Por Luciano Correia (*)
Voltando ao tema de livros, trago na coluna desta semana uma crítica que fiz já há alguns anos, mas que segue atual: a nova safra de escritores cubanos. Pedro Juan Gutiérrez, quando surgiu na nova cena literária da ilha, causou rumor e fúria, mas só fora do próprio país. Nos quatro cantos do mundo, no entanto, fez um sucesso extraordinário. Virou uma espécie de novo Hemingway, um queridinho de feiras literárias, da Flip de Paraty aos melhores saraus europeus, mas jamais deixou-se seduzir pelo brilho das tentações. Namorou outras mulheres nórdicas, mas, como advertia nos seus livros, seguiu fiel às negras de Havana Velha. Hoje Gutiérrez anda um pouco ausente da mídia mundial – da cubana continua ignorado, desde o início – talvez porque cada vez mais se dedica à pintura, jogando a literatura para um segundo plano. Mas a força de todos os seus livros vale essa mirada na crítica que produzi, na época, para o site da UFS.
Cuba si: o irresistível charme de Pedro Juan Gutiérrez
Ele é a encarnação quase perfeita do latin lover, se é que é possível alguém construir uma reputação dessas numa Cuba mergulhada entre crise e miséria. Trata-se do escritor Pedro Juan Gutiérrez, 53 anos, ex-jornalista e ex um monte de pequenas profissões, última revelação da literatura cubana pós-revolução. Seu universo ficcional (e tem quem garanta que tudo não passa da mais pura realidade) passeia sobre os escombros da sociedade socialista que deveria suceder à chegada de Fidel Castro e seus barbudos ao poder, despachando para fora do país o ditador Fulgencio Batista.
Pedro Juan não pegou tempo bom. Teve de se virar fazendo serviços pesados, alguns deles ilegais, além de trabalhar durante vários anos como jornalista, ganhando um salário de 3 dólares por mês. Em retribuição, viu-se desobrigado a engrossar o coro de beatos da revolução. Nunca se interessou muito pela política, nem permitiu que ela azedasse sua vida. Em vez de ser contra ou a favor de qualquer coisa, botou para quebrar nos seus esportes preferidos: sexo, drogas e rum, todos eles em doses bem servidas. De modo que a leitura de qualquer um de seus três livros lançados até agora no Brasil equilibra esses elementos com a poesia do cotidiano, garimpada na miséria dos habaneros residentes nos cortiços de Havana Velha.
O tom das descrições é tão direto, cortante e às vezes angustiado que nos remete a alguns vizinhos do lado que, da mesma forma, tocaram nesses mistérios do corpo e da alma, os integrantes da beat generetion, os chamados beatniks. A semelhança, além do estilo, se estende às opções de vida e a forma como ela e literatura se misturam. Mais semelhança ainda com outro outsider da literatura norteamericana, Charles Bukowski, que embora não tenha pertencido à geração beat, temperava sua obra com os mesmos fluidos que bafejam a obra de Gutiérrez, como sejam os vapores do álcool, sexo e drogas. Tanto que logo logo os críticos se apressaram em identificar no desleixado residente das ruínas de Havana “um novo Bukowski cubano”.
Gutiérrez já esteve no Brasil, onde participou de bienais e atendeu a jornalistas, roteiro que ele frequentemente cumpre pelo mundo inteiro. Numa de suas saídas, passou três meses em Estocolmo, como bolsista de uma instituição sueca. Diferente de muitos cubanos que não pensam em outra coisa senão pular fora da ilha, Pedro Juan, tanto o autor quanto o personagem, é um herói de verdade. Pouco se lixa com os desconfortos que enfrenta no seu caliente torrão caribenho, tão indiferente como em relação aos mimos de que o brindam por onde passa, seja em Madri ou na Escandinávia. Para não perder a viagem, arranjou uma namorada, uma daquelas louras glaciais, que esquentou suas geladas noites na Suécia. Mas nem isso abalou a certeza de que todo animal deve viver no seu habitat de origem. No final da temporada, teve de se esforçar para fazer a namorada deixá-lo voltar para casa.
A experiência na Suécia, incluindo as cenas do meloso romance, está registrada no seu terceiro livro, “Animal tropical” (veja quadro abaixo). Os outros dois são “Trilogia suja de Havana” e “O Rei de Havana”, todos eles lançados pela Companhia das Letras.
Mulherengo, vaidoso e um dos melhores copos da velha La Habana, Gutiérrez diz que escreve o que conhece e que tudo nos seus livros é tirado do real. “Escrevo sobre gente que conheço, pessoas que vivem rotineiramente se perguntando: ‘Vou preso ou não? Vou ter US$ 1 para viver hoje ou não?’” , disse à Folha de S. Paulo em outubro de 2000, na sua passagem pela Bienal do Livro de Fortaleza. “A maioria dos contos da ‘Trilogia…’ escrevi bêbado”, confessa.
Trilogia suja de Havana
(Trecho)
“Precisava colher um pouco de carqueja-amargosa para um descarrego. Tinha de fazer uma limpeza no meu quarto da cobertura porque nos últimos dias senti duas vezes um leve perfume de mulher. Como se o hálito desse espírito passasse ao meu lado. E isso me deixa louco. Não é bom ter espíritos escuros rondando em volta”.
O Rei de Havana
(Trecho)
“Foi andando até o Malecón. Uns barris de cerveja a granel. Estavam preparando para o Carnaval. Comprou um pouco de cerveja barata. Tinha gosto de vinagre. Bebeu. Comprou mais. Bebeu. Gastou metade da grana. Ao entardecer começou a chegar mais gente. Acabou-se o dinheiro. Queria continuar bebendo. Em volta do barril formou-se um grande grupo de gente querendo comprar cerveja. (…)
Enfiou-se no meio deles. Estavam suados e cheiravam forte. Eram quase todos negros, musculosos, cheirando a suor, agressivos, se apertando uns contra os outros, emitindo com violência o seu bodum, de lenços vermelhos, colares de candomblé. Rey, metido naquele alvoroço, distribuía cotoveladas.”
Animal tropical
(Trecho)
“Assim é. A vida é muito mais complexa que a literatura. Mas também é menos intensa. A literatura tem de avançar com excesso de velocidade para manter a tensão. Do contrário seria uma viagem sonolenta e aborrecida. Selecionam-se fragmentos, escreve-se e trata-se de não aborrecer. Enfim, o único guia com que conto é a intuição. Um pouco de intuição. E isso é muito pouco. (…)
Flutuava entre nós dois um vapor melancólico. Indefinido e cinzento, mas melancólico. Era inevitável. Tentamos esquecer dançando, conversando com amigos, rindo, mas voava sobre nós, silencioso, o anjo da tristeza.”