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Por Acácia Rios (*)

 

O circo chegou. Na verdade, a qualquer momento vai desfazer a sua grande lona azul, o picadeiro, o trapézio, a arquibancada, o globo da morte, a caixa mágica, já tendo cumprido a sua função de reviver no nosso imaginário a sua beleza lúdica e transitória. É impossível sair dele imune. O espetáculo termina, mas imagens continuam pululando na minha cabeça e adentram o sonho, em que me aparece, com sua roupa branca colada ao corpo, aquele menino de família circense que conheci na escola. Mas só soube disso quando, levada pelo meu pai, reconheci-o como um dos jovens acrobatas.

Dos circos da infância, lembro bem de alguns pobres leões de escassa e opaca juba (talvez até sem dentes) que me comoviam mais do que me divertiam. Não havia um ao qual meu pai não me levasse. Mas com o passar do tempo, as idas ao circo foram rareando e esse hiato passou a ser preenchido pela poética em torno do tema, como por exemplo, O grande circo místico de Edu Lobo e Chico Buarque, inspirado no poema homônimo de Jorge de Lima (1938); pela música “O circo chegou”, do outro Jorge, o Ben; pelo poema ‘O circo o menino e a vida’, de Mário Quintana e também pelo ‘Improviso para a moça do circo’, de Ferreira Gullar, cuja estrofe norteia esta crônica. Atenho-me aqui sobretudo a essas referências.

Chico Buarque, grande leitor de poesia, estabelece uma relação de intertextualidade com o poema de Lima e – com a mesma maestria de “Geni e o Zepelin” em relação ao conto “Bola de sebo”, de Guy de Maupassant – vai além do texto original e constrói um universo a partir dos personagens apenas citados pelo poeta alagoano. Os 46 versos de ‘O grande circo místico’, parte de A túnica inconsútil (1938), contam a história de vários personagens da dinastia do circo austríaco Knieps. A beleza místico-espiritual do poema levou Chico a desenvolver algumas das trajetórias pessoais e atemporais, das quais se destaca ‘A história de Lily Braun’, contada na voz de Gal Costa, uma das faixas mais bonitas, na minha opinião.

As referências poéticas continuam em minha cabeça e vão saltando de uma melodia a outra. Começo a solfejar ‘O circo chegou”, de Benjor, especificamente a estrofe em que o palhaço anuncia “Uma grande vidente/ que tudo sabe, que tudo vê / Que tudo sente / E agora com vocês/ a grande atração/ a internacional Deise/ a mulher do homem que come raio-laser.” Refiro-me a esse trecho em particular porque gosto muito do efeito da palavra final cuja licença poética retira o “r” de ‘laser’ para que possa rimar com ‘Deise’, uma supressão que o aproxima, e muito, da oralidade.

O circo de Benjor tem de tudo e um pouco mais, desde animais com habilidades humanas e homens com habilidades animais, passando pelo “mágico que engole espada e come fogo”, até chegar a Deise. A dimensão metamórfica faz parte da atração circense desde sempre. Uma delas é a Monga, a mulher que se transforma em gorila, número que particularmente me encanta. Trata-se, se não me engano, de uma ilusão cuja técnica consiste na sobreposição de imagens. Mas na hora em que a metamorfose ocorre e a jaula é aberta, a plateia foge de medo e eu, coração acelerado, faço parte desse grupo.

Voltando à poesia, o olhar do menino sobre as moças do circo aparece tanto no poema de Mario Quintana como no de Ferreira Gullar. Em ‘O circo o menino e a vida’ (Nariz de vidro, 1984), o poeta gaúcho debruça-se sobre a equilibrista: “A moça do arame/ equilibrando a sombrinha/ era de uma beleza instantânea e fulgurante!/ (…) ia equilibrando-se e despindo-se/ só para judiar“. De forma semelhante, nos versos de Gullar (Na vertigem do dia, 1991), o menino se apaixona por Sonia, a mulher acrobata, “estrela de quatro pontas/ braços brancos pernas brancas/ girando no ar (…)/ Mas eis que, sã e salva/ cais em pé no picadeiro/ e o público aplaude/ Agradeces/ já convertida em mulher.” Ambos retratam com muita beleza o encanto do circo e a sensualidade das artistas, que deixavam entrever algumas partes do corpo. A esse assombro do eu lírico de ambos com a visão das partes desnudas, Manuel Bandeira chamaria de alumbramento.

Penso outra vez no meu colega da escola que, da mesma forma que chegou, foi embora, assim como o circo, esse ente transitório. Nunca mais tinha pensado nele até então, nem em seu corpo, que era ao mesmo tempo infantil e musculoso devido ao trapézio, mas também às responsabilidades precoces da vida itinerante.

Dou-me conta de que essas referências poéticas, das quais usufruí espaçadamente ao longo da vida, vieram todas de supetão, como uma overdose de beleza estética. O espetáculo termina. Saio do circo, mas o circo não sai de mim.

 

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Acacia Rios

Acácia Rios é jornalista, professora, mestra em Memória Social e Documental pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e doutora em Ciências da Documentação pela Universidade Complutense de Madri. Leciona na Escola de Artes Valdice Teles.

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