sábado, 16/11/2024
São Francisco de Assis recebe os estigmas, por Federico Barocci (1600)

Estigmas de fé: São Francisco, o amado do amor

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Prof. Dr. Claudefranklin Monteiro Santos

 

Passados oito séculos, ele segue sendo um dos santos mais populares do Catolicismo. Viveu numa época de grandes tormentos históricos, como guerras, ambições e doenças mortais. Nasceu em berço de ouro, mas fez uma opção radical pelos pobres e pela pobreza, vivendo o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo ao pé da letra e na própria pele. Este ano, a Igreja faz memória a um dos eventos mais extraordinários de sua vida, quando teve a graça de ter em seu corpo, as marcas do Cristo Crucificado.

Giovanni di Pietro di Bernardone nasceu no século XII (1181-1182), em Assis, na região da Úmbria, na parte central da Itália. Mais tarde, tornou-se Francesco Bernardone, Francisco de Assis. Durante a juventude, foi irreverente e rebelde, gozando de tudo que o prestígio social da família poderia lhe proporcionar, com luxo, devassidão, bebida e extravagâncias. Tomado pelo ímpeto da idade, cerca de 20 anos, alistou-se numa guerra que sua terra natal travava com a Peruggia, quando foi preso pelos inimigos. Ao ser libertado, passou por vários problemas de saúde, chegando, novamente, a almejar viver a experiência bélica, com vistas a ter fama, mais riqueza e poder, até ser tocado pela mão de Deus.

Após um sonho, largou tudo e foi viver, como já salientei, uma vida dedicada aos mais necessitados, sobretudo aos leprosos. A lepra (hoje hanseníase) era um mal que afetava grande parte da Europa, levando muitos a óbito ou ao isolamento e ostracismo social. Até a sua morte, com apenas 45 anos, no dia 3 de outubro de 1226, Francisco dedicou-se exclusivamente aos votos de pobreza que fez, tendo seu exemplo inspirado a muitos, a exemplo de Santa Clara e também aos seus irmãos, que sob sua liderança, fundaram a Ordem Franciscana, por volta de 1209. Sua canonização foi uma das mais rápidas da História da Igreja Católica, ocorrida em 16 de julho de 1228, pelo papa Gregório IX.

A palavra estigma, hoje, assume outros significados para além do seu sentido religioso. Fala-se, por exemplo, em estigma social para se referir a uma parcela da sociedade desprovida de dignidade e recursos. Mas, no que se refere a São Francisco de Assis, estamos diante do primeiro santo da História a ter gravado em seu corpo, algum tipo de ferida provocada por evento sobrenatural. Fato destacado pelo historiador Jacques Le Goff (1924-2014), em seu livro “São Francisco de Assis” (1999): “(…) Francisco terminou sua caminhada à imitação de Cristo. É o primeiro estigmatizado do Cristianismo” (p. 89).

Nesse sentido, vale aqui recordar de outros santos que também foram estigmatizados divinamente ao longo de suas vidas. Particularmente, de dois outros também muitos populares: Santa Rita de Cássia (1381-1457) e Padre Pio de Pietrelcina (1887-1968). A primeira, antes de falecer, por 15 anos, carregou uma úlcera na testa, que além de sangrar, exalava forte odor. O ferimento foi provocado por um dos espinhos da coroa de Cristo, em um momento de profunda oração. Por sua vez, São Padre Pio teve chagas nas mãos, pés e uma outra no peito, em formato de cruz. Estes estigmas teriam aparecido a partir de 1915. Há imagens dele, inclusive em vídeo, com faixas ensanguentas envolvendo as mãos.

São Francisco também teve seu corpo ferido pelas cinco chagas de Jesus Cristo Crucificado. Era o ano 1224, quando ele vivia uma fase de profundo recolhimento da vida pública, fazendo retiros de cerca de 40 dias. Foi uma época de grandes provações físicas, tendo que enfrentar diversos infortúnios, como o fato de ficar cego e adoecer gravemente. Vale salientar, que a aprovação da Ordem Franciscana lhe casou inúmeros aborrecimentos e desgostos.

Dos inúmeros escritos que já se dedicaram ao Santo de Assis, um dos mais conhecidos é o livro “O Irmão de Assis” (1979), de autoria de Ignacio Larrañaga (1928-2013), escritor espanhol, frei da Ordem dos Capuchinhos. Na primeira edição portuguesa, traduzida pelo frei José Carlos Corrêa Pedroso, de 1980 (Edições Paulinas), ele dedica valiosas e ricas páginas a narrar o processo de estigmatização de São Francisco, das quais, entre tantas assertivas, destaco a seguir: “(…) Na luz incipiente da aurora, comprovou que suas mãos, pés e lado estavam, queimados, feridos, perfurados, manando muito sangue” (p. 339).

Na visão ou sonho que Francisco teve naqueles meados de setembro de 1224, Jesus lhe apareceu em formato de anjo crucificado com chamas incandescentes. Não tardou para que a experiência mística alcançasse os corações de seus devotos e atravessasse os tempos históricos, chegando aos nossos dias, envolta em grande afeição, fé e entusiasmo. Mesmo que tal acontecimento tivesse sido motivo de contendas, desencontros e dúvidas entre seus estudiosos, conforme explica Donald Spoto, em seu livro “Francisco de Assis, o Santo Relutante” (2002).

Fato é que, afirma Spoto, “(…) nenhum santo foi objeto de tanta atenção de parte dos historiadores e biógrafos” (p. 13), quanto ele. “(…) Francisco deu ao mundo uma vida de simplicidade radical, desvinculada de quaisquer posses e, portanto, livre para seguir os acenos da graça e o caminho que leva a Deus, a qualquer momento e em qualquer lugar em que Deus o chamasse” (p. 21). Que os estigmas do Cristo alcancem o nosso tempo turbulento, se não marcando nossos corpos tão chagados, sobretudo dos pobres e famintos, enfermos e vítimas de guerras, ao menos com sinais de amor profundo, capazes de abrir os corações mais duros às realidades de penúrias e injustiças sociais, pois, como dizia Francisco à época de sua estigmatização: “O Amor precisa ser amado”.

 

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Sobre Claudefranklin Monteiro

Claudefranklin Monteiro Santos
Professor doutor do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe.

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