sábado, 04/01/2025

A poética do cotidiano em Cama de Vento, de Ilda Rezende 

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Por Acácia Rios (*)

 

Quando uma dona de casa…

 Resolve ser poeta, ai ai, a coisa pega

Pois os objetos caseiros passam a ter

Vários outros significados. (…)

A pia pirou ao ver o pinto pelado

A tábua tapou o buraco da pia

O tanque criou asa e voou com o sabão 

O batedor de bife, mesmo desdentado ama a carne de boi

O rolo, quem diria amassou a massa e casou com a pizza

E aí, a dona de casa fez com que o forno elaborasse 

essa baita poesia.

 

Ilda Rezende

 

Cama de vento e outros poemas, de Ilda Rezende (Criação Editora, 2024), que veio a público em dezembro passado, tem apresentação da ensaísta Maruze Reis, orelha do poeta Ronaldson Sousa e delicada capa de Lau Rocha. A bem cuidada edição antecipa o prazer da leitura, em que podemos ver uma poética do cotidiano que abarca extensa linha temporal e as mudanças espaciais em virtude das demandas familiares.

Ilda Rezende autografando um dos livros

O livro é dividido em duas partes, como o próprio título sugere. A primeira (Cama de vento), com 51 poemas e a segunda (Outros poemas), com 48. Os temas, tratados muitas vezes com bom humor, são variados: o cotidiano, a memória, as mudanças de cidade, velhas e novas paisagens, saudade, amor e perdas.

Cada poema é burilado, aperfeiçoado, enxuto. Basta compararmos, por exemplo, ‘Imagem virtual’ (p. 50) e ‘Bye, bye juventude’ (p. 35, grafado inicialmente ‘…Bye…Bye… Juventude’), ambos publicados originalmente em Poemas de Oficina (1992), primeira antologia da qual participei como poeta, mas não Ilda. Ela já vinha trilhando esse percurso e, pouco a pouco, foi consolidando a sua poesia. Ao comparar os poemas, percebo que a autora os revisitou e fez algumas alterações, o que demonstra seu esmero e amadurecimento 32 anos depois da primeira publicação.

Vale a pena citar as mudanças para comprovar que o processo criativo não se esgota quando escrevemos um poema ou um texto em prosa. Em ‘Imagem virtual’, a mais significativa é esta:

Primeira versão (1992) 

A cidade está em paz

porém …………………………………………………

……………………… (eu também estou assim).

 

Versão atual (2004): 

A cidade está em paz

Porém inquieta

(eu também estou assim)

O tempo cuidou de preencher os pontilhados com ‘inquieta’. Seguindo a lição do mestre Drummond, seu poeta de cabeceira, mergulhou no reino das palavras.

Já em ‘Bye, bye juventude’, a mudança é mais sutil, porém, demonstra que o poema não foi simplesmente trasladado de um livro para outro. “E se misturando ao vento que passou” passa a ser grafado assim: “Mistura-se ao vento que passou”, em que opta por eliminar o gerúndio, tornando o verso mais assertivo.

Dito isso, observo também que a poeta se reinventa não apenas nos versos, mas também em seu próprio nome, passando a assinar os textos sem o último sobrenome, Costa, como fizera em diversas publicações.

Não se pode separar a escrita da vida. Mãe de seis filhos homens, nas horas de descanso lia Drummond, que lhe é referência explícita em ‘Dever de casa’ (p.51): “Agora vou deixar um pouco essa lida… /Lendo Carlos Drummond de Andrade/É nela a poesia com que me deleito quase todos os dias/Se não fosse dona de casa, com certeza/Arrumaria versos.” (p. 51).

Em ‘Toma tendência, oh! Ilda’ (p.84), no entanto, há um diálogo menos óbvio com o ‘Poema de sete faces’, a partir do famoso verso “Vai, Carlos, ser gauche na vida”. Senão, vejamos. A poeta vive uma dualidade entre as obrigações domésticas e a sua paixão, que é a poesia. O eu lírico dialoga com Ilda, portanto, podemos afirmar que, assim como o de Drummond, seu poema é confessional e autobiográfico. Tomar tendência (variante de tenência, ou seja, tomar juízo) significa retomar o seu papel social e familiar e abandonar o seu lado gauche, rebelde. Afinal, quem já viu dona de casa escrever poemas?

Ilda é poeta forjada em oficinas de escrita. Tenho muita alegria em dizer que fomos alunas de Maruze Reis na antiga Fundação Estadual de Cultura (Fundesc) e, como é comum entre colegas de turma, acompanhamos os progressos mútuos. Naquele momento, compartilhávamos a grande mesa oval da sala com Ariesnelde, Berílio Vieira, Getúlio Ribeiro, Ieda Vilela, João Roberto Rezende Costa (filho de Ilda e meu amigo desde então), Lúcia Marques, Rosivaldo Andrade, Solange Galvão Sampaio, Sonia Barreto, Vagner Ferreira Freitas, Valdemir Ribeiro da Costa, Daniel Marcos Andrade.

Nascida em Porto da Folha e criada em Itabi (cidades sergipanas que, ao lado do Rio de Janeiro (Leblon, aeroporto Santos Dummont) e Aracaju aparecem repetidas vezes em seu livro), aos 87 anos, Ilda esbanja uma poesia de grande valor. Nos seus versos, a lida com a casa e o cotidiano anda pari passu com o exercício do olhar, que se renova ao sabor do vento.

Texto revisado por Joara Carvalho (@profajoaracarvalho)

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Sobre Acacia Rios

Acácia Rios
Acácia Rios é jornalista, escritora, professora, mestra em Memória Social e Documental pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e doutora em Ciências da Documentação pela Universidade Complutense de Madri. Leciona na Escola de Artes Valdice Teles.

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Um comentário

  1. Decerto uma senhora com 87 anos e de um simplicidade vibrante…poesias lindas.

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