singularidade. O Universo sugado pela boca do Eterno: a última estrofe alcança tal nível de ironia… Um poema de difícil conclusão é finalizado sob o devido rigor lógico, sem perder a sintonia com as realidades suprassensíveis [a totalidade cósmica, Deus e a alma].
Mateus Ma’ch’adö sussurra [pois não quer aparecer tanto] que a verdade não pode contradizer a Verdade. Porém a Verdade não é açambarcada mediante mero capricho.
Seção “Apócrifo”
“Apócrifo” [o termo] vem da palavra grega apokrypha, que significa coisas que estão escondidas, coisas secretas. Palavra comumente usada para designar uma coletânea de livros edificantes, porém, não incluídos no cânon das Escrituras. Sei que esta definição é simplista e insuficiente. Mas terá de bastar por ora. Há outros pontos complexos, relacionados diretamente com a poesia de Ma’ch’adö, com os quais tenho de lidar ainda.
Desta seção, tratarei de um poema, dentre os sete incluídos pelo autor:
Finnegans Wake (Segunda Carta aos Romanos II)
Os galhos da Oliveira balançam
ao vento;
vento que sopra do Mundo,
vento que sopra do Espírito.
Os galhos enxertados na Oliveira
brotam pela Graça.
Os galhos cortados
não serão desprezados.
Os erros do Taberneiro
E dos seus filhos Shaun e Shem
Ou Caim e Abel,
E da pequena Issy
As águas de Ana Lívia Plurabelle.
Tudo será perdoado,
Até a maledicência será interrompida
Pela Verdade de Verbo.
Porque o mal terá um fim em si mesmo.
Para o Grande Mistério
Tudo está feito.
Porque o Filho do Homem
Sonhou o Deserto
antes de você chegar.
Com Finnegans Wake, penso eu, mais do que [re]criar uma linguagem ou, talvez, uma maneira de falar, James Joyce ensaiou um quase-sistema filosófico, vale dizer, a consideração racional, abstrata e metódica da realidade, incluindo as dimensões fundamentais da existência e da experiência humanas. E o que quero dizer com isto? Bem, a resposta direta é: Finnegans Wake é uma pedreira do mais denso granito, do qual insisto em, obsessivamente, retirar algumas lascas.
O poema de Ma’cha’adö é certificado de que ele ingressou, há muito, no privado e mui restrito clube.
Mateus leva a efeito, com segurança, a máxima de Théophile Gautier: “o inexprimível não existe”. E no poema um tanto erzapoundiano parece ir avante, na certeza de que o homem recebeu a linguagem. Esta feita de palavras, de frases, obediente à gramática e aos desígnios divinos. Tal qual Gautier e Pound, Mateus Ma’ch’adö recusa-se, de forma sistemática e moral, ao vazio linguístico.
É certo de que há algo de menção ao sagrado em Finnegans Wake. Uma obra com algum viés iniciático. Possivelmente, o autor de YHVH [digo-o afligido por intenso cuidado] tenha vivido uma epifania que o levou a compor poema de tão alta complexidade. Ele tem ciência de que, em Finnegans Wake, o livro mais consultado [no tocante a alusões diretas ou subentendidas] e adaptado por Joyce é, obviamente, a Bíblia. Mas há outros, sobre os quais, sob nenhuma hipótese, irei arriscar-me a especular. Pressinto, neste momento, algo de começo de madrugadora enxaqueca.
Vamos lá, oremos.
A oliveira desde a antiguidade foi um símbolo de paz e reconciliação. O florescimento da oliveira nos países orientais do Mediterrâneo e especialmente nos lugares sagrados definiu-a como um símbolo da religião cristã.
No poema, ventos de naturezas distintas, mundana e transcendente, sopram por entre os galhos da Oliveira – Não é qualquer pezinho de oliveira, atente o leitor ao “O” maiúsculo.
A partir daí, penso, e espero não estar de todo equivocado, Mateus Ma’ch’adö dispõe uma estética dualista: Mundo/Espírito; Enxertados/Cortados; Shem [artista sensível e quase um alter ego de Joyce]/Shaun [orador sem escrúpulos, desvirtuador da mensagem cristã]; Caim/Abel…
E uma vez mais, na poética de Mateus Ma’ch’adö, os cânones tanto se cruzam como convergem para a composição formal e conteudística: Anna Livia Plurabelle é uma representação da deusa trinária. É sabido que, entre os celtas, três é, também, o número do grande mistério que estará para sempre além da compreensão humana.
O poema sob análise e interpretação, no momento, vibra suas cordas em uníssono com a justaposição de múltiplas tradições religiosas e mitológicas utilizadas pela genialidade de James Joyce.
“Finnegans Wake (Segunda Carta aos Romanos II)” é declamado em Igrejas e em “pagus” – “paganus” e sua evolução semântica “pagão”.
Eis, mais um aspecto [ou o mesmo aspecto reafirmado] do confronto tético ao qual me disponho com o autor de YHVH: A literatura se manifesta mediante as obras que saltam para além da sua cultura de origem. Afastar-se do Cânone Homérico, implica em aproximar-se do ‘corpus’ constituído pelas melhores obras canónicas de várias tradições literárias. E se o eixo é o “particular” Cânone Bíblico, aceitemos [não no sentido de revelação pessoal, mas, sim, no sentido de objeto no mundo, com potencial de atuar como causa ou efeito] as demais perspectivas canônicas – melhores e mais importantes livros doutras tradições literárias, culturais e religiosas.
Seção “Posfácio”
Nesta seção, Mateus Ma’ch’adö procede com um levantamento histórico e simbológico do nome de Deus [ou D’us, como é grafado no livro]. Isso até certo ponto, como bem reconhece o próprio autor. É um posfácio. Espera-se que o texto explique ou advirta. Novamente, até certo ponto.
Não estou aqui, de maneira alguma, a atribuir insuficiência pura e simples ao texto elaborado pelo autor. Na verdade, ele põe, sobre a mesa da hermenêutica, dados e mais dados. O caso é que as informações, por causa da complexidade mesma, exigem do leitor uma erudição da qual não disponho.
E o próprio autor nos adverte:
Outros mistérios podem ser encontrados (revelados) através do nome de D’us; o alfabeto hebraico vai além da religião, raça, época e geografia. Todavia a compreensão humana de D’us é infinitamente limitada, tudo o que temos são pequenos vislumbres graças à misericórdia do Pai, e só podemos compreendê-lo e chegar até Ele através de Jesus Cristo. [p.109-110].
Eis, então, minhas modestas e, decerto, insatisfatórias considerações sobre “YHVH’, livro de poemas de Mateus Ma’ch’adö.
Espero, sinceramente, que desperte alguma curiosidade, algum interesse sobre a obra. Busquei, independentemente de convergir, em termos de percepção transcendente, com o autor e amigo, abordar o corpus desta produção literária mediante o prisma materialista operatório, levando em consideração, em maior e ou menor grau, sistemas teóricos, a forma, as alusões, a língua em que foi escrita (e as inserções idiomáticas de alta carga simbólica), o leitor em potencial, a sociedade, a história e a ideologia.
“YHVH” representa uma nova trilha estética, filosófica e metafísica a ser percorrida pelo poeta Mateus Ma’ch’adö. É o primeiro de uma trilogia. Será intrigante e singular segui-lo nesta peregrinação