Meias-palavras

A fé revolucionária e suas vítimas

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Por Marcus Everson (*)

 

Dentre os acontecimentos históricos que marcaram o século passado, nenhum foi mais maléfico do que o uso da fome como instrumento de destruição cognitiva das massas. Na mesma velocidade com que a Engenharia Social da Fome, como instrumento de guerra psicológica, foi largamente utilizada, também, em larga escala, a inversão demoníaca dos fatos históricos foi estrategicamente usada para que a verdade assustadora desses acontecimentos jamais corrompesse a imagem “impoluta” do líder e embotasse seus planos de construir o “paraíso social”. Na antiga União Soviética, Joseph Stalin usou o expediente da distorção histórica como prática comum de guerra psicológica para modelar a opinião pública. Sua abordagem filosófica em relação à História foi utilitária, isto é, servia aos interesses do Estado e do Partido Comunista.

A “filosofia da história” de Stalin tinha como norte a necessidade de consolidar o poder do partido criando narrativas que justificassem todo e qualquer crime, sempre preservando a imagem positiva do governo. Distorções e desinformações foram técnicas bem sucedidas na medida em que contribuíram para fazer as massas acreditarem que marchavam para o paraíso celeste do socialismo. Os dissidentes, aqueles que despertavam da ideologia dogmática do líder salvador – “guia inquestionável da História” – sequer conseguiam reunir forças contra essa distorção da realidade; foram todos banidos ou mortos pela fome. Um dos registros mais contundentes acerca do que aconteceu na Antiga União Soviética sob o poder de Stalin é o que relata Aleksandr Soljenítsyn em seu livro Arquipélago Gulag, quando diz:

 

Foi descoberto há séculos que a Fome governa o mundo. (Aliás, sobre a Fome, sobre o fato de que famintos inevitavelmente hão de se insurgir contra os alimentados, foi construída toda a Teoria Progressista. E não é nada disso: insurgem-se os que estão um pouco esfomeados, mas os famintos de verdade não estão para insurreições.) A Fome, que leva uma pessoa honrada a ser capaz de roubar (“barriga vazia” – “consciência vazia”). A Fome, que eclipsa o cérebro e não deixa se distrair com nada, pensar em nada, falar em nada que não seja comida, comida, comida. A Fome, da qual não dá para escapar em sonho: os sonhos são com comida, a insônia é por causa de comida. E logo só há insônia.

(SOLJENÍTSYN, 2019, p.311)

Quando os acontecimentos históricos deixam de ser mero devir – acontecimentos imperscrutáveis ao sabor da inefável vontade divina – passando às mãos de engenheiros sociais, começa a nascer, do ponto de vista dialético, a ideia filosófica de progresso social como constructo da razão humana. A manjedoura dessas ideias progressistas de aperfeiçoamento do homem e construção de uma sociedade dominada pelo reino da razão foi o movimento das “Luzes”.

Nos estudos sobre Filosofia da História, a passagem do princípio teológico e divino como guia da história para o da ordenação imanente do universo dominou boa parte das discussões durante a modernidade. Voltaire, em suas reflexões sobre Filosofia da História, foi um dos que estabeleceram os alicerces da ciência histórica moderna ao colocar-se de forma crítica diante de um campo do conhecimento até então dominado pela Teologia. Nas reflexões de Voltaire, a noção de história como progresso encontra-se permeada por um devir da razão humana que, ao longo do seu percurso – embora tendo passado por momentos de decadência –, mesmo assim, subjaz a crença de que tudo tende para o melhor. Mutatis mutandis, a noção prometeica do progresso, por sua característica revolucionária e, atentatória à realidade imperscrutável do devir histórico, apresenta-se como uma das origens intelectuais do totalitarismo.

No verbete “História”, redigido por Voltaire para a Enciclopédia de D’Alembert e Diderot, ele indica que os “monumentos” mais antigos da humanidade – os textos astronômicos mesopotâmicos e chineses, as inscrições dos gregos e as pirâmides do Egito – são definidos como produtos de um desenvolvimento social longo e complexo do progresso humano. Voltaire exprime ainda que as grandes realizações artísticas e científicas dependem de condições sociais favoráveis, de modo que os indivíduos possam expressar seus talentos. Quanto melhores as condições sociais e materiais dos homens, maiores são as chances de o progresso seguir seu curso. De acordo com Voltaire, o devir da história não depende de um thelos divino (fim divino), sendo assim, propõe o rompimento com a tradição metafísico-religiosa da história.

Em contraponto à concepção teológica da história como divina providência, Voltaire insistiu em fazer uma distinção fundamental, concebendo-a como uma “Filosofia da História”, detendo-se então no primado da vontade e da razão humana. A partir disso, ele nega assumir uma posição teológica da história, tal como faziam os historiadores que, como Jacques Bossuet e Santo Agostinho, entendiam a história sob o prisma da Divina Providência. Para Bossuet, a divina providência representaria a ordem definida pela sapiência divina no que diz respeito aos destinos da humanidade. Para Santo Agostinho, ela representaria a própria predestinação do homem. Deus como ser soberano da história humana escolhe os seus, aqueles que deverão ser ou não salvos no fim dos tempos, de modo que toda a História não passa de uma narrativa dirigida pela divina providência.

Contrapondo-se a essa visão teológica, flagra-se na modernidade uma contradição entre o discurso da religião e da história. Se, para a primeira, a corrupção do pecado deteriora o homem – como proclamam os religiosos -, para a segunda, vê-se, por exemplo, na ciência, um avanço extraordinário, que coloca em dúvida o próprio arsenal doutrinário explicativo dos crentes. Em vista disso, um divórcio, então, se prepara entre a religião e sua palavra sobre os desígnios, por definição, misteriosos e ocultos da providência para o mundo e a história humana com seus seguros indicativos de um progresso, cujo motor não é outro senão seus próprios agentes.

Sobre a necessidade de rompimento com a noção de história sob o apoio da teologia, em presença de uma divina providência, cada um dos eventos históricos estaria previamente determinado e, neste caso, o homem não estaria livre para exercer sua liberdade. Para que o verdadeiro reino da liberdade surja, faz-se necessário que o próprio homem seja o construtor da história, distanciando-se de qualquer compreensão divina da história. Na visão dos modernos, Deus surge como um grande empecilho à liberdade humana de seguir seu caminho na história, daí a necessidade de romper com essa visão de caráter histórico-teológico própria do discurso levado a cabo por Bossuet e Agostinho.

Do mesmo modo que Voltaire, Denis Diderot, com seu “materialismo biológico”, passou a entender a história como desgarrada de um thelos divino. O professor Roberto Romano (2003), em seu livro “Moral e ciência: monstruosidade no século XVIII”, afirma que, sem Deus guiando a história, o século XVIII teria gerado “monstros”, mas, mesmo assim, o pensamento continua a buscar um sentido para o ser e para a morte. A partir de então, busca-se, na modernidade, um método para se apanhar o aspecto caótico da vida agora não mais regulada pelos ditames de um geômetra ordenador (Deus).

A partir desse rompimento com o metafísico, emerge o imanentismo. A razão humana ousa ocupar o espaço que antes havia pertencido a Deus criando ideologias antropocêntricas e elaborando novos sistemas de interpretação do mundo.  Raymond Aron, em seu clássico “O ópio dos Intelectuais”, afirma que:

 

“Os intelectuais inventaram as ideologias, sistemas de interpretação do mundo social que implicam uma ordem de valores e sugerem reformas a serem feitas, reviravoltas a se temer ou a serem esperadas. Pessoas que condenaram a Igreja Católica em nome da razão aceitam um dogma secular por estarem decepcionadas com a ciência parcial ou por ambicionarem o poder, dado apenas aos sacerdotes da Verdade”.

(ARON, 2016, p. 287)

Sem uma ordem divina, compete às ideologias criar uma nova ordem racional.  Nada melhor que o tempo para nos mostrar a verdade por trás dessa mitificação ideológica. Ao julgar a noção de história como progresso permeado por um devir da razão humana, propugnada por revolucionários como Voltaire e Diderot, logo percebemos que o primado da razão converteu-se em um novo credo. O novo credo, a nova ordem das “Luzes” revelou-se como mera hipocrisia. Aron (2016) chama a nossa atenção para o fato de que:

 

“Os filósofos franceses do século XVIII já erma intelectuais, no sentido moderno da palavra. Tiravam o sustento do que escreviam, reivindicando o direito, do qual plenamente se serviam, de exprimir a sua opinião, em geral critica, sobre temas da história ou da política. Nem pelo pensamento nem pelos meios de vida dependiam da igreja, eram mais ligados aos ricos do que à velha nobreza, e divulgavam uma concepção do mundo que rompia com a França católica e monárquica.”

(ARON, 2016, p. 287)

No altar da hipocrisia iluminada e de seu apego aos jantares suntuosos e a corrupção da inteligência aos sentimentos mais comezinhos, a monstruosidade dessa atitude revolucionária não fundou uma nova ordem igualitária e fraterna. A falsa percepção da ordem racional insuflada por uma ignóbil fé revolucionária coloca em marcha a ideia de destino melhor para homem desde que a força da chamada religião científica jamais seja interrompida em seguir seu rumo.

Com o esforço de destruição do “despotismo eclesiástico”, para a construção da nova “Eclésia Revolucionária”, os intelectuais não mediram esforços para demonstrar sua virulência; os ímpios opositores do novo credo perderam literalmente suas cabeças; o “novo batismo revolucionário” emergiu sob o intenso espargi de sangue por todas as ruas da França oitocentista e, desde então, manteve-se, mudando apenas as ferramentas de destruição. Assim, Aron (2016) lembra que:

 

Contentes de serem ateus, avessos à vida religiosa, intelectuais de esquerda quiseram divulgar a falta de fé como missionários divulgam a fé, convencidos de que libertavam os homens ao matar os deuses e ao derrubar os altares. Outros se preocupavam com o irremediável declínio do cristianismo e imaginavam dogmas aceitáveis pela razão, capazes de restabelecer a unidade espiritual. O Bolchevismo se relaciona com essas duas intenções: o fervor combativo dos sem-Deus é o que o anima, e ele elaborou uma ortodoxia supostamente conforme aos ensinamentos da ciência. Na Rússia, são os intelectuais que concedem a suprema investidura. O comunismo é a primeira religião de intelectuais a ser bem sucedida.

(ARON, 2016, p. 288)

Todo o discurso possui uma ordem a partir da qual, em última instância, estando em mãos totalitárias, acabam assumindo uma imagem positiva aos olhos desavisados.  A arquitetura demiúrgica que permeia qualquer ação totalitária sustenta-se no trabalho constante de desconstrução sob a promessa de novos tempos. Muito antes de as religiões políticas darem o ar da graça no século passado, figuras como Augusto Comte já haviam formulado reflexões sobre como constituir uma religião científica substituta. Suas leis da História revelam uma espécie de ordem cósmica dividida em três etapas: do desenvolvimento histórico partindo do Sagrado, deste para o Metafísico, para, finalmente, atingir o estado positivo, de a ciência então conferir a redenção final de todos os homens. Aron (2016) reforça que:

 

Nesse ponto preciso, a ideologia se torna o conteúdo de um dogma. O salvador coletivo não se submete mais à história, ele a cria, ele constrói o socialismo e fabrica o futuro. Essa transfiguração do partido em Messias se mantém uma aberração sectária por todo tempo que o partido vegetar e militar na oposição, impotente, irreconciliável. É a tomada do poder que autentica suas pretensões. Ele encarna o proletariado com tanto mais plausibilidade quanto mais estreitamente se confundir com um Estado.

(ARON, 2016, p. 293)

 

A religião terrestre dos revolucionários irá converter-se, nos séculos seguintes, na figura onipresente do Partido. Seu mantra imorredouro diz: “Tudo no, e para o partido e nada fora dele”. No âmago da propaganda política que sustentou a mitologia revolucionária, tudo o que lá aconteceu teve sua justificativa. O derramamento de sangue teve seu motivo de ser desde que fosse para consagrar a nova fé. O messianismo revolucionário de 1789 representou e ainda continua representando em diversos meios intelectuais um acontecimento glorioso do total triunfo da razão iluminada contra as trevas da Idade Média. Gertrude Himmelfarb, em seu livro Caminhos para a Modernidade (2011), com a iniciativa de transformar todos os assuntos em um compromisso do Estado frente aos cidadãos, fez surgir um novo cosmo político organizado por uma “ideologia da razão”. Segundo Himmelfarb:

 

“[…] foi em nome da Razão que Voltaire lançou sua famosa declaração de guerra contra aquilo que passou a ser representado como passado, a Igreja ‘Écrasez l’infâme’ [Esmague a infame] e que Diderot propôs enforcar o último rei com as tripas do último padre”.

(HIMMELFARB, 2011, p. 33).

Sendo, portanto, materialista e anticlerical, o movimento Iluminista Francês não parece guardar qualquer escrúpulo quanto ao desejo de substituir a antiga concepção religiosa de sociedade por uma nova religião civil de estado.  Exalta-se a Razão ao invés da Fé, cumprindo-se aquilo que Himmelfarb chama de ideologização da razão e sagração de uma nova fé.

As cabeças iluminadas da França revolucionária levaram, até a última instância e radicalidade, a crença fanática no poder da razão frente à religião. Ela mesma, a razão, transformou-se em novo credo revolucionário. O novo credo cívico passa a ser detentor jurídico dos princípios morais, políticos, sociais e pedagógicos, princípios com os quais a sociedade deveria guiar-se. Se há uma lei da história que invariavelmente faz as coisas tenderem em certa direção, faz-se necessário lembrar a tese de Karl Popper, em seu livro a Miséria da Teoria, quando diz que grandes prognósticos históricos não são previsíveis, logo, não há leis da história, mas sim tendências. Tais tendências são falseáveis (empíricas), enquanto que uma “lei histórica” (teoria) não seria criticável (falseável). Aquilo que não se permite ser falseável não pode ser visto como ciência. A noção de progresso como “Lei da História” encontramos nas conclusões teóricas dos marxistas quando afirmam a inexorabilidade do Comunismo em vista das contradições internas do Capitalismo.

A crença na possibilidade de prever o desenvolvimento futuro que a sociedade tende a tomar baseando-se em leis históricas não possui embasamento científico. Para onde foram as “Luzes”? No momento em que se sacrificaram as conclusões teológicas em favor das científicas, na medida em que, com Popper, chegamos à compreensão de que a História não segue padrões previsíveis ou leis científicas, se o critério da ciência é a falsificabilidade das teorias, então, a atitude mais digna dos portadores da “Luz” seria a de colocar o “rabo entre as pernas”. Mas, se mesmo diante de tão límpida fragilidade teórica os portadores da “Luz” ainda enchem o peito de orgulho, isso revela o quão cegos estão os seguidores desse messianismo científico.

Assim, como não há religião sem credo, também não há religião estatal sem mandamentos jurídicos e sem leis morais universais, o século das “Luzes”, ver surgir a Declaração dos Direitos do Homem como novo credo jurídico-político norteador da sociedade moderna. No exato momento de recusa à antiga sociedade e de reconfiguração política do Estado Moderno, paradoxalmente, ao invés de ter rompido com a antiga estrutura Estado-Religião, refunda-se uma nova religião civil substitutiva. Essa nova devoção cidadã de Estado encontra-se profundamente marcada por um forte sentimento de mudanças e de amálgama coletivo.

As falsas promessas da fé revolucionária permanecem entusiasmando o incauto. O messianismo partidário continua formando adeptos dispostos a fechar os olhos frente aos seus crimes historicamente bem conhecidos; justifica cada um de seus “erros” como se fossem etapas da longa marcha da justiça social rumo ao paraíso prometido da religião civil de estado. Quanto mais eficiente o credo progressista avança, mais rápida se torna a progressão geométrica de suas vítimas.

Em regimes totalitários, o Estado assume o controle total da narrativa histórica, modelando o que ocorreu como se fossem etapas a serem superadas pela “grandeza” do regime em vigor; o revisionismo histórico de eventos, fatos e personagens precisam ser reinterpretados para melhor atender à narrativa oficial do governo. O culto à personalidade do líder, a supressão de dissidentes que apresente as contradições do sistema de governo e, por fim, o controle da narrativa histórica no sistema educacional impedindo que as gerações tomem conhecimento da verdade são características comuns nesses sistemas.

A liberdade, a democracia e a responsabilidade individual são os reais fundamentos da sociedade moderna e os únicos meios capazes de evitar os riscos do historicismo e o culto da religião civil de estado governada por “iluminados” no poder. A realidade do devir histórico permanece imperscrutável, mas a fé revolucionária na predestinação social, sob o gerenciamento arrogante de um líder, continua mais viva que nunca. A fome fabricada por regimes totalitários tem seu motivo de existir, sua ação faz parte da guerra psicológica na medida em que destrói a capacidade cognitiva das massas por meio da fome, tal como nos relata Soljenítsyn: barriga vazia”, “consciência vadia”. Quando as ditaduras destroem a fé religiosa, elas ainda são capazes de fazer massas inteiras ajoelharem diante de um simples prato de comida. Sob a evocação cínica dos Direitos Humanos, as vítimas da fé revolucionária são os famintos, e a inanição é a principal ferramenta do controle cognitivo. 

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Marcus Everson Santos

Ensaísta, Professor Licenciado em Filosofia, Mestre e Doutor em Educação, Colunista do Portal Só Sergipe.

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