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A série Vaga-lume e o prazer de ler boas histórias — a ilha como espaço de aventuras fantásticas

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Por Acácia Rios (*)

 

  Logo que cheguei ao convés, na manhã seguinte, o aspecto da ilha modificara-se por completo. 

(…) Os montes suspendiam-se acima da vegetação como campanários de rocha nua. 

Todos tinham formas bizarras e o monte do Óculo, 

que dominava todos os outros por uma diferença de mais de cem metros, 

era igualmente o de configuração mais estranha, 

subindo a pino de quase todos os lados e terminando de súbito no cume cortado, 

como se fosse um pedestal para pôr uma estátua.

 

Robert Louis Stevenson, A ilha do tesouro 

 

Se tem uma coleção cuja memória é compartilhada por milhares de leitores intergeracionais, ela se chama Vaga-lume, da editora Ática. Capas, títulos e ilustrações contribuem para seduzir o leitor em formação, ávido por percorrer páginas sempre cheias de aventuras. Ela é um capítulo à parte na história editorial brasileira e integrou a nossa trajetória estudantil de uma maneira irreversível. Estas são algumas das minhas divagações quando me deparo com O outro lado da ilha (1995), de José Maviael Monteiro (1931-1992), em exposição para trocas na Biblioteca Municipal Ivone de Menezes, e que integra a referida série.

Eu já lia muito quando me apaixonei pela coleção, mas ela me ajudou, sobretudo, a sistematizar a leitura em termos didático-pedagógicos, pois eu era uma leitora indisciplinada. Começar, por exemplo, com A Ilha perdida (1973, publicada pela primeira vez em 1944 pela Brasiliense), que é uma aventura divertida, e chegar a Éramos seis (obra de 1943 mas que passou a integrar a coleção), ambos de Maria José Dupré, significava ao mesmo tempo um aprofundamento temático e um amadurecimento no processo de leitura, preparando-nos, assim, para títulos ainda mais complexos vida afora.

Traduzido para outros idiomas e adaptado para a televisão, Éramos seis me arrancou lágrimas, mas também reflexões. O enredo parte da família como núcleo social e a integra a um sistema mais complexo que é a sociedade. Perdas afetivas, econômicas, separações, solidão e a finitude fazem parte da dinâmica dessa família e, ver as transformações dos personagens na história, nos alerta desde a adolescência para a transitoriedade da vida.

Mas só percebi isso depois. A essa altura, eu já tinha passado por Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado, Amor de perdição, do português Camilo Castelo Branco e por uma antologia de Fernando Pessoa, cujo poema ‘Autopsicografia’ me impressionou bastante, mesmo sem entendê-lo muito bem. As palavras ‘calhas, deveras, ‘comboios’, por exemplo (algumas obras com palavras que pareciam quase outro idioma), para não falar em ‘ósculo’ (beijo), foram formando parte de mim pela repetição. Sempre voltava aos mesmos livros, até que fui montando a minha própria biblioteca. Mas até então, esses eram alguns dos títulos que estavam à minha disposição e que eu ia lendo e relendo ao sabor do dia. Obviamente, sem nenhum critério lógico ou didático.

Talvez O outro lado da ilha não seja uma das histórias mais conhecidas da série, mas ela me fascinou devido à referência a caranguejos gigantes, supostamente pré-históricos, maiores até do que o da Passarela do Caranguejo, na praia de Atalaia. Intrigante a princípio, tudo ganha mais sentido quando leio a biografia do autor e vejo que se trata de um sergipano. Apesar de não ser conhecido entre muitos de nós (saiu muito novo de Aracaju e morou no Rio de Janeiro e em São Paulo, onde começou a sua trajetória nas letras), vê-se logo uma relação atávica com a cultura do caranguejo, presente no nosso DNA, que fez com que o autor o levasse ao plano da ficção, dando-lhe uma dimensão mítica. Digo isso porque, na minha infância, era comum toparmos com caranguejos perdidos atravessando o jardim ou a casa, construída sobre seu habitat. E essas imagens perduram.

Fotos: Sílvio Rocha

A ilha como acidente geográfico, desde os descobrimentos, teve uma representação simbólica envolta em lendas, mistérios, piratas, tesouros, animais fantasiosos e perigosos e histórias de assombração, o que servia para afastar da posse outros aventureiros. A medievalista francesa Claude Kapller, em seu livro Monstros, demônios e encantamentos no fim da Idade Média (1994, Martins Fontes) descreve o mundo insular como um lugar onde “os objetos animam-se, deslocam-se, metaformoseiam-se (…). Os viajantes andam no rastro dos viajantes sobrenaturais, cruzam seus caminhos (…). O mundo está tão saturado de coisas espantosas que sempre é possível encontrar uma maravilha tão convincente quanto aquela de que se está falando, ou até mais (…). No entanto, longe de serem indiferentes, ou desencantados, esses viajantes conservam uma maravilhosa capacidade de espantar-se e admirar-se e uma amável propensão a continuar fabulando em suas próprias narrativas.”

Ao trazer a ilha como espaço de desenvolvimento do enredo no mundo contemporâneo, José Maviael Monteiro, formado em História Natural, retoma o tema (marcado em nossa memória, sobretudo, por Stevenson em A ilha do tesouro), e nos leva a uma reserva natural que tem apenas um lado explorado cientificamente. Dessa forma, atiça a curiosidade dos jovens personagens que acompanham o cientista e também a dos leitores para o que pode haver do outro lado da ilha, aumentando, assim, a atmosfera de mistério.

  — Não foi sonho… Eu vi… 

Vi o caranguejo enorme ali na janela querendo entrar…

 Aquela bocona batendo na janela… 

Acordei com o barulho dele batendo no vidro… 

Não foi sonho… 

O outro lado da ilha, José Maviael Monteiro

No que diz respeito à apresentação visual, a contra-capa dos exemplares tem uma colagem de quase todos os títulos e ela servia como um guia. Quase podíamos obedecer à sequência cronológica, e isso fazia com que aumentasse a vontade de chegar logo ao final da lista, onde estavam as histórias policiais como O mistério do cinco estrelas O rapto do garoto de ouro (1982), ambos de Marcos Rey (que passou a ser o escritor preferido do meu irmão David) e ainda O escaravelho do diabo (1974), de Lúcia Machado de Almeida. Isso sem falar n’As aventuras de Xisto e Xisto no espaço, da mesma autora, ambos publicados em 1982. Não posso deixar de mencionar o meu prazer em colecioná-los. Outra lembrança é que, entre os colegas da sala, havia trocas de alguns títulos. Circulavam entre nós, inclusive, alguns menos didáticos… Clandestinamente, claro. Mas essa é outra história.

Agora falemos em números. A Vaga-lume foi criada em 1973. Inicialmente a Ática publicava títulos já lançados por outras editoras e, pouco a pouco, foi formando o catálogo com histórias escritas especialmente para a coleção. De acordo com a Wikipédia, até 2008 a série tinha mais de 100 obras. Formada por 43 escritores, até 2021 tinha vendido 8 milhões de exemplares. Repassada a outro grupo editorial, a Vaga-lume passou por uma reformulação na sua programação visual, como podemos notar nas últimas publicações. Na minha opinião, menos atraentes que a original.

Dentre os inúmeros títulos da Biblioteca Ivone de Menezes, onde estive numa tarde de quarta-feira entre atividades de leitura e escrita com os alunos do Colégio Estadual Jornalista Paulo Costa, saí pensando n’O outro lado da ilha, nos caranguejos gigantes criados pelo meu conterrâneo e em como me isso remeteu ao nosso imaginário. Também pudera. Os nascidos em Aracaju dormimos sobre mangues e não é de se estranhar se sonhamos com os seus habitantes. Viventes, quiçás, do outro lado de nós mesmos.

 

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Acacia Rios

Acácia Rios é jornalista, professora, mestra em Memória Social e Documental pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e doutora em Ciências da Documentação pela Universidade Complutense de Madri. Leciona na Escola de Artes Valdice Teles.

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