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Por Acácia Rios (*)

 

Numa mesa do quintal

Sobre jornais velhos

A jaca se abria em mil bagos amarelos

Cheiro e resina colavam-se nas digitais.

(…)

Pinceladas de amarelo jaca

No tabuleiro de xadrez

Desenham calçadas aromáticas.

Poética da jaca, Acácia Rios

Uma crônica com a leveza da estação, é o que proponho aqui, ao falar sobre uma fruta que, no verão, domina todas as outras – a jaca. É o momento em que as esquinas do centro da cidade sabem ao seu cheiro. Os carrinhos, que antes tinham apenas pedaços uniformes, agora carregam também bandejas, potes e sacos plásticos repletos de bagos amarelos, limpos e livres de visgo. 

Mas na minha infância não era assim. Lembro que havia certa cerimônia quando se ia cortar a fruta. Eu assistia a tudo a certa distância. Jornais sobre a mesa para o visgo não grudar na madeira, óleo de cozinha para untar as mãos, uma peixeira e um pano de prato à mão para alguma eventualidade. Depois de eliminado o perigo do visgo no cabelo e na roupa das crianças, minha mãe retirava os bagos, punha-os numa vasilha e só então comíamos. 

Para mim, ao contrário dos adultos, não importava se a fruta era dura ou mole, pois sempre era doce. Doce o aroma e a cor: amarelo-jaca, a cor preferida da minha mãe. 

Capa do livro Litorâneos, Ronaldson Sousa

Eis que encontro-a majestosa no poema ‘Jaca galáxia’, de Ronaldson (Litorâneos, 2016, 2. ed), cujo título abarca a sua grandiosidade e beleza. Sempre me alegra muito revisitar esse livro porque, como um raio-X, ele reflete o autor e suas raízes. Uma das três partes da obra (Funduras&frugais) é dedicada às frutas litorâneas, que se relacionam com os sabores da infância/adolescência. Uma delas, a jaca, evocada em um jogo imagético repleto de ambiguidade, erotismo e lirismo. 

“Jogada no chão da imensa cozinha/ naquele momento, solene,/ a fruta/ era o centro do espaço/ da casa de vovó, Dona Fia./ Acesos em seu cheiro, mais que fruta (de uma puta que acorda/ a sanha e o sonho dos bambinos) / mas pelo paladar não pelas virilhas.” (p. 89)

Em meio à multiplicidade de imagens que a fruta sugere, Ronaldson completa a ideia do título e a desenvolve numa sequência de palavras do campo semântico de ‘galáxia’: meteoro, mundo, espaço, planetária, asteróides, cometas, via láctea, nebulosas. 

“A jaca é como galáxia / (seu big bang de elastano) / sua gravitação de caroços e gomos / sua cola que segura risos / do açúcar que escorre da boca / impreciso.” (p. 91)

Capa do Livro História da Minha Infância, Gilberto Amado

Outras referências, desta vez na prosa, encontro em História da minha infância (1954), do escritor, jornalista e diplomata sergipano Gilberto Amado. Uma delas, quando descreve o sítio nos arredores de Itaporanga d’Ajuda, onde costumava passar as férias, destacando o seu forte olor. “(…) e em torno [da casa], as jaqueiras carregadas de jaca madura incomodando até de tanto cheirar.” (p. 71)

A outra é quando fala sobre o ambiente escolar. Amado diz que “muitos alunos levavam no bolso, para comer na aula, caroços de jaca assados.” (p. 62). Na minha casa, embora a jaca ocupasse um lugar especial, nunca soube que se assasse ou cozinhasse a semente. Talvez fosse uma prática do interior ou um recurso utilizado por famílias pobres.

É uma fruta generosa, pois dela tudo se aproveita: para além dos seus deliciosos gomos amarelos, também chamados de ‘carne vegetal’, dado o seu poder nutricional, as cascas ou bagaço servem para o gado e seus caroços são assados.

Há algum tempo não ouço a expressão “cair feito uma jaca”, mas ela sempre reverbera em mim quando o tema é essa fruta. Isso porque me faz lembrar Geralda Magela, amiga querida que há alguns anos nos deixou. Costumava contar uma anedota passada no interior de Minas Gerais, em que ela, depois de chocar-se com outra pessoa num tumulto, perdeu o equilíbrio e, citando aqui suas palavras, “caiu como uma jaca”. 

Geralda divertia-se com a imagem da jaca esborrachada no chão e gostava de comparar-se a ela. Adorava todas as frutas e me ensinou a comê-las de manhã porque davam mais energia durante todo o dia. E assim o faço.

Há outra referência, esta, relacionada à minha infância. Lembro do dia em que assisti a um episódio de O sítio do pica-pau amarelo, em que uma jaca cai sobre o Visconde de Sabugosa e o mata. Chorei muito e lamentei não tornar a ver aquele personagem sempre sensato e ao mesmo tempo terno, que aguentava pacientemente as grosserias da boneca Emília. 

“ — Pronto! — gritou ela [Emília]. Está achado o Viscondinho. Quando as duas jacas caíram, uma se abateu sobre mim, e a outra sobre ele. Mas como fiquei com as pernas de fora, todos me viram e correram a me salvar. Já o Visconde ficou totalmente soterrado ou “enjacado”, só com a cartolinha de fora, mas com aquela folha tapando.” (Capítulo ‘A segunda jaca’)

No entanto – que maravilha que é a ficção – Monteiro Lobato faz com que a tia Nastácia providencie outro sabugo de milho e, depois de algumas ideias malucas de Pedrinho para recobrar-lhe a vida, eis que, para minha felicidade, o personagem ressurge.

No verão, é uma alegria sentir o cheiro de jaca nas ruas, espalhado pelo vento que vem da costa e atravessa o rio Sergipe, incensando tudo ao meu redor. No tabuleiro que é Aracaju, a jaca se plasma em memória atávica e vital.

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Acacia Rios

Acácia Rios é jornalista, escritora, professora, mestra em Memória Social e Documental pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e doutora em Ciências da Documentação pela Universidade Complutense de Madri. Leciona na Escola de Artes Valdice Teles.

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