segunda-feira, 16/09/2024

La vendetta è un piatto che si serve freddo — Uma historinha (de vera) da minha antiadolescência

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Por Léo Mittaraquis (*)

 

Na fração de segundo que dura a menor percepção possível da luz, trilhões de vibrações ocorreram, a primeira das quais é separada da última por um intervalo extremamente dividido. Sua percepção, por mais instantânea que seja, consiste, portanto, em uma multidão incalculável de elementos lembrados e, na verdade, toda percepção já é memória.

Henri Bergson

 

Quanto ao título,  a primeira parte do título, eis, segundo Quentim Tarantino, um antigo ditado klingon.

Induzido pela falta de assunto, ou pela falta de competência para catar um tema que, de fato, despertasse algum interesse nos gatos pingados, vale dizer, meus pouquíssimos leitores, fui levado às reminiscências, às incompletas, vagas, lembranças dum causo. Portanto, hélas, deixei-me levar pelas águas um tanto barrentas da memória e, eis que salta duma das gavetas, registros desbotados do ocorrido.

Não fosse as fundações humanistas, clássicas e neoclássicas, que sustentam este artigo, e o texto não passaria de petardos municiados com farpas duma fofoca autoinfligida.

Ou vai que seja, né?

Bem, quem costuma ler meus artigos sabe que sou inclinado ao drama, quase ao drama barroco alemão.

Intento o exercício do narrar, notadamente, a partir de um ponto para reflexão que tem sido revisitado, ainda que de forma bastante circunscrita, na atualidade: como relatos do que aconteceu a pessoas específicas, em circunstâncias específicas com consequências específicas, podem ser ao mesmo tempo tão comuns e tão significativos?

Seja qual for a resposta, esta tem a ver com uma implicação: quem escreve, com certa frequência, deve perguntar-se os motivos que o levam a fazê-lo. As respostas serão, decerto, as mais distintas. Mas serão respostas, isto é, pelo menos, darão o norte sob o esclarecimento, a refutação, argumentos.

Por que o faço? Suspeito que se já em nome duma alteridade interior. Coisa de reconhecer a mim em mim.

Mas, como diria Adso de Melk, o mnemônico monge beneditino, discípulo de Guilherme de Baskerville, intelectual franciscano, “retoma os fios, ó minha história, pois este monge senil se demora demais nas marginalia”.

Quando, na primeira metade dos anos 70, estudava no Colégio Jackson de Figueiredo (nome do humanista, bem entendido, que no futuro afigurar-se-ia interessante para mim), havia uma professora que lecionava História Geral. A distinta cismou, inexplicavelmente, com minha cara. Nos dois semestres, do primeiro ano em que estive sob sua régua, sofri o diabo. Ouvia chacotas. Dizia para turma que eu era mentalmente lento, e zombava do meu jeito de andar (o qual mantenho até hoje, algo como um urubu a andar quase ereto pelo chão).

O desajeitado caminhar, ombros caídos, pendendo lado a outro, é verdade. Nunca neguei isso. Sempre fui, e ainda o sou, feio, esquisito e troncho. Talvez daí a cisma, né?

Mas, algo que concomitantemente existe em mim, sempre latente, é (segundo acertada observação da minha mãe, logo cedo), a combinação alquímica de três metais preciosos: imaginação, hostilidade e vingança.

Forjei, então, com os dois primeiros, o terceiro elemento. E lhe adicionei ouro potável, como recomendado por Johann Rudolph Glauber, ou seja, a férrea vontade de, durante as férias de final de ano, as quais, na época, quase dois meses, ler tudo o que encontrasse do autor constantemente, com pompa  circunstância, citado pela professora: Armando de Albuquerque Souto Maior, ou tão somente Souto Maior.

História Geral… Tive acesso à clássica edição de 1971, salvo engano.

Não que inexistisse coleções do gênero em casa. Inclusive, superiores. Dispunha dos seis volumes de História Universal do inesquecível historiador Veit Valentim (e mais Lelo Universal, Mirador, Tesouro da Juventude ad libitum…)

Mas não iria queimar os melhores cartuchos da minha escopeta intelectual em formação e calibragem de mira na época.

Então, Souto Maior, mesmo.

A li, a reli e, nascido da dor, qual ocorreu com Katherine Mansfield enquanto comia arenques defumados, aquecidos em pequenos fogareiros, pelos becos sombrios de Londres, o milagre nasceu da dor: estava apaixonado. Sempre havia amado História como campo de conhecimento. Nasci e cresci entre enciclopédias. Mas, ao ler Souto Maior, algo maior ocorreu. Era a linguagem, o modo de expressar, de explicar, que me comoveu.

Não era, como já disse, texto melhor do que outros já lidos a partir dos cinco anos de idade. Entretanto tinha algo de acolhedor, de formal sem ser pesado…

O ambiente de final de ano favoreceu o consumo de rações de vinho de mesa, vinho de família, tipo colonial, com mais frequência. Pedia, concediam-me um copo americano até à risca. Recolhia-me com minha rubra ambrosia e mergulhava na leitura.

Lia à solta a aquele que se fizera grande.

O ódio racional, a fria vendetta se daria, mas, agora, com o implacável toque da paixão.

E por que seria uma vingança?

Porque o tímido e feíssimo aluno havia percebido que a tal mestra pouco sabia, mas se valia de maneira vil, da maior ignorância dos alunos.

Eu estava a apostar: ou conquistaria uma posição ou ficaria numa posição lamentável.

Bem, início de fevereiro chegou. No primeiro dia de aula com ela, creio que 1974, meu corpo trepidava. Ao invés de me sentar no fundo, como soia antes, ocupei uma carteira na terceira das primeiras filas, sentido quadro-negro para fundo.

A ‘fessora’ veio com tudo, se admirando de me ver naquele lugar. Chacoteou… Em seguida iniciou a aula apresentando os capítulos do livro que veríamos ao longo de dois semestres.

Depois, sentada ao birô, com as palmas das mãos sobre o livro aberto, perguntou se haveria alguma dúvida.

Agarrei a oportunidade e danei a citar detalhes, não só dos capítulos selecionados por ela, como capítulos outros e respectivas correlações com os capítulos aos quais ela parecia conhecer alguma coisa.

Pálida, gaguejando, pigarreando, […] se perguntava o que estava a acontecer. Para complicar, pela primeira vez, a classe notava minha presença num misto de admiração e respeito.

Eu bebia o momento como se fosse um copo daquele vinho colonial…

Ela, então, tentou uma cartada de mestre, reconheço: me chamou ao quadro e pediu que eu falasse sobre minhas leituras durante as férias.

Preveniu aos demais que chamaria mais alguns, depois.

Quando ao quadro, ela mandou que eu comentasse sobre a experiência de ter lido Souto Maior durante as férias.

Não só comentei como montei, com gizes branco e laranja, um esquema geral baseado na minha leitura.

Ao final, a criatura, que de esperteza tinha muito, me elogiou e ungiu a si mesma como a pessoa que me transformou de um mísero verme néscio a um atento e inteligente aluno.

Dali em diante, passei a ser monitor dela. Nem mais teria de responder às quatro provas de cada semestre (na verdade, não transcorriam seis meses).

Ela me pedia que ministrasse uma curta aula, coisa de trinta minutos, e me dava nota dez. Ou seja, me subornou e me calou. Vendi-me por boas notas, réu confesso.

Assim tornei-me ainda mais apaixonado pela História.

Souto Maior passou a ser um companheiro com o qual conversava sobre coisas que revolvem no sombrio baixo-ventre do indivíduo… Bílis negra aristotélica… Coisas aquelas que, à exceção dos meus compreensivos pais, jamais confessaria a outrem.

E minha vida, um pouco mais ilustrada, seguiu adiante com seus bônus e ônus…

E quanto ao que conto aqui? A recordar o filósofo Paul Ricoeur, está incluída, na historinha, também, a dimensão metafórica, para além da temporal. O próprio modo de narrar atuaria como fator a ocasionar a transferência de significados, estabelecida por uma comparação implícita. Ou não… Os eventos dos quais estou a recordar podem perfeitamente bastar-se a si mesmos, sem necessidade duma retórica mal perfumada e vazia.

Bem, eis-me sub judice ante ao leitor.

Santé🍷

 

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Sobre Leo Mittaraquis

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Léo Mittaraquis é graduado em Filosofia, crítico literário, mestre em Educação. Mantém o Projeto "Se Comes, Tu Bebes". Instagram: @leo.mittaraquis

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