“ A vida é aquilo que acontece enquanto fazemos planos para o futuro”, cito John Lennon, autor da frase, para falar do imponderável, do desenrolar do novelo do tempo que conduz nossos dias sobre a face da Terra.
Era final da tarde de uma sexta-feira como hoje, em junho de 2019, e a vi nos corredores do supermercado Mateus com o carrinho de compras. Tenho o hábito de observar as pessoas. Como viajo sempre, é nos aeroportos que mais as observo.
Estacionei o meu carrinho, e de longe ao observá-la, pensei: Que mulher forte, decidida, vencedora, empoderada, para usar uma palavra em voga. Sem ser mãe solo, criou uma filha sozinha, educou-a, acompanhou cada fase, vibrou com cada etapa vencida. Logo mais estará celebrando mais uma conquista: ver a filha formada em Medicina. Um feito extraordinário para mãe e filha.
Não demorou muito, ela me avistou e veio em minha direção. Nos cumprimentamos, ela me falou que voltara a trabalhar, já não aguentava ficar em casa por tanto tempo. Estava feliz, aliás, era feliz, estado permanente. Tem pessoas que já vêm ao mundo prontas. Goretti era uma delas. A felicidade é um estado de espírito.
Tenho o hábito de conferir a passagem do tempo, coisa de gente não sã.
Desde menino, confiro minutos, horas, dias, semanas, meses, anos que faltam para qualquer acontecimento que venha pela frente. Apenas um exemplo: viajante contumaz, ao sair de casa, calculo quantas horas tenho para voltar, e cruzar a soleira de casa novamente.
Ao avistar Goretti, disse: “A partir de hoje faltam 485 dias para a colação de grau de Isadora”.
-Oh! Thadeu, que Deus te ouça, será uma grande vitória, respondeu-me ela.
Ofereci carona para deixá-la, mas agradecida, disse que já providenciara um Uber.
Isadora foi cursar Medicina na tórrida Teresina, deixando para trás todo o conforto e colo da mãe; e, determinada, mergulhou na dureza do aprendizado dos que bravamente se aventuram na espinhosa caminhada de salvar vidas. Cursar Medicina é para os forte e determinados.
A boa árvore dá bom fruto, Isadora saiu à Goretti: Focada, determinada, obstinada, durante seis longos anos lá estava ela, em terra distante, a absorver ensinamentos e conhecimentos que alicerçaram sua jornada de médica, que agora se inicia.
Como a vida é aquilo que acontece, enquanto fazemos planos, e eu fazendo contas, ou contando a passagem do tempo, Goretti teve uma recidiva: 27 de março de 2020 deu entrada em um hospital, após 201 dias lutando pela vida, partiu em 13 de outubro, dias após completar 60 anos.
A quase médica Isadora, no amor pleno de filha, o tempo todo ao seu lado.
Como tudo muda, o tempo todo, o mundo conheceu em 2020 uma pandemia, que tirou tudo do lugar. Foram dias de isolamento, por causa do distanciamento social, pouco podemos acompanhar Goretti em sua convalescença, logo ela que amava ter gente por perto, e com seu carisma, atraia uma enorme entourage.
Sem seu porto seguro, e em meio à crise sanitária, Isadora teve que retornar a Teresina, ao curso, a hospitais congestionados, com alta mortandade por Covid-19. Assustador. Foram dias tensos, de muita preocupação com a saúde física e mental de Isadora. Como não podia levar para Teresina os filhos Fiona, Duck e Brown, eis que aparece outro anjo de quatro patas, Marie, filha de Duck, buldogues ingleses, que Deus enviou à terra para nos tornar mais humanos; sinônimos de amor, companheirismo, alegria. Marie cumpriu seu papel com louvor, distraiu e alegrou o coração de Isadora, amenizando saudades e tristezas.
Resiliência é a capacidade que temos de nos refazer diante das intempéries e do imponderável que a vida nos apresenta. Mais uma vez Isadora mostrou que é a continuação de Goretti. Forte, decidida, focada, guerreira, lá estava ela a vencer novos desafios, até chegar à vitória, sua formatura.
“Meu genro”, como orgulhosamente Goretti se referia à Frederico, nosso segundo filho, mais próximo de Isadora, ficou apoiando-a em tudo. Tempo de travessia, tempos difíceis; viver é rasgar-se e cingir-se o tempo todo. Ainda no leito do hospital, diante de Goretti, Frederico ficou noivo de Isadora, reforçando uma união de amor, respeito, companheirismo, cumplicidade, construção de vida. Como a mostrar à mãe, que sua única filha, seu tesouro, estaria amparada, resguardada e protegida. Acredito que Goretti partiu em paz.
Em 20 de janeiro, Isadora & Frederico casaram, celebrando o amor.
O poeta já disse que as mães não deveriam morrer… bem sei o que é isso. Aos 17 anos perdi minha mãe, que tinha apenas 43, de forma brusca e inesperada. Minha mãe, grávida de seis meses, dormiu sem saber que era cardíaca, e na calada da noite partiu. Fui acordado na madrugada, por meu pai, com a cortante notícia que a pessoa que mais amava no mundo não existia mais. Partira dormindo, desfazendo sonhos, iniciando naquela madrugada, 02/11/1976, Dia de Finados, tempos difíceis, tempos angustiantes, tempos de recomeço. Tempo de mudança, quando tudo mudou em minha vida, e na vida de meus cinco irmãos mais novos. A urgência do momento me transformou forçosamente de menino em homem. Não tive tempo de absorver tamanha dor, amadureci na brutalidade da hora.
O tempo é um bom professor, mesmo que você não faça perguntas, ele te responde.
A vida seguiu seu fluxo, tivemos que nos adaptar aos novos tempos, novos caminhos, novas realidades. A saudade é o amor que fica, a saudade nutre a mente, a saudade dói, a saudade acalenta. A saudade alimenta. A saudade alicerça, a saudade constrói.
Choro todas as vezes que uma mãe se vai, sinto um pedaço de mim que ficou órfão; fiquei velho com saudade permanente. Sou carente de mãe. Sou carente de colo.
A saudade não envelhece, a saudade não se desgasta com o tempo. A saudade nunca termina. Mães são bússolas, mãe é norte, mãe é porto seguro, mãe é aconchego.
Nesta sexta-feira, em uma tarde de mormaço, típica de outubro, em casa na minha Ilha do Amor, sentando a escrever, a lembrar-me de minha querida e saudosa mãe Dinha, que não teve tempo de acompanhar a minha trajetória e dos meus cinco irmãos no curso da vida, lembrei de Goretti, de cada momento de alegria que testemunhei. Agora ela não estava mais aqui para acompanhar essa conquista de sua cria.
Com uma mensagem do dia anterior, Isadora ficou sabendo que colaria grau na sexta-feira, 22/10, graças à ação judicial impetrada por seu advogado e esposo, Frederico, antecipando em dois meses sua formatura.
Isadora partiu para Teresina, juntamente com Frederico, para receber um papel, certificando que a partir desta data é médica, portanto, apta a exercer a Medicina, e atendendo o juramento de Hipócrates, “exercer a arte de curar, mostrar-me-ei sempre fiel aos preceitos da honestidade, da carência e da ciência…”
Como estamos felizes com tua conquista, como somos gratos a Deus por essa vitória, como queremos te abraçar, te proteger, te acasalar, como nossa filha, presente que Deus nos deu através de Goretti. Como mãe de nossos futuros netos, e lembrar do que sempre dizia a Goretti, “Nós teremos uma coisa em comum, nossos netos”, e ela sempre respondia, “Oh! Thadeu, é verdade”. Nunca morre quem sempre é lembrado. Para cada neto e neta nossos, falarei da avó que eles não conheceram. Tua rica história de vida nunca desaparecerá, Goretti. Tua luta hoje frutificou, e tua linda garotinha é uma bela doutora, a irradiar meiguice, sorrisos, alegria que certamente humanizará o frio ambiente hospitalar por onde passar. As mães são heroínas, que constroem futuro, semeiam amor, salvam o mundo. Sempre grato a Papai do Céu pela oportunidade de conviver contigo, por pouco tempo, mas suficiente para sentir tua energia, teu bom exemplo, tua história, Goretti.
E, como contador do tempo, um ano e onze dias após a passagem de Goretti, ou seja, 376 dias depois, Isadora Machado Sanches, colou grau em Medicina.
Semana antes, no café da manhã, aqui em casa, Isadora contou que sonhou com a mãe, dizendo que ela se formaria em um dia 25. E, 25 de outubro, quando concluo essa crônica, Isadora recebeu a inscrição do CRM 12292. A ligação de mãe e filha continua forte. Essa conexão é eterna.
A vida é bela, a vida é dádiva, por uma série de fatores, dentre eles, o imponderável, que de repente desmancha tudo que planejamos, embaralha tudo que prevemos, desnorteia tudo que esperamos, e mesmo nos pregando peças, segue seu curso, indelével, inexorável e inexplicável.
Para quem teve o privilégio de viver um pouco mais, e chegar até aqui, sabe que o tempo é um mestre muito caprichoso. Às vezes suas lições são tão repentinas, que tira tudo do lugar, e quase nos afogam. Outras vezes, elas se depositam tão devagar, como a conta-gotas, diante da avidez de nossas perguntas. E, por isso, todos nós que tivemos o privilégio de viver um pouco mais, aprendemos a olhar com serenidade o turbilhão da vida: amores ardentes se extinguem, urgências se acalmam, passos ágeis ralentam, vidas se vão, enfim, tudo muda, muda o amor, mudam as pessoas, muda a família, só o tempo permanece do mesmo modo, que continua sempre passando. Por isso quero fazer um brinde a ele – o tempo -, que esculpiu em cada um de nós a sua marca, e que sua passagem marca cada um de nós de forma indelével. Nossas vivências é o somatório de ciclos vividos.
Isadora, querida, quero te parabenizar por essa vitória, essa conquista, que começou lá atrás, com Goretti, ao teu lado, te orientando, te admoestando, e hoje, onde ela esteja, está orgulhosa, feliz, realizada com você, que tão bem soubestes aproveitar cada oportunidade, cada ensinamento.
Procura te guiar sempre pelo bom caminho, e, que tua serenidade, tua maturidade, tua retidão, e acima de tudo, os ensinamentos de tua amada mãe, sejam tuas companheiras fiéis e permanentes. Goretti era uma mulher de fé no Deus Vivo, e esse exemplo ela também te deixou. Com esse novo ciclo que hoje se inicia, tens o exemplo de uma mulher, que deixou um grande legado.
O tempo segue seu curso, a vida acontece enquanto fazemos planos, e a te observar, te desejo: saúde, sucesso, sonhos, sorte, sorrisos, fé, paz, realizações, conquistas e proteção divina. Que Deus te abençoe e ilumine sempre.
(*) Luiz Thadeu Nunes e Silva
Eng. Agrônomo, Palestrante, cronista e viajante: o sul-americano mais viajado do mundo com mobilidade reduzida: visitou 143 países em todos os continentes.