Por Marcus Éverson Santos (*)
Em meu ensaio “Cabras Cegas” lamentei os atos de violência generalizada conflagrados à “Praça dos Três Poderes” em “8 de janeiro” de 2023. Os protestos revelaram não só a insatisfação generalizada frente à classe política, mas, também, o estado de desequilíbrio emocional que tomou conta do país. A inoperância e o silêncio das autoridades políticas de ocasião, tanto antes quanto depois dos atos de janeiro, chamam nossa atenção para uma estratégia típica de manipulação usada em situações de guerra não convencional (psicológica). Atribuída a Napoleão Bonaparte, a estratégia funciona assim: “Jamais interrompa seu inimigo quando estiver cometendo um erro”. Em tudo que se apurou sobre os atos, paira a suspeita de que houve “permissividade” por parte dos órgãos de segurança e inteligência. Mesmo depois dos alertas de invasão, os atos do dia 8 tinham um objetivo de guerra bem claro, “queimar” a reputação dos manifestantes e “coagular” uma imagem golpista no imaginário da opinião pública.
Golpes de estado ocorrem quando um grupo, geralmente bem armado de militares, derruba o governo vigente em um país contrariando o preposto na Constituição. Com a força das armas um poder militar assume o poder político. Esse tipo de incursão pode variar em suas estratégias e, geralmente, envolve a retirada forçada do governo vigente. Causa espanto o fato de que, mesmo depois de todos os alertas, nenhuma mobilização tenha sido montada para evitar o descalabro dos atos. Dentre tantas ingerências, chama atenção o “descaso” com os vídeos que gravaram os ataques aos órgãos públicos; a tímida e quase inoperante força armada para dissuadir o vandalismo dos manifestantes; o “tratamento enviesado” dos fatos por parte da velha mídia.
Por esses breves, mas não irrelevantes motivos, cresce entre os analistas a suspeita de que os atos de janeiro foram meticulosamente planejados; manipular e tirar proveito emocional do “inimigo” quando este estiver errando é uma dentre tantas táticas de guerra psicológica. Usar ferramentas da psicologia comportamental com um propósito político é o que define o campo da psicopolítica.
Como se já não bastasse o fanatismo e a ignorância que acompanha muitos dos movimentos de massa, muitos dos participantes do “8 de janeiro” estavam sob efeito de “sequestro emocional”. Nesse estado de desestabilização emocional, as ferramentas de manipulação psicopolítica tornam-se mais eficientes. No livro “Psicologia sombria e seus segredos” de Jordan Maxwell, o pesquisador nos esclarece que os manipuladores não são dotados de poderes mágicos sobre as pessoas, posto que, na arrasadora maioria das vezes, seu sucesso se deve à fragilidade emocional de suas vítimas. Uma ação psicopolítica depende do estado de fragilidade emocional latente nas multidões. Sem terra, sem moradia, sem emprego, saúde, educação e segurança as multidões são presas fáceis da manipulação psicopolítica.
No Brasil estamos em guerra psicopolítica. Incitadas a reagir de forma violenta, arrastadas por furor convulsivo e exauridas emocionalmente, as massas tendem a buscar um momento de estabilização. Para os planejadores do caos psicopolítico, a estabilização é um dos momentos mais preciosos. Governos com pretensões autoritárias aproveitam-se do momento de fragilidade emocional das massas para aumentar seu poder. Em situações de crise planejada, ditaduras costumam apresentar alternativas que, por mais dolorosas que sejam, acabam se tornando facilmente aceitas em momentos de estabilização. A crise, se bem planejada, aumenta o poder das ditaduras.
Governos com pretensões totalitárias usam a crise para aumentar seu poder e impedir que outros grupos opositores jamais assumam sua posição. Na prática, como bem disse Bertrand de Jouvenel em seu livro clássico O Poder: história natural de seu desenvolvimento, examinando as dinâmicas entre os governantes e os governados, logo notaremos que o poder de um grupo sempre tende a crescer de modo a impedir o crescimento do outro. Para que o poder nunca troque de mão e permaneça hegemônico, ditaduras tendem a apresentar soluções de estabilização com condições que logo se revelarão autoritárias.
O mínimo de conhecimento em teoria comportamental dá conta que, um dos meios mais eficazes de provocar o caos é insuflando as massas, dividindo-as em tribos para que, desestabilizadas, possam agir às cegas feito “cabras-cegas”. Cobrando celeridade no tocante à reforma agrária tivemos a oportunidade de assistir às manifestações violentas em 2014. Durante os protestos os manifestantes forçaram e derrubaram barricadas em frente ao Palácio do Planalto e tentaram invadir o STF. Em 2016, “cabras-cegas” radicais invadiram o Congresso Nacional pedindo “golpe militar”.
Qualquer indivíduo pode ser levado a sacrificar sua capacidade de julgamento racional e apelar – por força do caos emocional – a tomar atitudes completamente irracionais quando estão nas multidões. Sob o efeito planejado de sequestro emocional, o comportamento dos manifestantes do dia “8 de janeiro” não causa estranheza. Todos parecem ter agido às cegas, tal como se participassem de um “quebra-pote institucional”. O resultado político desse “quebra-pote institucional” foi a ridicularização e a estigmatização dos envolvidos. De “patriotas” passaram a ser expostos como “inimigos da pátria”.
Nos manuais de guerra psicológica, a dicotomização da sociedade é vista como uma das principais estratégias rumo ao autoritarismo. Quaisquer que sejam as ações contra “inimigos” passarão a ser justificadas desde que sirvam para “restituir a paz”. Uma vez que, como primeiro passo, os “inimigos” da pátria são identificados e estigmatizados acelera o passo rumo às perseguições e expurgos.
A estratégia de manter o “inimigo” exposto a um constante estado de estresse emocional é uma preciosa ferramenta de desmobilização. O uso prolongado desse tipo de exposição emocional costuma causar danos graves à saúde. Expostos ao julgamento social e midiático como vândalos, antidemocráticos, fanáticos, fascistas e golpistas, o estresse emocional dos estigmatizados funciona como um ato de sabotagem psicopolítica. Uma ação de sabotagem emocional costuma acertar em cheio o ímpeto de qualquer manifestação política.
No Brasil, o resultado final desse tipo de ação psicopolítica planejada tem obtido grande sucesso. Mais de mil manifestantes foram presos e alijados de qualquer direito minimamente esperado em situações congêneres desde o início da República.
Na prisão, os manifestantes do “8 de janeiro” tiveram que enfrentar todo tipo de ingerências jurídicas e violações graves de direitos; romperam-se os laços sociais mínimos esperados em um “estado democrático de direito”. Frente ao estado patocrático ao qual chegaram nossas instituições, não podemos mais contar com esse mínimo. O sistema límbico do brasileiro encontra-se em tensão constante. Arroubos de insatisfação e loucura dão sinais claros desse estado de coisas. É nesse sistema de controle emocional que a guerra psicopolítica tem conseguido sucesso.
Do ponto de vista antropológico e psicológico, tanto a estigmatização quanto a despersonalização de um individuo ou grupo – causam efeitos físicos irreversíveis e, em muitos casos podem levar até a morte. Claude Lévi-Strauss em seu ensaio “O Feiticeiro e sua magia” nos revela, dentre outras coisas, quais as consequências que o estado de despersonalização social pode causar nos indivíduos:
Incontinente, brutalmente privado de todos os seus elos familiares e sociais, excluído de todas as funções e atividades pelas quais o indivíduo tomava consciência de si mesmo, depois encontrando essas forças tão imperiosas novamente conjuradas, mas somente para bani-lo do mundo dos vivos, o enfeitiçado cede à ação combinada do intenso terror que experimenta, da retirada súbita e total dos múltiplos sistemas de referência fornecidos pela conivência do grupo, enfim, à sua inversão decisiva que, de vivo, sujeito de direitos e de obrigações, o proclama morto, objeto de temores, de rito e proibições. A integridade física não resiste à dissolução da personalidade social.
(Lévi-Strauss Antropologia Estrutural, capítulo IX, pág.193).
Em todas as sociedades, o sistema de referência e convivência social é fundamental para a manutenção do psiquismo. São os laços sociais, culturais e simbólicos que estabelecemos com nossos amigos e familiares que nos fortalecem como indivíduos. Quando uma ação de sabotagem psicológica, com fins de desmobilização social quebra esses sistemas de referências sociais, os indivíduos ou grupos envolvidos, vivenciam uma espécie de feitiço (estigma); assim, tal como faziam os antigos feiticeiros ao enfeitiçar um individuo, o “enfeitiçado” (estigmatizado) não conseguia resistir ao isolamento de seu sistema de referências sociais.
A quebra do nosso sistema de valores e referências sociais, o contínuo e insustentável distanciamento de familiares e amigos já causaram a primeira vítima do “8 de janeiro”. Cleriston Pereira da Cunha sofreu o que conhecemos como um “mal súbito” na prisão e morreu aos 46 anos. Reservada as devidas proporções e, garantido o benefício da dúvida sobre o estado de saúde de Cleriston antes da prisão, do ponto de vista psicofisiológico, há uma possível explicação para seu “mal súbito” na Papuda. A antropologia da saúde em suas formas estruturais chama nossa atenção para as considerações que Lévi-Strauss faz ao estudo “Voodoo Death” (“Morte Voodoo”) feito por um fisiologista americano Walter B. Cannon. O artigo foi publicado no volume 44 da American Anthropologist em 1942, onde se lê:
O medo, assim como a cólera, se faz acompanhar de uma atividade particularmente intensa do sistema nervoso simpático. Esta atividade é normalmente útil, acarretando modificações orgânicas que possibilitam ao indivíduo se adaptar a uma situação nova; mas se o indivíduo não dispõe de nenhuma resposta instintiva ou adquirida para uma situação extraordinária, ou que ele considere como tal, a atividade do simpático se amplia e se desorganiza, e pode, em algumas horas às vezes, determinar uma diminuição do volume sanguíneo e uma queda de pressão concomitante, tendo como resultado desgastes irreparáveis para os órgãos da circulação A recusa de alimentos e de bebidas, frequente em doentes tomados de uma angústia profunda, precipita esta evolução, a desidratação agindo como estimulante do simpático e a diminuição do volume sanguíneo sendo acrescida pela permeabilidade crescente dos vasos capilares”
(Lévi-Strauss op.cit. W. B. Cannon – pág.2.)
Walter Cannon foi responsável por importantes estudos sobre as respostas de “luta ou fuga” do nosso sistema nervoso autônomo. O colapso psicofísico de Cleriston Pereira – popularmente conhecido como “mal súbito” – pode ter sido provocado por uma quebra do equilíbrio (homeostase) emocional gerado por uma situação de estresse e medo. É justamente nesse sistema psicofísico que os instrumentos da guerra psicológica provocam o maior dano.
Os estudos pioneiros de Walter B. Cannon revelaram que o nosso sistema nervoso simpático desempenha um importante papel em situações de ameaça na medida em que aumenta a frequência cardíaca, dilata as vias respiratórias e prepara nosso corpo para situações de estresse. Seu estudo destacou a importância da glândula adrenal na liberação de hormônios como a adrenalina em momentos de ação. O efeito prolongado do estresse provoca prejuízos fisiológicos e comportamentais graves.
A sabotagem emocional e institucional como tática de guerra psicológica com fins políticos (guerra psicopolítica) é uma ação planejada de desmobilização social. “Desmobilizar para melhor conquistar”, assim reza os manipuladores e os planejadores da guerra psicopolítica.
Existem vários manuais de guerra psicológica em circulação mundo afora. Para não deixar sem exemplo, ferramentas de sabotagem emocional e desmobilização estão muito bem descritas no Manual do Guerrilheiro Urbano de Carlos Mariguella onde se lê o seguinte:
A sabotagem é um tipo de ataque altamente destrutivo usando várias pessoas e às vezes requerendo somente uma para terminar o resultado desejado. Quando a guerrilha urbana usa a sabotagem, a primeira fase é sabotagem isolada. Então vem a fase de sabotagem dispersada ou generalizada levando a população.
(Mariguella, 1969, pág.44)
Se as investigações não tivessem sido obliteradas, logo se confirmaria a suspeita de que guerrilheiros urbanos estavam infiltrados nas manifestações do “8 janeiro”. Há fortes indícios de que esse pequeno manual de “guerra urbana”, bastante conhecido na década de 60, foi posto em ação nos “atos de janeiro”. Se minha hipótese um dia for confirmada, guerrilheiros urbanos foram responsáveis diretos por colocar a venda nos “cabras-cegas” dos “atos de janeiro”. Foram eles os primeiros a acionar o gatilho emocional dos manifestantes enquanto que, “de camarote”, os planejadores da ação assistiam a conflagração do “quebra-pote” institucional. Em situação de sequestro emocional tudo passou a acontecer como se uma colmeia de abelhas tivesse sido atingida. A “mentalidade de colmeia” provocou um enxame raivoso na “Praça dos três poderes” dando início ao “quebra-pote institucional”.
Desenhando a estratégia: “Fustigue a colmeia; deixe as abelhas expostas e desorientadas; quando finalmente elas encontrarem um alvo, aplicarão seu ferrão e finalmente perderão a própria vida”.
O Manual de Mariguella revela que, depois de conflagrada as etapas de infiltração e sabotagem, aproveitando-se da situação de caos, emerge o momento mais esperado pelas autoridades de ocasião: a tomada de decisões e medidas autoritárias para “restabelecer a ordem” (estabilização); medidas que em situações normais de equilíbrio emocional jamais seriam bem recebidas pela população. Em situações de grande desequilíbrio emocional a opinião pública tende a aceitar melhor o aumento da repressão. Perseguições e expurgos passam a ser aceitos contra aqueles que passaram a ser enquadrados como “inimigos”.
Um bom exemplo para ilustrar essa mudança na animosidade comportamental revelou-se com o que ocorreu nos EUA logo após os ataques às “Torres Gêmeas”. Depois dos terríveis ataques, para restabelecer a ordem, foram tomadas várias decisões legislativas que ampliavam o poder do Estado em investigar e prender qualquer civil que representasse uma ameaça à segurança nacional. Tais medidas repressivas de quebra de sigilo e desrespeito aos direitos individuais passaram a ser aceitas pela opinião publica posto que, embora aumentando o poder do Estado, elas foram apresentadas como única alternativa de combate aos inimigos internos. A estratégia de aumentar a repressão para “restabelecer a ordem” foi e continua sendo empregada por regimes imperialistas e ditaduras totalitárias.
A guerra psicológica (psicopolítica) contra civis, quando bem orquestrada, tem como principal objetivo deslocar toda atenção para o inimigo e, com isso, distrair a opinião pública frente a problemas mais graves. O principal objetivo de uma guerra não convencional é banir os inimigos do “mundo dos vivos” transformando-os em uma espécie de “zumbis sociais”. Cumpridas as medidas repressivas e, à margem da lei, os inimigos passam a viver uma espécie de experiência de quase morte institucional.
Usar os erros do inimigo contra ele mesmo é milenar entre as estratégias de guerra. O general chinês Sun Tzu em seu livro A Arte da Guerra há 4.000 (quatro mil) anos já dizia que a melhor maneira de lutar é não lutar; melhor que a luta é deixar que seu inimigo caísse por si. No “quebra-pote institucional” dos “atos de janeiro”, a suposta “tentativa de golpe” tornou-se “autogolpe”. Suposto golpe porque não havia apoio de nenhuma instituição politica, partidária, religiosa, midiática seja nacional ou internacional. Desarmados, agindo feito “cabras-cegas”, não havia qualquer coordenação sobre o que fazer após a conflagração do “quebra-pote institucional”.
Para os que orquestraram a ação, o principal objetivo foi atingido: colar no “inimigo” a peja de “golpista”, de “antidemocrático”. Foi com essa virada de chave tática que se sustentou a ação vitoriosa da guerrilha no momento em que, ao que tudo indica, visava conquistar o apoio da opinião pública e justificar o emprego de mais repressão contra os “golpistas”.
Voltando ao Manual do Guerrilheiro Urbano, o principal objetivo da sabotagem emocional é “danificar, deixar sem uso e destruir pontos vitais do inimigo”. No fatídico “dia 8”, a escolha do alvo não foi sem propósito, vejamos o que recomenda o Manual de Mariguella: “escritórios públicos, centros de serviços do governo e armazéns do governo, são alvos fáceis para a sabotagem”. Atacar uma padaria um supermercado não causaria o mesmo efeito simbólico que ter atingido o coração dos três poderes em Brasília.
Em uma ação de infiltração e sabotagem, basta que um pequeno grupo treinado opere para que o efeito contagiante atinja seu ápice. Ao tratar das “dinâmicas das guerrilhas urbanas” e suas vantagens iniciais, Mariguella recomendava “tomar o inimigo de surpresa, conhecer o terreno de encontro melhor que o inimigo, ter maior mobilidade e velocidade que a policia, ter um serviço de informação melhor que o inimigo” (Mariguella, 1969, pág.19). Quebrar o simbolismo de pacifismo das manifestações do inimigo rendeu bons frutos. O “Manual” de Mariguella destaca a importância do elemento surpresa na ação de guerrilha:
“O inimigo não tem nenhuma forma de lutar contra a surpresa e se torna confuso ou destruído. Quando a guerra de guerrilhas urbanas iniciou no Brasil, a experiência demonstrou que a surpresa era essencial para o êxito de qualquer operação de guerrilha”.
(Mariguella, 1969, pág.19)
A técnica da surpresa baseia-se em quatro requisitos essenciais:
“a) conhecemos a situação do inimigo que vamos atacar usualmente por meio de informação precisa e observação meticulosa, enquanto que o inimigo não sabe se será atacado ou não sabe nada em relação ao atacante; b) conhecemos a força do inimigo que será atacado e o inimigo não sabe nada sobre a nossa; c) atacando por surpresa, nós economizamos e conservamos nossas forças, enquanto que o inimigo não é capaz de fazer o mesmo e é deixado a mercê dos eventos; d) determinamos a hora e o lugar do ataque, combinamos sua duração, e estabelecemos seu objetivo. O inimigo permanece ignorante de tudo isto”.
(Mariguella, 1969, pág.29)
A guerra psicológica como ação de desestabilização emocional fragiliza qualquer inimigo em seu campo de batalha. O ataque à sensibilidade e a estimulação de comportamentos tribais são os principais insumos no processo de “fabricação” de novos “cabras-cegas”. Quem ainda estiver suspeitando que ações da guerrilha infiltrada nos atos de janeiro não seguiram um modelo, um método de ação, o próprio Mariguella nos mostra quais são esses modelos de ação:
Os modelos de ação que o guerrilheiro urbano pode realizar são os seguintes: assaltos, invasões, ocupações, emboscadas, táticas de rua, greves e interrupções de trabalho, deserções, desvios, expropriações de armas, munições e explosivos, libertação de prisioneiros, execuções, sequestros, sabotagem, terrorismo e guerra de nervos.
(Mariguella, 1969, pág.29)
A guerra psicológica, ou, a conhecida “guerra de nervos” é uma técnica agressivamente baseada em meios de ação direta e ou indireta para atingir o inimigo. O seu fim último é a desmoralização. Para atingir esse fim, o uso direto ou indireto da guerra de nervos utiliza os meios de comunicação em massa com as conhecidas notícias falsas. O objeto da guerra de nervos é:
“enganar, propagar mentiras entre as autoridades na qual todos podem participar, assim criando um ar de nervosismo, descrédito, insegurança e preocupação”.
(Mariguella, 1969, pág.49)
Os métodos de desestabilização e desmoralização foram se aperfeiçoando ao longo do tempo. Alguns recursos tecnológicos usados à época do guerrilheiro da década de 60 foram aperfeiçoados, mas, sem modificar em nada a efetividade da estratégia subjacente à técnica. Deixemos que o próprio Mariguella descreva um pouco mais os métodos que, supomos, possam ter sido empregados nas manifestações do “8 de janeiro”:
“a) usando o telefone e o correio para anunciar falsas pistas à polícia e ao governo, incluindo informação de bombas e qualquer outro ato de terrorismo em escritórios públicos e outros lugares, planos de sequestro e assassinato etc, para obrigar as autoridades a cansar-se, dando seguimento à falsa informação que foi alimentada; b) permitindo que planos falsos caiam nas mãos da polícia para desviar sua atenção; c) plantar rumores para deixar o governo nervoso; d) explorando cada meio possível de corrupção, de erros e de falhas do governo e seus representantes, forçando-os a explicações desmoralizantes e justificações nos meios de comunicação de massas que mantêm baixa censura; e) apresentando denúncias a embaixadas estrangeiras, às Nações Unidas, a nunciatura do papa, e as comissões internacionais judiciais defensoras dos direitos humanos ou da liberdade de imprensa”.
(Mariguella, 1969, pág.49)
Escrito por um guerrilheiro marxista-leninista, os métodos que o Manual de Mariguella fez circular durante a década de 60 continuam em uso até os nossos dias. Com a paridade da dissuasão atômica entre as nações, o status das guerras não convencionais tomou à dianteira. Estratégias de guerra largamente utilizadas ao tempo da Guerra Fria continuam existindo e estão plenamente em uso. Os métodos da guerra não convencional não passaram por grandes mudanças.
Em razão do alto custo das guerras convencionais uma nova modalidade de ação, mas, não menos poderosa, tem sido empregada: a guerra digital. Essa nova modalidade de ação tem elevado o nível da abordagem de desmobilização do inimigo. No livro Guerras Híbridas: das revoluções coloridas aos golpes de Andrew Korybko explica-nos como levantes e movimentos revolucionários foram fomentados usando técnicas de guerra não convencional. O livro Andrew Korybko nos mostra quão amplo tem sido o investimento dos países no sentido de promover ataques e contra-ataques ao inimigo. O autor descreve como empresas e agências de alta tecnologia digitais estão usando ferramentas de manipulação e “contágio emocional” em larga escala para atingir objetivos de guerra ou guerrilha em todo mundo.
O que estudos de Andrew Korybko nos mostra ainda é que, em redes sociais como Instagram, Facebook e Tik Tok, as emoções espalham-se em rede por “efeito contágio”. Há uma forte conexão entre as atuais mídias digitais e muitas das agitações civis mundo afora. Andrew Korybko afirma que o uso de plataformas em rede como o Facebook podem ser usadas para:
“Fabricar uma mente de colmeia que pode ser manipulada para dar início à agitação civil em larga escala na gora certa, que, uma vez notada pela mídia internacional (Ocidental), torna-se numa “revolução colorida”.
(Andrew Korybko, 2018, pág. 58)
Movimentos de infiltração em grupos sociais exploram a “Mentalidade de Colmeia” desses grupos. Na guerrilha digital, esses grupos se unem por preferências de pensamento e posicionamento ideológico. Os recursos digitais dão uma forcinha para mantê-los unidos. Tal como na guerrilha urbana, basta o trabalho de um único infiltrado capacitado para insuflar a mente de colmeia com palavras de ordem e formar o enxame digital revolucionário.
Preparar o caos e insuflar as massas na direção desejada é uma técnica muito bem conhecida nas guerrilhas urbanas agora transplantadas para a “Guerrilha Digital”. Não sem razão, quanto mais dividida a sociedade estiver em grupos e tribos, mais expostas estão aos mecanismos de fabricação de “mentalidade de colmeia”. As relações públicas do caos institucional, quando bem fabricado, cumpre uma finalidade:
“A finalidade disso tudo é reunir o máximo possível de pessoas que vieram indiretamente a compartilhar das mesmas convicções contra o governo. É imprescindível que esses indivíduos também sejam “programados” por meio de táticas de guerra neocortical reversa para que desejem ativamente provocar a mudança quando decisão de iniciar a revolução colorida for tomada. Graças a esses meios, partes díspares tornam-se “uma só mente” e podem ser mobilizadas como uma unidade”.
(Andrew Korybko, 2018, pág. 59)
Com os avanços tecnológicos que permitiram a interação entre as neurociências e as novas tecnologias de redes sociais, a guerra não convencional atingiu um novo patamar de mobilização. A dialética da manipulação e mobilização digital revolucionária realiza o mesmo trabalho da Dialética Negativa utilizada pela Teoria Crítica de Theodor Adorno e Max Horkheimer da Escola de Frankfurt que consiste no seguinte: no lugar de buscar resolver determinados problemas buscando uma síntese, tal como desejava a dialética tradicional, a dialética negativa insiste na crítica das contradições, na negação radical constate sem qualquer pretensão de solução das tensões. O trabalho constante do negativo se impõe como imperativo, e a tensão constante funciona como ferramenta do caos.
Pouco importa a que síntese antropológica a sociedade brasileira possa ter chegado com os atos do “8 de janeiro”, o trabalho de agitação civil como propósitos de guerra psicológica mantém seu curso até que seus objetivos sejam finalmente alcançados, sobretudo, na medida em que se traduz em mais poder nas mãos de um único grupo político e ideológico.
A ausência total de interesse em colocar às claras tudo o que de fato aconteceu nos atos de “janeiro”, nos faz levantar a hipótese de que, os organizadores do “quebra pote institucional” cumpriram bem sua missão. Conseguiram participar de uma guerra com o mínimo possível de dano aos seus “companheiros” de partido. Saíram ilesos do caos planejado que produziram manipulando as emoções das massas. Causaram grandes danos psicológicos, políticos e institucionais. Viraram a chave dialética da “luta democrática” contra aqueles que continuam a ser acusados de antidemocráticos.
Reservada as devidas proporções históricas, o “8 de Janeiro” tem sido considerado por muitos como o “Reichstag” à brasileira. A dura e profilática lição desse evento lamentável é que, numa guerra psicopolítica, orquestrada por psicopatas no poder, não é a força irracional e desmedida que funciona, mas sim uma ação não violenta e bem planejada.
Agir às cegas é estar exposto a todo tipo de sabotagem emocional. Estamos em uma “guerra de nervos” e seu efeito prolongado pode provocar prejuízos fisiológicos e comportamentais graves à saúde. Manter-se atento às ferramentas da guerra psicopolítica não é uma questão meramente político-eleitoral, mas, sobretudo, de vida ou morte.
A quebra do equilíbrio emocional no Brasil tornou-se pandêmico. Urge desfazer as velhas crenças salvacionistas de “estabilização” político-estatal para iniciar uma verdadeira transformação alquímica em nossas relações pessoais, espirituais e institucionais. Em meias-palavras, precisamos “queimar” o tribalismo de ideias, de soberba grupal, de sectarismo, de exclusivismo, de valores que reafirmem nossa animalidade e violência em detrimento da razão para enfim “coagular” o voluntarismo, a justiça, a moderação, a prudência e a coragem: “Solve et coagula”.
O oportuno e bem fundamentado artigo do professor doutor @Marcus Everson , traz reflexões que, mesmo sobre eventos datados, permanecem atuais, presentes em nossa constante tentativa de compreender o entorno para, no mínimo, sobrevivermos a alguns aspectos dele.
E não são meras reflexões sem lastro. Mas, sim, referências alinhadas com as atividades metacognitivas que envolvem o exame crítico de crenças, valores, pensamentos e estados epistêmicos.
Vale dizer: Éverson cobra, com toda razão, amparado, também, nos fatores éticos e morais, que o indivíduo, diante dos fatos, neste caso, notadamente, sociopolíticos, pense e avalie seu próprio pensamento, isto é, sua maneira de ler esta realidade.
Sim, indubitavelmente, houve manipulação. Contudo, esta, em parte, foi possível e correu solta por não haver, no que concerne ao “inimigo”, decisão de monitorar o sentido das suas ações, especular, com discernimento, quanto às possíveis e terríveis consequências.
Sim, como bem observa o hábil articulista, “Qualquer indivíduo pode ser levado a sacrificar sua capacidade de julgamento racional e apelar – por força do caos emocional – a tomar atitudes completamente irracionais quando estão nas multidões”.
E exorta, o professor doutor Marcus Éverson: “Solve e Coagula” – Nada de novo pode ser construído senão antes de nós abrir espaço, rompendo o antigo.
Sendo um iniciado [afinal, também é atento leitor de Jordan Maxuell], Éverson tem ciência de que a perspectiva pragmático-metafísica busca obter o ouro potável como fiel a equilibrar a balança das relações entre indivíduos, grupos e comunidades.
O propósito, vale dizer, o credo materialista, como bem observou T.S.Eliot, “só enxerga algum significado para sua existência e sua imposição nas brutais forças do mundo físico”. Disto ergue-se niilista, a massacrar multidões em escalas que ultrapassa quaisquer excessos perpetrados pelas ordens religiosas em nome da fé.
Nos “iluminados” [Éverson há de entender] corredores das universidades, notadamente no campo das humanidades, maus leitores de um Terry Eagleton, devotam ódio casto aos culpados, segundo Eagleton, pelos males do mundo: a hierarquia cristã e a livre economia de mercado.
A estes, exige-se que dissolva-se, resolva-se, transmute-se, a visão idiota e burocrática do mundo. Talvez contribuísse para, se não a erradicação, pelo menos o combate sereno e esclarecido contra os meios [e seus idealizadores] de controle das mentes individual e social.
Implica, entretanto que nos perguntemos: há, em nossa mãe pátria, possibilidade mínima de levarmos a efeito tão nobre projeto?
Excelente reflexão do 8 de janeiro feita pelo Professor Marcus Éverson. O uso de ferramentas psicossocial para a “autoescavidão” de governos autoritários toma a nossa nação de forma silenciosa.
Excelente, Mestre!