Por Léo Mittaraquis (*)
Cannery Row, em Monterey, Califórnia, é um poema, um mau cheiro, um rangido, uma qualidade de luz, uma tonalidade, um hábito, uma nostalgia, um sonho.
John Steinbeck
Publicado em 1945, “A Rua das Ilusões Perdidas” chegou às minhas mãos quarenta anos depois. Já conhecia Steinbeck de “A Leste do Éden”, “As Vinhas da Ira” e “Ratos e Homens”. O título sobre o qual comento, hoje, não é o mais conhecido e nem o mais aclamado. Mas, em mim, provocou a tristeza e a melancolia necessárias ao espírito de quem ama os livros, a mulher, os vinhos, os charutos, o blues e o jazz.
Os personagens de “A Rua das Ilusões Perdidas” ou “Cannery Row” [título original] são simples em suas vidas, complexos sob a elaboração do escritor. Todos moram, quando não exatamente na rua Cannery, pelas redondezas. E para a rua convergem, pois, muitos são funcionários [os canners] das enlatadoras de sardinhas.
O prólogo descreve muito bem a situação: “Os apitos das fábricas começam então seu berreiro e homens e mulheres se metem em suas roupas e descem correndo para a Row, a fim de trabalhar. Carros reluzentes trazem as chamadas classes superiores, os superintendentes, contadores, os proprietários, que desaparecem em seus escritórios. A cidade despeja na Row os seus carcamanos, chinas e polacos, homens e mulheres de calça, casaco de borracha e avental de oleado”.
Estes são os personagens, em grande parte anônimos, que povoam o mundo real e imaginário de Steinbeck.
Há os nomeados, sim. Destes, seleciono quatro, os quais são referência para a vida em Cannery Row, o que inclui o jeito de ver as coisas de cada um e da comunidade. Vamos a eles.
Doc é um cientista. Mais exatamente, é um biólogo marinho e proprietário do Laboratório Biológico Ocidental, o qual também fica em Cannery Row.
Doc é culto. Sabe o que é boa literatura, boa arte e boa música. Além disso, é conhecido pelo número de mulheres elegantes que visitam seu laboratório pela noite.
Ao longo dos anos, Doc tornou-se um exemplo ético e humanista da comunidade local. O biólogo passou a ser alguém a quem as pessoas recorrem em busca de conselhos e ajuda.
Nestas relações, em situações das mais diversas, Doc, que tem por princípio dizer o que pensa e falar a verdade, aprendeu que nem todos compreendem isso. Assim, ele criou mentiras, já prontinhas para as ocasiões em que a verdade pode, até mesmo, pô-lo em risco de morte.
Embora seja comum estar com pessoas em torno, o personagem é um tanto solitário. E, de certa forma, parece ver nisso algum benefício.
Sua educação e curiosidade intelectual o diferenciaram da maioria dos demais habitantes da região.
Para agravar as coisas, a partir de experiências desagradáveis que viveu por ter se envolvido com as trapalhadas de Mack, passou a ser ainda mais cauteloso quando a coisa significa trato com gente.
Não é inimigo de Mack, nem de longe. São muito próximos. E o jeito despojado de Mack chama sua atenção. Contudo, sabe que o simpático vagabundo é dado a invencionices, a iniciativas duvidosas, sempre a envolver outros do grupo que lidera… Ou explora, conforme o ponto de vista.
Por falar em Mack…
Mack é um sujeito esperto, criativo e astuto. E assim, vivendo desta maneira, não raro consegue o que deseja.
Em Mack há o dom da manipulação. Entretanto, Steinbeck não desenha um personagem mau. Evita, sempre que pode, o que denominaríamos de trabalhos convencionais.
Além de liderar, ainda que de forma frouxa o grupo de simpáticos ociosos, Mack se esforça em demonstrar, constantemente, sua admiração por Doc.
Com habilidade de escritor talentoso, Steinbeck, após um fato desastroso ocorrido, e que se deu por culpa de Mack, o leitor é inteirado da procedência do personagem. Mack é esmurrado, com violência, por Doc. Não reage, entende que a reação do amigo é justa. Conclui que estava precisando de uma “lição” como esta há muito tempo. Machucado, sem reação, triste e arrependido, Mack é consolado pelo próprio Doc. Bebem cerveja juntos. O autor define, com este recurso, a perspectiva de vida de cada um, suas distinções, mas, também as convergências. Moram em Cannery Row, Monterey, Califórnia. Possuem, de alguma maneira, algumas marcas imprimidas pelo local, marcas que se assemelham. Outras, nem tanto.
E Dora Flood?
Nas palavras de John Steinbeck, “Ela leva uma existência precária. Sendo contra a lei [é dona de um bordel – Nota minha.], pelo menos contra a letra da lei, deve ser duas vezes mais respeitadora da lei do que qualquer outra pessoa”.
Dora Flood é uma velha e respeitada dama. Eis como é vista por Mack e outros homens. Sabe ser divertida, compreensiva, porém, igualmente firme e disciplinadora em relação às suas garotas.
É proprietária do bordel local, o Restaurante Bandeira do Urso.
Steinbeck soube, com leveza e elegância, firmar a sensibilidade, a bondade de Dora. Para isso, ressalta que, em sua folha de pagamento, as prostitutas mais velhas e doentes são mantidas. Independentemente de quantos clientes atendam. Além disso, na comunidade de Cannery Row, é reconhecida como sábia, sendo comum recorrerem a ela para ouvirem bons conselhos e estende sua ajuda e conselhos à comunidade em geral.
Reproduzi, acima, frase do livro, que a apresenta como duas vezes respeitadora da lei. E como se dá tal coisa? Dora paga seus impostos, faz doações caridosas.
E Lee Chong?
Lee Chong o proprietário de uma mercearia, onde oferece todos os tipos de produtos.
Deixemos Steinbeck descrever a ele e ao seu estabelecimento: “É pequena e atulhada, mas, dentro de um único espaço, o cliente pode encontrar tudo o que precisa ou quer para viver e ser feliz: roupas, alimentos frescos e enlatados, bebidas, tabaco, equipamento de pesca, ferramentas, barcos, cordames, gorros e costeletas de porco”.
Chong sempre exibe um rosto redondo, amistoso e sorridente. Steinbeck o inclui como mais um contraponto na galeria de personagens. Sua “filosofia de vida” permite que saiba ver algo de bom mesmo em situações em que se encontra em desvantagem. Seu traço de personalidade marcante é a boa vontade diante das vicissitudes.
Cannery Row, uma rua sem ilusões?
Sim. Os personagens não esperam mais de suas vidas e nem da vida em termos gerais. O peso realista, quase que insustentável, oprime parte da existência, dos dias de trabalho ou de vagabundagem.
Contudo, ainda assim, de certa forma, respira-se uma atmosfera de utopia. Steinbeck não evita a idealização dos valores dos estratos sociais mais humildes.
Parece insistir que é possível, ao lado da luta pela subsistência, o companheirismo e a cordialidade.
É isto.