O primeiro dia, após 10 meses, com sentimento renovado na vida da psicóloga Ana Luiza Andrade Prado (CRP19/ 1450) teve local, dia e hora: Aracaju, 19 de janeiro de 2021, 11 horas da manhã. Ana Luiza, que atua na UTI Covid do Hospital Cirurgia, foi a primeira profissional da Psicologia a ser vacinada contra o coronavírus no Estado de Sergipe.
“A vacina pode ser um começo do fim de toda essa tragédia mundial, mas confesso que uma coisa me inquieta. Os profissionais da saúde sendo vacinados é um alívio e vai nos permitir trabalhar com mais tranquilidade, cuidar de quem adoecer e de quem está doente, mas não está nem perto do que seria suficiente para acabar tantas mortes e com toda essa desgraça. Então, que o dia 19 de janeiro represente o começo do fim desta tragédia e que logo tenhamos vacinas para todos”, diz.
“Diante de tanto descaso e negacionismo, a ciência apresenta uma vacina que chega como um alento. Acompanhar a primeira psicóloga que atua na linha de frente no atendimento a pacientes, familiares e profissionais de saúde é um sopro de esperança, nos traz a certeza e a garantia de que a profissão está nos trilhos certos. Infelizmente sabemos que o volume de vacinas é incipiente para a demanda. Muitas (os) profissionais que estão na linha de frente tanto no SUS, quanto no SUAS, não estão nos grupos prioritários. Isso é lamentável! Estaremos atentos e no que couber ao Sistema Conselhos, buscaremos interlocuções junto aos gestores para sensibilizá-los acerca da necessidade e a importância da imunização das profissionais de Psicologia”, ressalta Naldson Melo, conselheiro presidente do Conselho Regional de Psicologia de Sergipe.
Psicóloga graduada pela UFS em 2008, especialista em psicologia hospitalar pela Faculdade de Medicina da USP -FMUSP, psicodramatista pela Profint – Febrap – Escola Bahiana de Medicina, Ana Luiza trabalhou até maio de 2020 na Clínica de Nefrologia de Sergipe como psicóloga hospitalar quando foi convidada pela direção do Hospital Cirurgia para atuar na UTI Covid, prestando assistência aos familiares dos pacientes, juntamente com outros profissionais da área, em uma rotina diária intensa e cercada de muitas incertezas.
“Nos primeiros meses da pandemia percebi o estrago que essa doença faz na vida das pessoas. Quem está longe do hospital não tem a real noção do que é essa doença, do que é estar num ambiente de UTI Covid, da correria dos profissionais, de paradas cardíacas, uma atrás da outra, dias de contar muitos mortos. No começo tive dificuldade para dormir, para me desligar do hospital”, revela.
Mais adaptada ao cenário, Ana Luiza explica que na UTI Covid os protocolos são muito diferentes de outras Unidades de Terapia Intensiva. “São pacientes graves, muitos já chegam entubados ou passam pelo procedimento assim que chegam. Nesse contexto é muito importante que fiquemos próximos, cuidando das famílias que enfrentam sofrimento e incertezas. Nós, psicólogas e psicólogos, somos ponte entre o paciente e sua família. Frequentemente fazemos ligação de áudio e vídeo, quando autorizado pelo paciente consciente, orientamos sobre as condições, os prognósticos, das programações, do estado geral dos dispositivos em uso, das rotinas da UTI, de exames, de tratamentos. Tudo isso para diminuir a distância”.
Ana Luiza conta que um dos momentos difíceis dessa rotina foi quando passou a assistir colegas de trabalho se tornarem pacientes, mas apesar do sofrimento e medo enfrentados pelas famílias e do cansaço extenuante dos profissionais, brotaram iniciativas que resultaram em momentos marcantes nessa luta incessante em ofertar suporte emocional.
“Me marcou o dia em que levamos um paciente que estava há quase noventa dias internado. No dia do aniversário dele, junto com profissionais da fisioterapia, enfermagem e medicina, o levamos para área externa do hospital, com todo aparato necessário e de forma segura ele pode comemorar mais um ano de vida com familiares”.
A psicóloga lembra de outro caso marcante, dessa vez, ocorrido na primeira semana de atuação na UTI Covid.
“No mês de maio do ano passado, tivemos um paciente que veio para Aracaju a trabalho. Foi infectado, esteve muito grave, quase morreu. Toda família morava no interior de São Paulo. Sempre que possível fazíamos contato para informar da situação. A família acompanhou a melhora dele a quilômetros de distância. A esposa veio buscá-lo e ainda nos enviou um vídeo da chegada em casa. O nosso papel ali é ser os olhos e ouvidos, a voz das famílias. Trabalhar com o paciente covid é assumir a responsabilidade de cuidador, de mediador entre o paciente e essas famílias. É uma rotina no hospital completamente diferente de uma internação comum”.
Ana ressalta ainda que a assistência humanizada implantada pela gestão do Hospital Cirurgia permitiu realizar encontros para fortalecimento de laços e até despedidas.
“A angústia da separação e o medo de receber o corpo da pessoa amada em um saco lacrado são apavorantes e muito prejudiciais para o processo de luto. Por isso, com apoio e incentivo da gestão, da coordenação, da equipe da UTI, em junho fizemos a primeira visita dentro da Unidade de Terapia Intensiva com a esposa de um paciente que tinha um prognóstico reservado, uma chance alta de óbito em poucas horas. Ciente das condições, após ser preparada com equipamentos de segurança, conversar com equipe multidisciplinar, aconteceu o tão esperado encontro com o marido que estava sedado, entubado e não mostrava reações. Entretanto, durante a presença dela no leito, escorreu uma lágrima pelo olho dele. Ao sair a mulher confessou que a partir daquele momento estava pronta para receber todo tipo de notícia, mas que ainda tinha esperança. Horas depois esse paciente faleceu. A equipe ficou impressionada e entendeu aquilo como um processo de despedida”, relata.
Impacto na saúde mental da equipe de profissionais da saúde, de familiares, da própria família, de pacientes e os momentos difíceis ganham contornos de esperança a cada novo laço criado na vida profissional de Ana Luiza que enfatiza que em nenhum momento pensou em desistir.
“Me sinto muito útil no que estou fazendo. Percebo um retorno muito grande de familiares. Já atendi famílias de manejo muito difícil, mas de um modo geral, sou muito grata por ter, inclusive, construído novos vínculos. A equipe recebe muito carinho do familiar que, mesmo em casos de extrema dor pela morte do ente, foi nos acolher e agradecer. É muito gratificante se sentir útil na vida dessas pessoas, ter a certeza de estar contribuindo nesse momento tão difícil. Por isso, nunca pensei em desistir”, finaliza a psicóloga hospitalar.
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