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Prof. Dr. Claudefranklin Monteiro Santos (*)

 

Embora saibamos e somos advertidos de que qualquer semelhança é mera coincidência e que a vida imita a arte ou vice-versa, há muito o que se aprender e conhecer sobre a vida real a partir de uma obra de ficção, seja ela literária, novelesca ou cinematográfica. Em tempos de invocação à moral e aos bons costumes, aos valores cristãos de Deus, pátria e família, uma peça da criatividade brasileira voltou a chamar a minha atenção nos últimos meses, passados trinta e quatro anos.

Refiro-me à telenovela “Tieta”, de Aguinaldo Silva e Ana Maria Moretzsohn, exibida  entre agosto de 1989 e março de 1990, com cerca de 197 capítulos. Um dos maiores índices de audiência da Rede Globo de Televisão. Originalmente, o texto é de autoria do escritor baiano, Jorge Amado (1912-2001), cuja primeira publicação é de 1976. O sucesso da novela rendeu, ainda, uma versão nas telas do cinema, em 1996, com Sônia Braga no papel de Tieta. Cada uma ao seu modo, as três situações divertem, mas também traduzem a vida do povo brasileiro.

Exibida num momento de reafirmação da democracia brasileira, a novela explorou com maestria o contexto político, com falas e críticas pontuais aos que querem valer-se da inocência do povo e explorar os recursos naturais, às voltas com a usura da indústria Brastanio, cujo dono era o empresário inescrupuloso Mirko Stefano, o Artuzinho (Marcos Paulo), filho do coronel Artur da Tapitanga (Ary Fontoura). A ideia era implantar uma fábrica poluente em Mangue Seco (Bahia, divisa com Sergipe), um dos ambientes escolhidos pela produção para filmar a novela. Contra essa turma de malfeitores, principalmente, Ascânio (Reginaldo Faria) e Osnar (José Mayer).

Afora essas questões de ordem política e econômica, “Tieta” faz inúmeras referências às cidades de Esplanada e Salvador (Bahia) e Aracaju e Estância (Sergipe), lugares percorridos pela famosa “Princesa do Agreste”, a marinete de seu Jairo, interpretado por Elias Gleizer (1934-2015), que se casou com uma das solteironas moralistas, Cinira (Rosane Gofman), da cidade fictícia de Santana do Agreste (montada cenograficamente no povoado Picado, município de Conceição do Jacuípe-BA).

“Tieta” também explora o fantástico, o extraordinário, mas também o hodierno da vida de qualquer cidade interiorana do Nordeste. Do bêbado, porém sábio, Bafo de Bode (Bemvindo Sequeira), à Mulher de Branco, que de assombração sexual não tinha nada de sobrenatural. Repleta de personagens diversos, traz um panorama incrível da sociedade brasileira em todos os seus matizes, da prostituta ao Sírio Libanês, dono do bar e mercearia da cidade, seu Chalita (Renato Consorte). Além de dona Milu (Míriam Pires), proprietária da pensão, e sua filha Carmosina (Arlete Sales), administradora dos Correios.

A trilha sonora também merece um destaque especial, que rendeu dois volumes nacionais e um internacional, todos pela gravadora Som Livre. A música tema ficou por conta de Luiz Caldas, “Tieta”, composta por Paulo Debétio e Boni. Ainda entre os artistas baianos, Danilo Caymmi e Nana Caymmi, em “Vem Morena; Caetano Veloso, com a canção “Meia Lua Inteira”, de Carlinhos Brown, e a “Lua e o Mar”, com Moraes Moreira e Pepeu Gomes, que assinam a letra com Fausto Nilo. Eles participaram da novela, gravando um clipe com a personagem Elisa (Tássia Camargo), esposa do lojista Timóteo D´Alembert (Paulo Betti), criador de grandes e inesquecíveis bordões, como “nos trinques”.

Concentro-me agora a discorrer sobre o mote inspirador do presente texto, começando pela marcante vilã, Perpétua, brilhantemente interpretada por Joana Fomm. Trata-se da típica representação feminina da imagem farisaica do Novo Evangelho. Uma viúva amargurada e ambiciosa, que se autodenomina como a defensora dos bons costumes e arvorando-se de grande líder espiritual da Igreja Católica local, consumição da paz de espírito do padre Mariano (Cláudio Corrêa e Castro). Esta, por sua vez, esconde um grande segredo, revelado publicamente no final da novela, quando ela conserva o falo embalsamado do marido numa caixa.

Do outro lado, aquela que foi expulsa da cidade pelo pai, ainda muito jovem, o avarento e misógino José Esteves (Sebastião Vasconcelos), Antonieta Esteves (a Tieta), irmã de Perpétua e Elisa, essa última, do segundo casamento, com Tonha (Yoná Magalhães). Voltando vinte anos depois, rica, bonita e poderosa, Tieta se apresenta para a sociedade como a viúva de um comendador importante de São Paulo, quando na verdade era uma milionária cafetina. Caindo nas graças de seus conterrâneos, ela é a bondade em pessoa, ajudando a todos e tomando as dores dos oprimidos. Mas, às voltas com amores nada religiosos, como o romance com seu sobrinho, o seminarista Ricardo, filho de Perpétua.

A passagem de Tieta por Santana do Agreste mexeu consideravelmente com sua terra natal, trazendo desenvolvimento, como a luz elétrica, mas fazendo com que as pessoas repensassem costumes que as faziam infelizes, cruas e duras. Criando uma natural confusão entre o “certo” e o “errado”, ela chegou ao patamar de “santa” pela maioria da população, abaixo de Santana, para a ira de Perpétua, que em nome de Deus e dos bons costumes, tentou de todas as formas desmoralizar e até mesmo matar a própria irmã.

Longe de concordar com os falsetes existenciais de ambas as personagens, a relação em pé de guerra entre Tieta e Perpétua, para além de girar em torno da peleja entre o “mal” e o “bem”, põe em questão hábitos da sociedade brasileira, sobretudo nordestina, marcados por um comportamento que está longe de ser do agrado de Deus. Perto ou longe Dele, a trama mostra que nem sempre ser de boa família e temente a Ele ou ser o avesso da moral cristã, define a bondade das pessoas, de tal sorte que a “moral de Tieta” subverte e ressignifica aquilo que parece e não é dado a necessidade, quase existencial, de alguns de julgar e não satisfeitos, condenar e anular, física e moralmente, sem olhar para o alqueire do próprio olho.

Que a “luz de Tieta” (Caetano Veloso, 1998) ilumine o nosso tempo, cegando toda a hipocrisia de uma sociedade brasileira ainda caduca, misógina, preconceituosa e falida, inclusive, na sua moralidade, seja ela civil ou religiosa, ética ou política. Como disse eu outro dia em relação à última decisão da justiça sobre a liberação da “permuta” do Parque Nicolau Almeida, em Lagarto-SE: aos crápulas, a força do cifrão; aos canalhas, o julgo da HISTÓRIA. No que diz respeito à luz de Tieta, acrescento: aos falsos moralistas, o fogo do inferno.

 

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Claudefranklin Monteiro

Professor doutor do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe.

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