No livro VII da República, do filósofo grego Platão, encontramos uma famosa alegoria que nos instiga a discutir, dentre outras coisas, como se dá a busca da verdade e o tortuoso trabalho para nos livrar dos simulacros e da tenebrosa caverna de sombras e ilusões. Na alegoria da caverna, aquele que antes esteve como prisioneiro em um mundo de sombras e ilusões assume o desafio de quebrar os grilhões e sair da caverna para finalmente contemplar a luz (a verdade). O que encontrou ao sair da caverna mudou de tal forma a vida que ele se sentiu investido do dever de voltar e avisar aos que lá ficaram o que havia encontrado. Essa alegoria socrático-platônica nos revela o processo de ascese espiritual rumo à verdade, processo este que, há muito, entrou em crise em nossas instituições de ensino. Não há mais “vida intelectual” e as poucas que ainda resistem estão enfrentando um longo processo de barbarização vertical da cultura e do espírito.
Sócrates, pai da antropologia filosófica, teria dito que uma vida sem reflexão não merecia ser vivida. Sem o exercício de nosso principal atributo, que é a razão, tornamo-nos escravos da opinião alheia. Aquele que se deixa levar pela opinião alheia sem se entregar ao trabalho de pensar por si, acaba levando uma vida débil e miserável. O impulso que nos faz rumar na direção da verdade é um dever moral humano sem o qual nos reduzimos ao meramente instintivo e animalesco. Onde não há mais diálogo sincero e racional resta apenas a opção das bestas: a violência. O exercício desinteressado do pensamento, livre de arroubos políticos e ideológicos, tornou-se uma tarefa hercúlea em nossos tempos. Esquecemos as recomendações de Sócrates e colocamos as nossas instituições de ensino na UTI. Foram postas lá por um amplo movimento de barbarização vertical da cultura e da vida intelectual.
Em nossas instituições de ensino, a livre expressão do pensamento deixou de ser um impulso natural para ceder espaço ao “messianismo pedagógico-ideológico”. O messianismo, seja o estatal (através de programas e mecanismos de controle centralizado), seja o professoral (como agente executor dos mecanismos de produção e reprodução de uma visão de mundo), possui o poder de converter o exercício de ensinar em mero trabalho de manipulação e destruição vertical. A aplicação básica e técnica de “ensinar” converteu-se em um movimento astuto de caráter político ideológico de “transformar”, de “modelar cabeças”.
Como agente do estado, o professor se tornou – por necessidade, em alguns casos, e por contingência, em outros – um agente de transformação social do mecanismo. Paradoxalmente, o “professor transformador” mal conhece os rumos de sua própria vida, mas já é posto para projetar a vida dos alunos. Olhando o estado de miserabilidade e submissão desses agentes, os próprios alunos não os têm como exemplos de transformação. No chão da realidade, ambos cumprem, em sala de aula, uma espécie de teatro pantomímico. Sobre esse tipo esdrúxulo de relação, cabe a passagem em Mateus 15: “[…] são guias cegos guiando cegos. Se um cego conduzir outro cego, ambos cairão no buraco”.
Investidos dos mesmos propósitos salvacionistas dos burocratas do estado, os professores, “missionários ideológicos”, só autorizam a discussão em sala desde que limitada a certos temas minuciosamente organizados em trilhas formativas, ementas e programas de ensino prepostos pelo mecanismo estatal. A trilha de conteúdos maquiavelicamente escolhida pelo mecanismo é análoga aos “antolhos” – acessório que é colocado na cabeça do animal para limitar sua visão -, forçando os alunos a olharem para cada tema em discussão apenas sob um único olhar. Não são conteúdos, são propagandas ideológicas de estado organizadas para modificar o comportamento e modelar as mentes.
Sobre o caráter maquiavélico desse mecanismo de modelagem, remeto o leitor à leitura do livro de Pascal Bernardin, “Maquiavel Pedagogo: ou o ministério da reforma psicológica”. Segundo Bernardin, o objetivo principal das instituições de ensino de há muito deixou de ter como prioridade a formação intelectual dos alunos e, muito menos ainda, oferecer-lhe conhecimentos elementares. Ainda segundo Bernardin, a redefinição do papel dessas instituições passou a ser o de garantir uma revolução cultural e ética, destinada à modificação de comportamentos e valores.
Como se não bastasse esse estado degradante, as instituições de ensino se tornaram alvo de uma ampla barbarização vertical, a exemplo dos atuais casos midiatizados de violência física, simbólica e estrutural. Tal processo tem ocorrido tanto na horizontal quanto na vertical. Os ataques chegam da direita para a esquerda, da esquerda para a direita, de baixo para cima, de cima para baixo, de fora para dentro e de dentro para fora. O estado de degradação carrega, em seu bojo, o “germe” do medo do conhecimento e a relativização absoluta dos valores.
A barbarização vertical encara o ensino tradicional sob a ótica do reacionarismo e do autoritarismo. Como solução, a barbarização traveste-se de inovação contra o passado. A perspectiva antitradicionalista é revolucionária. No fundo, trata-se de um movimento antiaxiológico em que tudo vale, exceto o reconhecimento de valores perenes para a sociedade. A dimensão axiológica de uma sociedade implica na assimilação de determinados valores morais, éticos, estéticos e espirituais. A verdadeira face da barbarização vertical revela-se como demolição dessas estruturas axiológicas meramente por uma ação revolucionária. Sob o ataque desse processo de barbarização, gradualmente, passamos a desconfiar dos valores e aceitar a fluidez estéril das novidades como única e inquestionável certeza.
Assim como no corpo, a doença é um símbolo, as instituições de ensino tornaram-se símbolos, sintomas desse processo de desmantelamento axiológico do corpo social. Dada a sua fragilidade, nossas instituições de ensino tornaram-se alvos fáceis do processo de barbarização vertical. Mario Ferreira dos Santos, em seu livro “A invasão vertical dos bárbaros”, ilustra muito bem esse processo de tensão: “O bárbaro é o que sabe sem saber o porquê; o civilizado é o que sabe, sabendo o porquê do que sabe.” Podemos entender da seguinte forma: O bárbaro subverte, destrói a ordem das coisas sem saber o porquê; o civilizado é o que sabe o porquê sabe e luta para manter sua tábua de valores, sua luta é contra a barbarização. Os bárbaros, por sua vez, ignoram o custo para se construir o alicerce moral de uma civilização; seu trabalho resume-se à mera desconstrução.
A barbarização vertical traveste-se em soluções mirabolantes e propositadamente deslocadas da realidade. Fóruns de debates, metodologias de ensino, reformas curriculares, nada, nenhum desses movimentos trouxeram solução. A representação da “Caverna” na alegoria de Platão reproduz bem o estado de coisas às quais submetemos as crianças: “- […] Estão lá dentro desde a infância, algemados de pernas e pescoços, de tal maneira que só lhes é dado permanecer no mesmo lugar e olhar em frente; são incapazes de voltar à cabeça, por causa dos grilhões”. A representação desse estado de calamidade mantem sua força quando nos convida a fazer a seguinte reflexão, vejamos:
A “caverna” é o nosso atual sistema de ensino e aprendizagem; “as algemas” e os grilhões são as ineficazes reformas nos programas, conteúdos e testes avaliativos; “os prisioneiros agrilhoados” no interior da caverna são os professores e alunos; o “permanecer no mesmo lugar” significa que, há décadas, nada se fez de relevante para superar tais dificuldades; “incapacidade de mover a cabeça” para além dos grilhões são os cursos de licenciatura e formação continuada de professores, verdadeiras fábricas de militância performaticamente disfarçadas de ciência da educação.
Nesse quiproquó causado pelo processo de barbarização, a lista de asneiras teóricas metodológicas é tão extensa que não deu para enumerá-las no presente artigo. Os prejuízos da barbarização vertical em nossas instituições de ensino são tão profundos que, mesmo quando se propaga a “educação para a emancipação”, tudo não passa de um estratagema, um disfarce para aumentar a vigília refratária ao livre pensamento.
A fórmula tradicional da boa e sólida educação é simples: professores motivados e bem preparados para mediar e aplicar a técnica de ensinar de um lado, e, por outro, alunos motivados a aprender. O resto é pirotecnia teórica e metodológica. Se entre esses dois agentes do processo houver um conflito de interesses – os professores querem uma coisa e os alunos outra – não há uma solução fácil para o problema.
Certo dia, um aluno externou o seguinte: “[…] professor.., vir para a escola é legal, pena que tem aula!”. Como solucionar esse conflito de interesse? Não há messianismo estatal ou professoral que concorra com essa verdade inabalável: o conflito de interesses e a barbarização vertical dos valores são os principais empecilhos para a superação do problema. O aluno é posto em tempo integral na escola, o professor também, mas são como estranhos perdidos em uma profunda caverna sem qualquer nesga de luz.
O buraco da educação brasileira pode ser comparado, por analogia, à própria caverna da alegoria de Platão, exceto, por uma trágica diferença: na Alegoria – depois de ter contemplado a luz -, o prisioneiro liberto dos grilhões retorna para a caverna com o propósito de salvar os demais do obscurantismo vulgar dos preconceitos – trabalho que só se completa pelo livre exercício do pensamento. Porém, no caso da caverna que habita a educação brasileira, tal trabalho já não é mais possível; não há mais sequer a entrada da caverna, posto que se encontra obstruída por entulhos de degradação. Quanto àqueles que lá ainda habitam, soterrados por entulhos de soluções vazias, restaram apenas os gritos dirigidos a uma plateia de surdos, também destruída pela barbarização vertical.
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(*) Professor, palestrante, licenciado em Filosofia, mestre e doutor em Educação; Membro da Academia Maçônica de Ciências Artes e Letras. Secretário da Educação e Cultura do GOB-SE.