Por Acácia Rios (*)
Há algumas semanas uma amiga me convidou para um chá no café da livraria Escariz. Adorei o convite. Ambas apreciamos essa bebida e, com ela, brindaríamos o nosso reencontro. Depois de um longo abraço, Joara pôs sobre a mesa o meu Rolé de quarta-feira para que eu o autografasse, e assim o fiz. Pedimos o chá e, para acompanhar, mini broas, aquelas com um toque de erva-doce, que chegaram à nossa mesa recém forneadas, fumegantes e deliciosas.
Inspirada pela releitura do volume No caminho de Swann, de Marcel Proust, não resisti à tentação. Molhei a pequena broa no chá e comi-a umedecida, como fez o personagem do livro. A broa fez as vezes da madeleine. E o que aconteceu em seguida foi a lembrança de acontecimentos sucessivos em torno da descoberta da obra e da primeira leitura desse livro, que gostaria de compartilhar aqui.
Eu e minha prima Conquinha pegamos um ônibus em Cedro de São João e atravessamos a divisa para Arapiraca, onde moravam outras primas, como nós, adolescentes. Era verão e estávamos de férias. Não havia muito o que fazer lá, mas lembro que entre as idas à piscina do clube, tomar sorvete no final da tarde na praça ao lado da Igreja, passear pelo calçadão, ouvir música, conversar e rir de pequenos nadas do dia, também íamos à biblioteca pública. Lá, por sugestão de Messinha, pedi emprestado À sombra das raparigas em flor, de Proust.
Mal sabia eu o lugar que esse livro ocuparia em minha vida. Claro que não tinha maturidade para aquela obra, da qual li então umas vinte páginas, somente. Mas o título ficara em mim. Aliás, um dos mais bonitos, na minha opinião, tanto em francês quanto em português. Voltei para Aracaju e deixei o livro na estante invisível que carrego comigo, na prateleira dos livros por ler.
Somente muitos anos depois, revisitei essa prateleira, onde estavam o que chamo de “livros da maturidade”. E nela já constava toda a obra Em busca do tempo perdido: No caminho de Swan, À sombra das raparigas em flor, O caminho de Guermantes, Sodoma e Gomorra, A prisioneira, A fugitiva e O tempo redescoberto. Comecei pelo primeiro volume, traduzido pelo poeta Mario Quintana, que introduziu toda uma geração à obra proustiana sem descuidar da densidade do texto original.
Eu estava encantada com a força descritiva de Proust, que usou os sentidos como suporte para evocar o passado e a memória como recurso literário, transformando-a num gênero, o memorialístico. Ao trilhar esse caminho, Proust se engajaria numa das ideias em voga na época, introduzida pelo filósofo Bergson em Matéria e memória. A belle époque foi, talvez, um dos momentos mais efervescentes da modernidade e as descobertas científicas influenciavam a literatura sobremaneira.
Walter Benjamin, no entanto, que se debruçou sobre a modernidade numa perspectiva mais abrangente, dissocia o uso da memória nesses dois autores, uma vez que Bergson refere-se à memória como um ato consciente e Proust, não. Dessa forma, evidencia a memória involuntária nos escritos proustianos, ressaltando que o personagem, ao tomar o chá com a madeleine, não tinha essa intenção. Ou seja, ela ocorre espontaneamente. Proust toma a memória como objeto e a amplia, não científica, mas estilisticamente.
Mas até então eu não sabia disso. De propósito, quis entrar nessa aventura com o olhar virgem, aquele que ignora a crítica e procura o prazer estético sem expectativas ou mediações. Claro que me aprofundaria na obra posteriormente, mas queria antes um contato puro com aquelas páginas, sem que estivesse previamente condicionada.
Então, veio a passagem do chá e da madeleine, que o meu chá com mini broas me fizeram recordar. A madeleine é um bolinho em formato de concha muito comum em Paris, próprio para acompanhar bebidas aromáticas. Quando o personagem proustiano a come com o chá, o sabor aciona a memória involuntária e faz com que ele reviva imagens do passado. A beleza com que descreve instaura a mais pura poesia. Ele desdobra a palavra camada por camada e mostra o que antes estava invisível aos olhos e aos sentimentos. O resultado, ondas de sensações que nos comovem esteticamente e nos enleva espiritualmente. Estava, sem dúvida, diante de uma das passagens mais bonitas da literatura universal.
Depois da leitura quis, ansiosamente, experimentar a madeleine. Morava no Rio naquela época e só fui encontrar essa iguaria na delicatessen Garcia&Rodrigues, no Leblon. Esse estabelecimento já não existe, mas ficou na minha memória. Foi interessante estender o prazer da leitura ao prazer gustativo do famoso bolinho que, com toda a sua simplicidade culinária, permitia acessar um portal do tempo.
Naquele momento em que celebrava um reencontro na livraria, o inusitado convite para o chá, (acrescido pela broa) abriu outro portal do tempo, cujas camadas me levaram a um inesperado e poético rolé de uma quarta à tarde.
Fragmento “No caminho de Swan”
(…) acabrunhado com aquele triste dia e a perspectiva de mais um dia tão sombrio como o primeiro, levei aos lábios uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço de madalena. Mas no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas do bolo, tocou meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção de sua causa. Esse prazer logo me tornara indiferente às vicissitudes da vida, inofensivos seus desastres, ilusória sua brevidade, tal como o faz o amor, enchendo-me de uma preciosa essência: ou, antes, essa essência não estava em mim, era eu mesmo. (No caminho de Swann, M. Proust, SP: Globo, 2006).
Genial, Acácia! Irretocável👏
Texto dos mais tocantes, este de Acácia Rios (@~Acácia).
Não exagerarei pondo-o como uma hermenêutica do sujeito.
Penso as palavras da elegante articulista como a manifestação, em parte, do retorno a um sentimento esquecido. Bem proustiano, isto.
Talvez um leve conectar entre partes perdidas da alma.
Texto tão bom quanto um bom charuto, um bom vinho…
Proporcionou-me larga satisfação em degustá-lo.
Em tempo: Walter Benjamin, hum, como todo espírito genial, consegue ser genialmente abestado. Seus comentários sobre Proust e respectiva obra, não passam uma sucessão frouxa de observações ralas.
Mais lembra um anedotário (tentando fazer-nos de otários), eivado de chistes vazios. Benjamin, tão competente ao adentrar no drama barroco alemão, tão sedutor em suas “passagens”, tão certeiro ao representar Baudelaire ao mundo, tão fundamentado em “A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica”, não obteve êxito algum ao tentar auscultar o coração do mundo proustiano.
Uma boa bosta, enfim.
Sou, intelectualmente, um ogro insociável, ranzinza e… Como costuma observar Iara, minha esposa, intenso ao extremo.
Falta a mim a elegância, o refinamento, os quais (nota-se de imediato) são legítimos atributos da sua nobre pessoa.
Quando li os “apontamentos” (gosto dessa sua classificação), ja havia lido grande parte da produção filosófico-literária daquele que, por pura displicência (alertas não faltaram), morreu na fronteira.
Então, sendo eu um leitor psicoticamente assíduo de Proust, quedei-me decepcionado.
Mas o problema é comigo, mesmo.
Alta expectativa frustrada.
Espero ler outros textos seus nesta linha de hoje. Ficarei feliz 🍷🍷🍷🍷