quinta-feira, 04/07/2024
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A Síndrome de Vichy

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Por Marcus Éverson Santos (*)

 

Mesmo quando forças poderosas estão dispostas a subtrair nossa paz, segurança e liberdade há um meio muito eficaz de combatê-las: organizar uma ação não violenta de não colaboração (não obediência) a leis e governos autoritários. Assim nos ensina Gene Sharp em seu livro “Como a luta não violenta funciona e a autolibertação” quando diz: “As fontes do poder dos governantes dependem intimamente da obediência e da cooperação dos súditos”. A obediência é vista como o ‘coração do poder político’ sem o qual o governo não resiste. Além da obediência, há, segundo Sharp, várias razões que levam as pessoas a colaborarem com os governos tais como o hábito, o medo de sanções, a obrigação moral, o interesse próprio, a identificação psicológica com determinadas visões de mundo, a indiferença e a ausência de autoconfiança.

Um dos exemplos mais vergonhosos de submissão e colaboracionismo do século passado ocorreu na França com a invasão das tropas alemãs do Terceiro Reich comandadas por Hitler em 1940. Usando a tática militar conhecida como “Guerra Relâmpago” (Blitzkrieg), Hitler obrigou o exército francês a assinar um armistício. Sob a liderança política de Philippe Pétaino que, por interesse próprio, colaborou com o regime nazista entre os anos de 1940 a 1944, um profundo mal estar se instalou na França. A colaboração e o comportamento de submissão passiva à autoridade do Terceiro Reich deixaram traumas irreparáveis no imaginário coletivo dos franceses.

O efeito psicológico que arrastou empresários, instituições, intelectuais, artistas, estudantes, pesquisadores e parte significativa da sociedade civil a colaborar com o Terceiro Reich, a insistência em racionalizar, justificar, legitimar decisões políticas e econômicas injustificáveis e irracionais é sintomática.

O medo de represálias convertido em oportunismo político, o jogo de interesses financeiros, a disputa por cargos públicos e privados, dentre outros fatores morais e psicológicos, permitiram que empresas como a Renault e a Peugeot – fabricantes de automóveis – colaborassem com os nazistas na produção de veículos militares – o Banco Société Générale, a Universidade de Paris, Faculdades e Institutos de Pesquisa mantiveram relações estreitas com centros de pesquisa alemãs. Administradores do Museu Louvre colaboraram com os nazistas na expropriação de obras de artes pertencentes a judeus.

Foi na cidade de Vichy, no sul da França, que o Marechal Philippe Pétain criou o regime de colaboração com as forças nazistas alemãs. O Marechal Pétain, além de ter colaborado com os nazistas em vários setores da economia e da administração pública, também foi responsável por adotar políticas repressivas e antissemitas. Milhares de judeus franceses foram perseguidos, deportados ou levados para as câmaras de gás nazistas. O efeito psicológico de submissão e colaboracionismo à autoridade na França ficou conhecido como a Síndrome de Vichy.

A natureza psicológica da submissão pode ser examinada à luz da Psicologia Social, especialmente no que se convencionou chamar de Psicopolítica, campo que estuda como as estruturas políticas e sociais influenciam o comportamento dos indivíduos, ou, inversamente, como as características da personalidade de alguns indivíduos afetam o ambiente político. Em seu livro A mente esquerdista: as causas psicológicas da loucura política, o Dr. Lyle H. Rossiter, médico psiquiatra da Universidade de Chicago, estudioso das origens e desenvolvimento das patologias de personalidade afirma que:

“Embora a base biológica da mente, no senso genérico do tempo, permaneça um mistério, podemos entender qualquer mente em particular como uma síntese complexa de uma natureza dada geneticamente e uma criação condicionada pelo ambiente. Se suficientemente saudável, a mente do adolescente mais velho integra seus impulsos biológicos e psicológicos inatos – aqueles relacionados a sexo, agressão, dependência, narcisismo, criação, possessividade e relacionamento – numa personalidade que é ao mesmo tempo aceitável para os outros. Pelo vigésimo ano de vida, no mais tardar, esta síntese gerou uma pessoa que é bem familiarizada com seus próprios desejos e claramente consciente de sua liberdade de iniciar ações num mundo de causas e consequências”. (Rossiter, 2016, pág.281)

Nos estudos acerca da formação da personalidade entende-se que alguns padrões de comportamentos não são adaptativos, ou seja, apresentam sinais e sintomas de desordem que resultam dos efeitos combinados de privação, negligência e abuso, e dos diversos mecanismos de defesa erguidos contra as dores emocionais. Segundo Rossiter (2016), se ao tempo do processo de desenvolvimento o indivíduo foi capaz de chegar a uma síntese consciente de suas liberdades, o mesmo estará menos exposto a neuroses. “A neurose manifesta-se em várias crenças, emoções, comportamentos e modos de relacionamento que são exibidos na arena política” (Rossiter, pág. 491).

Em estado neurótico, o indivíduo distorce as realidades do relacionamento humano e transfere seus traumas dos anos de formação e desenvolvimento para os conflitos de âmbito econômico, sociais e políticos. Todas as frustrações que um certo indivíduo passou em seu processo de desenvolvimento, convertem-se em reações contra a realidade. Indivíduos neuróticos agem com desconfiança frente a relacionamentos de consentimento mútuo; sofrem com percepções falsas de desamparo, exploração, injustiça, e, para abreviar, sentem excessiva necessidade de carinho e apoio.

O estado neurótico de comportamento esteve presente em movimentos sociais contemporâneos. Um bom exemplo foram as manifestações do “Maio de 68” na França. Em síntese, elas expressaram uma experiência social traumática marcada pelas guerras e pelo vergonhoso colaboracionismo da década de 40.

Do ponto de vista histórico, o colaboracionismo da década de 40 e as manifestações de 68 são eventos distintos, mas, do ponto de vista psicológico, há um fio condutor ligando um acontecimento ao outro. Os estudantes que participaram das manifestações de 68 tinham em média 20 anos, final da adolescência e início da fase adulta, momento em que, segundo Rossiter, é “[…] pelo vigésimo ano de vida, no mais tardar, esta síntese gerou uma pessoa que é bem familiarizada com seus próprios desejos e claramente consciente de sua liberdade de iniciar ações num mundo de causas e consequências”.  Há que se considerar a possibilidade de muitos jovens do “Maio de 68”, sob o efeito retardado da Síndrome de Vichy, terem sentido uma espécie de “rebote” psicológico do pós-guerra.

Seria necessário um estudo aprofundado para testar a hipótese de que o ambiente colaboracionista, que durou por vários anos na França, pode ter deixado cicatrizes profundas e existenciais em toda uma geração. A base existencial e ontológica da juventude é a liberdade. Segundo Dr. Lyle H. Rossiter, quando um jovem conquista a competência e a compreensão básica da autonomia, da iniciativa e conhecimento de quem ele é, e o que ele pode fazer para construir a própria vida, podemos afirmar que seu desenvolvimento foi positivo. Caso contrário, ele acumulará forte ressentimento e culpará sempre a sociedade por seu insucesso.

Embora não sendo simples e linear, se bem concluídas as etapas de formação da personalidade até os vinte anos, a única coisa que pode afastar um adolescente de um resultado positivo e maduro de comportamento é assumir uma postura passiva diante dos fatos. A adoção de uma postura comportamental de submissão e colaboração passiva ou ativa, demarca um momento de reorganização da personalidade que vão da adolescência à fase adulta. Dr. Lyle H. Rossiter explica que:

Ao contrário do mito popular, no entanto, a adolescência não é geralmente um período de grandes agitações emocionais, apesar dos realinhamentos de caráter principal que a caracterizam. Mas certamente não é um período livre de tensões. Mesmo na adolescência normal, o processo de autodescoberta envolve, algum grau de descontentamento, confusão e ansiedade conforme o ego passa por grandes reorganizações […] Aceitar e rejeitar aspectos diferentes de ego, reconciliando autoimagens contraditórias, e explorar papéis ocupacionais, religiosos, políticos e de gênero, tudo faz parte do processo de reorganização.  (Rossiter, 2016, pág.283).

Há que se pensar o impacto existencial e formal dos traços de personalidade daqueles que, de maneira direta ou indireta, sofreram com os desdobramentos da guerra sob o governo de Vichy. A chamada “Síndrome de Vichy”, espécie de desconforto existencial frente ao colaboracionismo francês foi muito bem tematizada por Theodore Dalrymple em seu livro “A nova síndrome de Vich: por que intelectuais europeus se rendem ao barbarismo”. Dalrymple provoca a discussão sobre como o desastre das guerras mundiais pode ter abalado a autoconfiança dos povos europeus em geral e dos franceses em particular.

O aprofundamento da crise de autoconfiança pode ter sido gerado pelo ambiente de autoritarismo que permeou a época. O importante psicanalista Erik Erikson, em suas reflexões sobre a juventude, sociedade e o processo de integração na formação da identidade do ego, afirmava que sua consolidação era mais do que a soma das identificações da infância; trata-se de todo capital interior acumulado das experiências de cada estágio alinhadas por sucedidos impulsos básicos do indivíduo. Para sabermos se um jovem cumpriu ou não um bom trajeto de desenvolvimento, teremos que verificar o quanto ele é capaz de experimentar suas ações como efetivas, legítimas, livres, cooperativas e mútuas.

Sobre as patologias da adolescência e seus níveis de desenvolvimento Dr. Lyle H. Rossiter nos diz que: “A capacidade para tal ação saudável na adolescência pode ser atingida quando o desenvolvimento geral da criança foi bem cuidado pelos pais, e quando os valores reinantes da sociedade oferecem meios de viver que sejam compatíveis com a liberdade individual e com a cooperação voluntária”. (Rossiter, 2016, pág.287). Se Dr. Rossiter estiver correto, não parece ter sido bem essa a experiência vivida pelos jovens franceses ao tempo da tomada nazista.

Voltando às provocações feitas por Dalrymple sobre a “Nova Síndrome de Vichy”, a atual decadência europeia, a crise da autoconfiança individual e cultural, o amplo apoio colaboracionista às atuais agendas globalistas de caráter totalitário, são indicativos claros de que estamos vivenciando uma Nova Síndrome de Vichy.

No livro “O Ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica”, publicado em 1943, três anos depois da tomada nazista e do regime colaboracionista, Jean Paul Sartre foi capaz de trazer à tona a experiência da consciência sob o regime autoritário de Vichy. Suas reflexões fomentaram a atitude de desconfiança e rejeição a quaisquer lideranças políticas e instituições percebidas como coniventes com forças externas. Além disso, geraram também uma tendência de maior contestação da ordem constituída e de maior engajamento em movimentos sociais de caráter progressista e anticapitalista.

Enquanto esteve como professor de filosofia em Havre, um ano antes da invasão dos alemães, Sartre mostrava-se pouco empolgado com a política. Com a perseguição que ele próprio sofreu, Sartre começou a se interessar pelas atividades da Resistência e, no mesmo ano da publicação de seu livro “O Ser e o Nada”, passou a participar de reuniões no Conselho Nacional de Escritores reunindo listas de escritores apontados como colaboracionistas.

Embora Sartre tenha demarcado as diferenças entre o seu existencialismo e o  socialismo marxista, não ficou imune a propaganda soviética anticapitalista. O filósofo que afirmava a liberdade como condição existencial do homem, também embarcou na loucura política autoritária do socialismo soviético. Assim como os socialistas, Sartre passou  a considerar como inimigo comum, a moral burguesa e adotou o discurso socialista da luta permanente anticapitalista, bem como a recusa do presente em prol do futuro social sem classes. É no devir, no movimento constante e inacabado de cada individuo que o objetivo terapêutico das reflexões de Sartre irão se sustentar e preparar a militância socialista francesa.

Para a propaganda soviética, os verdadeiros “vilões” eram os capitalistas. A postura anticapitalista de Sartre fez oposição aos empresários (colaboracionistas) que assumiram comportamento de conivência com os nazistas para, com isso, não perder seus negócios. Para Sartre, aderir aos comunistas era colocar-se ao lado da classe trabalhadora contra o poder colaboracionista dos capitalistas. Ateu entusiasmado com a religião secular de Marx, Lenin e Stalin, o filósofo francês não demorou muito até participar da Resistência socialista. Contraditoriamente, Sartre ‘escapou” do colo do socialismo racial alemão para sentar no colo do socialismo revolucionário soviético. No ‘frigir dos ovos’, tanto um quanto o outro, na prática, foram regimes políticos totalitários. Tons de cinza do mesmo e catastrófico inferno camuflado de boas intenções.

A defesa do proletariado soviético emergiu como uma espécie de novo messianismo e, seus militantes, trabalhavam como apóstolos de um novo credo. A fé socialista passou a servir como justificativa para os fins mais escabrosos.

Na perspectiva existencialista de Sartre, o engajar-se é assumir responsabilidade sobre si. O principal meio terapêutico para os que vão abraçar o existencialismo sartreano é tomar para si as rédeas de seu próprio destino. Todo individuo passa a ser visto como um projeto inacabado; a autenticidade de seu ‘projeto de ser’ encontra-se no ‘movimento’, no ‘dever ser’. Ao engajar-se (“s’engager”), não há uma essência ou personalidade humana definida. Não há rigidez tipológica na abordagem que Sartre faz da personalidade. No lugar de categorias definidas e tipos de personalidade específicos, sua psicanálise existencial afirma que cada indivíduo deve ser visto como um projeto único, em constante mudança.

A perspectiva existencialista da psicanálise sartreana, diferente do que havia feito Freud, rejeita a noção de um inconsciente determinado por desejos e pulsões. Para Sartre, a ‘consciência’, isto é, o “Para-si”, é devir:

“Naturalmente, há uma infinidade de projetos possíveis, assim como há uma infinidade de homens possíveis” (Sartre, 1997, pág.690.) Afirma ainda: “[…] o projeto original de um Para Si só pode visar o seu próprio ser, o projeto de ser ou a tendência a ser não provém, com efeito, de uma diferenciação fisiológica ou uma contingência empírica; de fato não se distingue do ser para si” (Sartre, 1997, pág.691).

Na psicanálise existencial proposta por Sartre, o ser humano é visto como fundamentalmente “ser-para-si”, isto é, uma realidade que tende a se projetar para o futuro, sem ser determinada por qualquer essência prévia. Não há em Sartre, como bem defendia a filosofia tradicional clássica, algo a que se possa chamar de ‘essência humana’:

O Ser-Para-si é anunciar a si mesmo aquilo que se É por meio de um possível, sob o signo de um valor. Possível e valor em pertencem ao ser do Para-si. Pois o Para si se define ontologicamente como falta de ser, assim como o valor impregna o Para-si como totalidade de ser faltada. Aquilo que exprimimos em nossa segunda parte em termos de falta também pode se exprimir perfeitamente em termos de liberdade. O Para-si escolhe por que é falta; a liberdade identifica-se com a falta, pois é o modo de ser concreto da falta de ser. (Sartre, 1997, pág.691)

Segundo Sartre, somos todos livres e estamos condenados a escolher, a nos responsabilizarmos por nossas ações. Nessa perspectiva, não existiriam fatores externos empíricos e biológicos nos determinando. A psicanálise existencial de Sartre indica que nenhum indivíduo pode negar sua liberdade. Quando o indivíduo assim o faz, o ato de não escolher, o não responsabilizar-se, deve ser vista como má-fé, como um modo de ser que nega a própria responsabilidade. Investido de má-fé, o indivíduo apresenta-se como se estivesse determinado por fatores externos, como se um “em-si” (um objeto exterior) ao invés de um “Para-si” fosse capaz de impedir seu projeto de “Para-si” em seguir adiante.

Na perspectiva da psicanálise existencial, a “personalidade” de pessoas que se veem como vítimas de suas “determinações”, que se definem como portadoras de uma determinada “natureza” ou “personalidade” cometem um equívoco, melhor dizendo, sentem-se como se houvesse um “em-si” criando obstáculos para seu desenvolvimento. Para Sartre não há aquilo que possamos chamar de inconsciente como repositório de desejos e pulsões reprimidas. Todas as nossas decisões, emoções e escolhas são conscientes mesmo quando as evitamos por meio da “má-fé”. “O homem é fundamentalmente desejo de ser, e a existência desse desejo não deve ser estabelecida por uma indução empírica; resulta de uma descrição a priori do ser Para-si, posto que o desejo seja falta, e o Para-si o ser que é para si mesmo sua falta de ser” (Sartre, 1997, pág.692)

No lugar de desvendar o suposto inconsciente, o objetivo da psicanálise existencial é ajudar o indivíduo a reconhecer sua condição de liberdade para que possa assumir a responsabilidade por suas escolhas. Sartre não se esforça em conceber o ‘self’ como uma essência ou identidade fixa. Na medida em que coloca o indivíduo como constante projeto de si mesmo, há sempre a possibilidade de ele fazer escolhas e iniciar uma ação. A psicanálise existencial sartreana visa auxiliar o indivíduo a compreender-se como um ser em constante devir. Sartre afirmava que: “[…] o que interessa à psicanálise é determinar o projeto livre da pessoa singular a partir da relação individual que a une a esses diferentes símbolos do ser” (Sartre, 1997, pág.748).

Há, por assim dizer, uma ‘ontologia da liberdade’, no sentido de que, se confrontarmos com a ‘ontologia parmenídica’ (Parmênides) no “Poema das Vias”, “o ser é, o não ser não é e nem pode ser dito”, ou seja, em nada se compara com o caráter estático e imorredouro do ser (princípio indivisível e eterno) proposto pelo filósofo grego. Sartre rejeita, inverte o ‘essencialismo parmenídico’ e, em seu lugar, o “ser do sujeito” impõe-se como afirmação da liberdade.

Em Sartre, liberdade não implica fazer uma escolha e, escolha, nem sempre quer dizer decisão, posto que, igualmente, não há liberdade porque não há critério na vida que nos diga para onde ir. Disso decorre que, as escolhas dependem sempre de cada indivíduo. O ato de construir constantemente outra existência passa necessariamente pelo sujeito. A escolha quer dizer engajar-se em uma situação concreta em total relação com o mundo. Posto que não haja essência humana fixa, algo que possamos chamar de uma ‘personalidade’ a mesma não faz sentido de existir. São os diversos contextos que permitem que alguém (o ser) possa existir.

Se, como afirmava Sartre, a existência precede a essência e a escolha é menos uma decisão individual e mais um engajamento, nenhuma em especial define o que realmente somos. Sendo assim, as diversas situações sem fim são momentos em que a liberdade se exerce no mundo. Engajando-se em um projeto subjetivo, a escolha emerge como uma categoria diagnóstica para Sartre. Quando escolhemos nos tornamos humanos, posto que, é em nossa existência concreta que o ‘ser sendo’ se revela como tal. A afirmação da liberdade engendra angústia. Mesmo em face da angústia e da depressão, Sartre enfatiza a liberdade de escolha. Quando certo indivíduo toma o caminho da negação da liberdade, a “má-fé”, o mesmo percebe-se como objeto (determinado) e não com sujeito (projeto de ser).

Tal como já havia destacado, unir os diferentes símbolos do ser foi o principal interesse da psicanálise existencialista de Sartre que tanto entusiasmou no campo das ideias os movimentos revolucionários do “Maio de 68”. Entre o binômio ‘amparo’ e ‘desemparo’, a psicanálise existencial coloca o paciente frente ao desamparo. O desamparo pode ser visto como sucedâneo da liberdade, ao passo que a angústia é negação daquilo que constitui a subjetividade (o movimento). Tal como na ‘escatologia marxiana’, no ‘fim dos tempos’, posto que o capitalismo, em si mesmo, carrega a contradição de seu sistema, ele próprio deve ruir para um ‘mundo novo’ surgir na forma do “paraíso socialista”.

A ênfase no vir a ser é o que marca a psicanálise existencial para Sartre. No lugar de olhar para os transtornos de personalidade em busca de uma “cura” que invista em recuperar uma suposta ‘personalidade normal’, a psicanálise existencial de Sartre visava auxiliar o indivíduo a compreender-se como um projeto em constante mudança no mundo. A aventura individual do sujeito reinventando-se através de suas escolhas faz com que a abordagem de Sartre sobre os transtornos de personalidade se distinga da freudiana por rejeitar a noção de personalidade fixa.

É responsabilidade do indivíduo conceber-se como um projeto em contínua construção. Defendia Sartre: “Cada qualidade do ser é todo o ser; é a presença de sua contingência absoluta, é sua irredutibilidade de indiferença” (Sartre, 1997, pág.736).

Embora Sartre reconheça a angústia inerente à liberdade, os transtornos de personalidade poderiam ser compreendidos como uma reação defensiva a angústia de ter que se reinventar constantemente e assumir reponsabilidade. Cada conduta humana demarca (simboliza) à sua maneira a escolha fundamental a ser decidida. A psicanálise existencial de Sartre desejava mostrar de que modo o sujeito é uma totalidade. Em cada um de seus gestos algo se revela. Engajando-se em um projeto subjetivo, político e ideológico – qualquer que tenha sido a escolha – emergirá como algo a ser diagnosticado.

Não há dúvidas de que o existencialismo de Sartre fez críticas às formas políticas autoritárias e colaboracionistas do regime de Vichy durante a ocupação alemã da França e, que suas ideias enfatizaram a liberdade, a responsabilidade individual das escolhas, a rejeição de visões deterministas e essencialistas do ser humano. Mas, embora o engajamento político de Sartre tenha contrastado com a passividade e o colaboracionismo do governo de Vichy, ao mesmo tempo, foi incapaz de perceber que por trás do véu das “boas intenções” do socialismo soviético havia uma face tão totalitária e perniciosa quanto o nazismo.

Sartre foi afetado pela mesma “droga” que costuma atrair e afetar os intelectuais, descrita por Raymond Aron em seu livro “O ópio dos Intelectuais” quando enfatiza o ópio das religiões políticas. Religiões políticas tentam a todo custo suprir o vácuo deixado pelas religiões tradicionais. O objetivo messiânico das religiões políticas que emergiram no século passado tais como o Nazismo, o Fascismo e o Comunismo era  terrestrializar o paraíso e apresentar uma perspectiva histórica salvacionista. É comum que religiões políticas carreguem sempre a promessa de  neutralizar a ameaça inimiga criando a dicotomia do “nós contra eles”. Os intelectuais são chamados a tomar partido e a posicionar-se frente a visões de mundo mascaradas por fortes mecanismos de propaganda.

Com os expurgos stalinistas descritos por Alexander Solzhenitsyn em seu livro clássico o “Arquipélago Gulag”, surge um dos mais impactantes registros dos campos de trabalho forçado na União Soviética durante o governo de Stalin. Publicado em 1973, o livro denuncia como o socialismo soviético cometeu atrocidades contra o próprio povo. Vencedora do Prêmio Nobel de Literatura em 1970, a obra nos mostra que, no lugar da liberdade e da realização de um mundo sem classes, a celebrada luta contra o capitalismo e o nazifascismo não passava de propaganda estatal soviética.

As condições precedentes de doutrinação da liberdade, sob a ótica existencialista sartreana, não foram eficazes no sentido de mostrar as reais pretensões da religião secular socialista aos seus militantes. As reflexões de Sartre sobre o devir do “Ser-para-si e, do engajamento político pela transformação social, fez a cabeça de muitos jovens que participaram do “Maio de 68”. A compreensão de que a liberdade exigia um engajamento prático foi essencial para a mobilização. Ávidos por exercitar a liberdade de agir, os manifestantes do “Maio de 68” expressaram uma síntese peculiar de reorganização social em momentos de convulsão política.

O “Ser-para-si” (a natureza da consciência) do “Maio de 68”, continua a manter vivo o sentimento de vergonha subjacente a qualquer forma de autoritarismo. A sensação de mal estar que convulsionou o fatídico século XX, continua a convulsionar o atual. Há sinais de uma forte crise global rondando nossa civilização. Quando indivíduos ou grupos se beneficiam da colaboração com regimes totalitários, seja por interesses políticos, econômicos ou sociais, esse tipo de comportamento revela o conjunto característico de sinais e sintomas patológicos da Síndrome de Vichy.

Para além do que aconteceu na França na década de 40, a Síndrome de Vichy, fenômeno psicológico observado em algumas pessoas que foram submetidas a regimes opressivos continua a emergir como principal ameaça ao mundo civilizado.

A identificação emocional e psicológica que algumas pessoas desenvolvem com seu opressor ou com o regime opressivo ao qual foram submetidas pode levar a comportamentos como: racionalizar ou justificar as ações do regime com argumentos estapafúrdios, passar a ver o governo opressor de forma positiva e demonstrar relutância em se opor ao regime – mesmo tendo oportunidade de fazê-lo – é estar sob o efeito da Síndrome de Vichy. Uma vez que adaptadas ao sistema opressor e autoritário, como bem afirmou Gene Sharp, o único e mais eficaz remédio para fazer com que indivíduos aprendam a lidar com governos autoritários é a não colaboração.

 

 

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Sobre Marcus Everson Santos

Marcus Everson
Professor, Palestrante, Licenciado em Filosofia, licenciado em Filosofia, Mestre e Doutor em Educação: membro da Academia Maçônica de Ciências, Artes e Letras. Colunista do Portal Só Sergipe.

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Um comentário

  1. Bom dia, meu muito querido amigo e intelectual à larga @⁨Marcus Everson⁩.
    Alvíssaras! Sempre me flagro feliz em assistir aos seus atos de coragem muito bem fundamentados.
    Abordar o fenômeno “Síndrome de Vichy”, notadamente pela perspectiva do egrégio historiador Henry Rousso, é um exercício de elegância tanto estético quanto pragmático-filosófico.
    Entenda que o _thauma_ pelo qual fui tomado não se refere à sua capacidade, esta que tão bem conheço e que se dispõe a um nível bem mais alto que o meu (oh, como voa alto meu irmão em armas).
    Mais uma vez e, aqui, a parafrasear canhestramente o próprio Rousso, você firma, de forma clara, objetiva, não obstante densa (que se virem os momirratos para que entendam), o ponto nevrálgico de toda produção textual que merece loas e respeito: “não há como abordar de maneira honesta e comprometida um objeto sem que se leve em consideração as diversas representações (no sentido schopenrauriano de buscarmos representações entre representações) do dado objeto (no caso, o fenômeno e a publicação que você aborda). Ou seja: seu artigo eleva à mais alta qualificação seus pressupostos, sua interpretação, como contrapontos ante às percepções outras citadas no seu texto.

    Em tempo: sua decisão por incluir, no artigo, o pensamento de Gene Sharp foi muito feliz. Notadamente sobre a reação pró e contra da população diante do regime opressor.

    Honrado, pois, sobremaneira por ser seu leitor e amigo.
    Parabéns 🍷🍷🍷🍷

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