“Uma linguagem legítima é uma linguagem com formas fonológicas e sintáticas legítimas, isto é, uma linguagem que responde aos critérios habituais de gramaticalidade, e uma linguagem que além daquilo que diz, o diz constantemente bem. Pierre Bourdieu.
Saúde Gramatical: o valor do vocativo na construção do sujeito e da comunidade – A propósito de “A Origem da Linguagem”, de Eugen Rosenstock-Huessy
“Uma linguagem legítima é uma linguagem com formas fonológicas e sintáticas legítimas, isto é, uma linguagem que responde aos critérios habituais de gramaticalidade, e uma linguagem que além daquilo que diz, o diz constantemente bem”
Pierre Bourdieu
Antes de tudo, devemos levar em conta um fato: Eugen Rosenstock-Huessy não escreveu este livro. Os capítulos deste livro são resultados de uma coleta e posterior formatação levada a efeito por Peter MacNeilage, editor americano da obra. E falando em “posterior”, o leitor que obedecer a ordem de leitura [começo, meio e fim], só saberá da compilação a posteriori. Pois essa informação, acima indicada, se encontra no posfácio.
Para Rosenstock-Huessy, conforme minha análise do conjunto do texto, o discurso primitivo do homem era muito mais rudimentar do que qualquer língua conhecida por nós, isto é, não tinha forma gramatical; tão flutuante era sua fonética, vale dizer, elementos mínimos da não-linguagem rudemente articulada.
Toda a comunicação dependia muito do gesto, do tom e da ênfase dada ao ruído. Não havia organização alfabética, portanto, não havia escrita.
Tal comunicação não possuía preposições nem conjunções. Não havia numerais, pronomes de qualquer tipo; sem formas para expressar singular ou plural, masculino ou feminino, passado ou presente; os diferentes sons vocálicos talvez não produzissem o senso de identidade.
O outro ponto a ser levado rigorosamente em consideração por mim, apresentador e primeiro comentador da obra e, em, seguida pelos demais ouvintes e também comentadores é que o autor, Eugen Rosenstock-Huessy, nos previne de forma radical, que a origem da linguagem [esta compreendida como um sistema estruturado de comunicação que consiste em gramática e vocabulário] está na passagem da emissão primitiva de sons sem nominação, sem tratamento nominal, para a formalização desta comunicação [linguagem formal como a única condição de linguagem], resultando daí as primeiras referências civilizatórias, em que a espécie humana se reconheceu como indivíduo, como sujeito e como comunidade falante numa realidade operatória de construção do Eu e do Outro.
Para tanto, o fator vocativo [como elemento pragmático-semântico, ou seja, detendo vocatividade, potencial apelativo, a exercer funções linguísticas] é, para Rosenstock-Huessy, de importância central.
O autor ressalta que o vocativo é observado como um elemento da universalidade da linguagem, nomeadamente como um elemento de chamada que geralmente é usada por falantes em conversas de um idioma. Toda facilidade disponível na linguagem como meio de comunicação humana tem uma função específica nele. Quando comparado com outras facilidades da linguagem como meio de comunicação humana, o vocativo dito pelo sujeito diz a si e ao outro. Os indivíduos se reconhecem, a comunidade se constitui.
Na minha percepção, entendo que o autor, ao afirmar que um indivíduo se torna uma pessoa ao ser capaz de representar o falante e o ouvinte dentro de uma pessoa, defende a capacidade potencial e em ato desta pessoa de, ao ouvir, tornar-se um “VOCÊ” – Mediante este pronome de tratamento, o indivíduo-pessoa reconhece a si e ao outro. É o princípio da saúde gramatical, que redunda na saúde mental – O entendimento da condição solidária, comunitária, o âmbito gramatical é a base para a renovação moral e ética.
Observo que os argumentos em Eugen Rosenstock-Huessy, vão além da apresentação dos fatos, das ideias, das razões. Tornam-se microestruturas téticas a compor a tese magna que é o próprio livro. Ou seja, são proposições, dentro do corpo do texto, que ele busca, energicamente, sustentar.
Mediante a linguagem formal que reconhece o sujeito falante e ouvinte, as aproximações de valores morais e éticos, as pessoas podem escapar à injustiça e à crueldade exercida, inclusive, por governos legítimos oficialmente; advém, por consequência, o poder das sentenças gramaticais, ou seja, aquelas que são geradas pelas regras da gramaticalidade, estas que passam a governar o espaço em que a comunidade habita, que funda novas possibilidades de relação, de reconhecimento e de mobilidade.
Creio que [e estou aberto a contestações ou complementações] o ponto fulcral, entre as duas proposições é que a parte da linguagem, que se manifesta como ato individual, ou seja, a fala, esta que se põe em oposição à língua (que é social em sua essência e independente do indivíduo), através do que lhe é criativo e estimulante, além de, por vezes, inesperado, dota-nos, de certas possibilidades através do seu carácter inevitavelmente formador e histórico.
A linguagem [e, em seu interior, a fala] torna a comunidade quase como senhora do tempo. Não para controlá-lo, mas, sim, para transitar por ele. Assim, compreendemos a morte histórica, ancestral e atual. As mortes anteriores fundam, via nascimento, novos espaços de vida individual e social.
Há a expectativa e, de certo modo, a perspectiva de uma trajetória expansiva e gratificante. E quando não o há, sabe-se, também, que assim o pode ser.
E em meio à expectaiva mencionada acima, há outra perspectiva, esta racional, vale dizer, pertencente ao projeto humanista-iluminista de se libertar de todos os deuses (fazendo da humanidade, no âmbito da natureza, a base da realidade). Rosenstock-Huessy observa que esta posição, adotada historicamente, baseou-se na incapacidade de se compreender as percepções mais antigas sobre a natureza do real e a relação entre realidade, linguagem e história.
Porém, outros aspectos também são levados em conta na busca de se estabelecer, de se perceber e localizar, “a origem da linguagem”.
Penso, e ponho esta percepção diante dos eventuais leitores, que, mediante as reflexões de Rosenstock-Huessy, a gramática, vale dizer, o conjunto de prescrições e regras que determinam o uso considerado correto da língua escrita e falada, detém a função de nos resguardar dos mal-entendidos, da cacofonia que leva à tensão entre as partes. O dito nos protege de algum perigoso ou, pelo menos, inconveniente duplo sentido. Ou seja, o fator gramatical emerge do barbarismo informal para proporcionar esclarecimento. Daí em diante, o processo civilizatório se manifesta. Tornamo-nos falantes, ouvintes, indivíduos que se expressam e passam a fazer parte da comunidade falante e pensante, pois, a lógica gramatical, o ato de nominação, se faz presente.
Entendo que o autor nos alerta quanto ao fato de que o pensamento gramatical saudável nos auxilia na elaboração da unidade. A postura comunicativa, solidária, pode ser sustentada pela devida consciência de uma presença quase que espiritual da gramaticalidade. Então o efeito clínico, terapêutico se manifesta. Isso porque esses modos gramaticais são os meios através dos quais nosso entendimento sobre ser pessoa [o “eu” e o “voz”] se consolida e se expressa.
A consciência gramatical, vale dizer, a compreensão do significado de se comunicar mediante a linguagem formal, promove um processo dinâmico que é construído entre o sujeito e o fato mediante o discurso bem-posicionado, bem articulado. A saúde das relações com o eu-mesmo e com os demais “eus” que são os “vocês” é determinado pela nossa fala bem direcionada, bem fundamentada.
Na minha percepção, na minha interpretação crítica, há, neste sistema de regras lógicas de investigação, especulação, argumentação, demonstração de Rosenstock-Huessy, algo de força psíquica espontânea, à qual leva à ação determinada, à manifestação de sentimentos sinceros, ou seja, um religare, uma perspectiva apaixonada, não obstante bem-disposta, bem-organizada, pautada no que ele defende como existencialmente real.
No autor, o substantivo existência, o adjetivo existencial, contêm, radicalmente, noção de passagem de um estado para outro. Morte para vida, mediante o nascimento. Nascimento para a morte, ao longo de uma trajetória na qual é imprescindível que saibamos como falar para que possamos saber como fazer.
É isto.
Que texto!