Por Léo Mitarraquis (*)
“No final de agosto, com fortes chuvas e sol.
Durante uma semana inteira, as amoras amadureceram.
A princípio, apenas um, um coágulo roxo brilhante.
Entre outros, vermelho, verde, duro como um nó.
Você comeu aquele primeiro e sua polpa era doce
Como vinho espesso: o sangue do verão estava nele
Deixando manchas na língua e desejo de colher”
Seamus Heaney
A etiqueta recomenda, sabiamente, que antes de se comentar a obra de um autor pouco conhecido por aqui, procedamos com a apresentação, ainda que breve, do mesmo. Penso que este seja um gesto também de cortesia endereçado aos meus poucos leitores. Então, quem foi Paolo Rossi?
Nasceu em 30 de dezembro de 1923, na cidade de Urbino.
Nesta pouco convencional coluna, os artigos, vez por outra, sem que fujam ao viés conservador, seguirão na contramão do adágio “natura non facit saltus”, e darão uns pulinhos.
Ou seja: antes de prosseguir com a apresentação do autor, quero inserir uma nota de meio de texto sobre a cidade de Urbino e seus maravilhosos vinhos. Sigam parágrafo abaixo.
Urbino mantém uma população de quase dezesseis mil habitantes. Tal como em boa parte da Itália, a viticultura também ocupa, no lugar, uma posição de prestígio entre as atividades agrícolas. Os vinhos produzidos na província são conhecidos pela sua originalidade e qualidade. A cidade está localizada a uma altitude de quatrocentos e oitenta e cinco metros acima do nível do mar. Os esforçadíssimos e dedicadíssimos produtores locais têm procurado as melhores condições para que as suas vinhas obtenham uvas rigorosamente adequadas à produção da maravilhosa bebida.
Ressalte-se que o município de Urbino, como todos os municípios da Itália, possui um número significativo de denominações de origem.
Vivi, há coisa de dois anos, a maravilhosa, elevada, magnifica experiência de beber duas garrafas do branco Guerrieri Bianchello del Metauro, safra 2019, produzido na região. Inesquecível, de fato.
O que posso comentar sobre aquele momento? Bem, sem querer arrogar-me à especialista, digo que eu e a bien informé et du vin, senhora Chagas Mittaraquis, convergimos quanto às impressões sobre o vinho: destaca-se, no Bianchello del Metauro, a combinação entre complexidade e, ao mesmo tempo, facilidade em bebê-lo. Provavelmente isto se deva a não possuir, na nossa opinião, um teor alcoólico muito elevado. Diríamos que é um vinho que se manifesta pelo frescor, pela leveza e por estabelecer um certo clima de companheirismo entre a garrafa e quem a consome. Há franca vivacidade na cor amarelo palha, um tantinho pálido, com reflexos esmeraldinos. Sabor delicado e ao mesmo tempo seco. Melhor não arriscar a dizer mais…
Voltemos ao nosso autor da vez, Paolo Rossi.
Iniciou os seus estudos universitários de filosofia em 1942, abandonando-os, no entanto, no ano seguinte e refugiando-se na Úmbria para escapar ao recrutamento obrigatório da República Social Italiana (RSI). Após a guerra, retomou os estudos em Florença, onde em 1946 se formou. Em 1961 venceu o concurso para professor titular de história da filosofia. Foi chamado para a Universidade de Cagliari, de 1961 a 1962, e depois para Bolonha, mudando-se finalmente para Florença em 1966, onde lecionou por mais de trinta anos, até 1999.
Durante esse tempo, além de lecionar, Rossi se pôs a lidar com problemas teóricos e metodológicos da historiografia filosófica. Concomitantemente, aprofundou a sua investigação sobre os temas da retórica, da tradição hermética e da magia dos séculos quinze e dezesseis.
Foquemos, no entanto, na obra sobre a qual trata este meu artigo. “Comer – Necessidade, Desejo, Obsessão” é um cuidadoso trabalho de pesquisa e de aplicação de bem polida lente histórico-filosófica sobre o tato de comer e a respectiva oscilação deste entre o agradável e o trágico. Entre o que é bastante, o que é excesso e o que é escasso. É um livro belo e cruel, ao mesmo tempo. Não cruel no sentido de maldoso, longe disto. Aponto para a firmeza do autor em descrever, também, carregando nas tintas, sobre o fenômeno inerente ao comer, sendo o seu negativo, a fome.
Sim, a obra “Comer…” é, também, sobre a ausência de comida.
Paolo Rossi busca, todo o tempo, estabelecer uma relação de semelhança entre o termo comer e diferentes conceitos. Deste modo, o autor leva ao leitor a prestar atenção, nem que seja por um momento à multiplicidade de metáforas alimentares que usamos todos os dias. Rossi nos empurra para diante do dilema, vale dizer, enquanto comemos, outros não podem fazê-lo com a frequência biológica e espiritualmente necessária.
“Comer…” tem o propósito de fazer com que o leitor reflita e leve em conta as referências antropológicas e culturais constantes no ato de ingerir alimentos (sejam esses quais forem). O que implica tanto nos desejos primários, próximos a uma resposta à necessidade, como profundas emoções, pulsões. Ronda então a obsessão. Lembre-se o leitor de que, a partir da mitologia, Cronos, se faz presente na nossa imaginação, o deus que representa o tempo inexpugnável, o qual rege os destinos e tudo pode devorar. Na ordem inversa, impõe-se o jejum como ato de purificação, dogma de diferentes crenças.
Sim, Paolo Rossi se refere aos diferentes significados que a palavra comer, ou melhor, a ideia de comer, pode assumir. Os bons dicionários registram diferenças e variações de significado: ingerir elementos sólidos ou semissólidos, mastigando ou engolindo; consumir uma refeição; usar algo habitualmente como alimento.
A alimentação é utilizada inclusive em jogos de tabuleiro como dama e xadrez. Come-se as pedras ou peças.
Há, também, no pensamento paolorossiano toques de pitoresco e de reflexão profunda sobre alguns aspectos do fenômeno “comer”. No capítulo quatro, o autor sugere que reflitamos sobre um ponto que gera, ainda, inquietação, curiosidade, entre os antropólogos: “Dado que todos os que pertencem à espécie humana são onívoros e dotados de um aparelho digestivo absolutamente idêntico, como é possível que em alguns lugares do mundo sejam consideradas iguarias coisas como formigas, gafanhotos ou ratos, coisas que em outros lugares parecem ser imundícies repulsivas?”
As questões que podem se desdobrar a partir do dito acima serão tantas quantas as respostas possíveis a cada uma delas. Um dos pontos, por exemplo, e, talvez, um doas mais importantes, é que se julga, se classifica, sob a perspectiva moral, inclusive, culturas, pessoas, que adotaram, há centenas de anos, aranhas, serpentes, baratas d’agua, morcegos como comida do dia a dia.
Bem observa Paolo Rossi: “Comer não envolve apenas a natureza e a cultura. Situa-se entre a natureza e a cultura. Participa de ambas. Tem muito a ver com a primeira e também com a segunda”.
Como não poderia deixar de ser, o autor estabelece comparações, proximidades, entre o comer, o beber e o ler. Interessa-lhe o grau de sofisticação, ‘noblesse oblige’, de requinte com que essas três atividades são tratadas: “Em todo o mundo existem programas de televisão que apresentam e ilustram receitas de comida. Existem inúmeras revistas que têm uma seção dedicada à culinária. A linguagem dos especialistas, que pode ser comparada, como no caso dos vinhos, à da crítica literária, atingiu, como no caso do azeite de oliva, níveis realmente incomuns de refinamento e sofisticação”.
O “não comer”, também marca presença indelével entre as religiões, como já foi ligeiramente observado mais acima. Vale, entretanto, reproduzir, aqui, o que Rossi diz, de forma mais ampla e densa: “Religião e jejum são termos dificilmente separáveis. O jejum é uma forma de autodisciplina e faz parte da formação espiritual. O desejo constitui a origem do mal e o desejo da comida é um dos mais enraizados e profundos. Distanciar-se dos desejos faz parte do caminho da salvação”.
No prosseguir do capítulo dedicado à privação de alimento, por um determinado período, a título de penitência, percebe-se a abordagem múltipla do costume, por Paolo Rossi. O filósofo, o antropólogo, o psicólogo, o sociólogo que se manifestam no autor consideram que o jejum é de especial interesse quando considerado como uma disciplina submetida voluntariamente para fins morais e religiosos. Como tal, é amplamente difundido. Seus modos e os motivos variam consideravelmente de acordo com o clima, a raça, a civilização e outras circunstâncias, mas seria difícil nomear qualquer sistema religioso de qualquer descrição em que seja totalmente não reconhecido.
Terrível, catastrófico, real, o “não comer” por falta de comida e não por devoção religiosa, também se faz presente na obra de Paolo Rossi. O capítulo é pesado, triste, bizarro até. Não, necessariamente, pelo estilo de escrita do autor, mas, sim, pelas descrições, pelos exemplos. Confesso que, ao concluí-lo, estava mortificado. Nem espere o leitor sair impune dessa parte.
Mais adiante, Rossi acerca-se do fenômeno da obsessão alimentar. Trata de alguns fatores relacionados, inclusive da mídia voltada para o segmento alimentar: “O número de outdoors e comerciais que sugerem o que comer e o que beber é extraordinariamente alto, comparáveis ao número de outdoors e de comerciais que ensinam como nos manter limpos e cheirosos”.
Ao selecionar este livro para o primeiro artigo desta nova coluna “Se Comes, Tu Bebes”, senti que haveria de levar aos leitores uma produção intelectual das mais qualificadas. Os campos do Conhecimento que se interseccionam ao longo da obra são muitos. E todos se revelam importantes. Espero que suscite algum interesse em um ou outro que, porventura, passe os aligeirados olhos por sobre estas despretensiosas linhas.
Santé!