Nilton Santana (*)
É um erro grosseiro pensar que mitos são mentiras, que por isso, são descartáveis. O mito é uma maneira de explicar o mundo não somente na esfera da religiosidade, mas também na esfera da filosofia. Os mitos são uma constante do ser humano independente do tempo e do espaço.
Os padrões, narrativas e detalhes do mito são encontrados em toda parte, inclusive em biografias. Posso afirmar sem sombra de dúvidas que mesmo estando esvaziados de mitos religiosos, procuramos preencher esta lacuna com outros mitos de origem política ou até mesmo ícones propagados pelas mídias, ou cinema (XAVIER, 2015, p. 25-26).
Os mitos são narrativas utilizadas como equipamentos necessários à vida. Ao narrarmos eventos reais ou fictícios, estamos repetindo o uso de um equipamento conhecido desde os tempos das cavernas. Isto é, a troca de experiências que o cérebro entende como essenciais para a sobrevivência. A narrativa faz parte da vida humana, e a que mais se comunica com a nossa mente é a narrativa mitológica, pois todos os símbolos que atingem o íntimo da humanidade estão ali, gravados pela evolução.
Parafraseando Campbell:
“Você tem o mesmo corpo, com os mesmos órgãos e energias que o homem de Cro Magnon tinha, trinta mil anos atrás. Viver uma vida humana na cidade de Nova Iorque ou nas cavernas é passar pelos mesmos estágios da infância à maturidade sexual, pela transformação da dependência da infância em responsabilidade, própria do homem ou da mulher, o casamento, depois a decadência física, a perda gradual das capacidades e a morte. Você tem o mesmo corpo, as mesmas experiências corporais, e com isso reage às mesmas imagens.” (CAMPBELL, 1990, p. 49).
Podemos afirmar que o mito pertence a uma dimensão do ser humano (BIERLEIN, 2003). E o mesmo podemos fazer com ideologias políticas que sempre guardam aspectos religiosos. Toda ideologia possui seus mitos e símbolos. Até mesmo podemos citar aqui ritos nacionalistas que nos remetem aos personagens nacionais que foram mitificados (Ibidem). E aqui não vamos salientar o mito como fundamental para os códigos de conduta moral de grupos sociais, nem mesmo como um padrão de crenças que dá significado à vida (Ibidem). Também não pretendo adentrar no mito como uma narrativa simbólica-imagética que preenche a lacuna existente entre o inconsciente e a linguagem lógica do consciente (JUNG, 2013, p. 23). A riqueza dos mitos é vasta e vastos também são os grandes estudiosos que se debruçaram sobre o tema.
Mas qual a ligação que os mitos possuem com os rituais e símbolos? A resposta é que o ritual é o mito em ação. O ritual é a prática do mito porque traz para a vivência toda a força imagética que a mitologia possui (ELIADE, 1992).
Em outras palavras, ao fazermos um ritual estamos recorrendo aos símbolos que estão presentes em mitos. O mito se comunica com um estágio da vida e o ritual serve para que a pessoa viva intensamente este mito e seus ensinamentos. Nesse sentido, longe de ser uma mentira, o mito é a mais nua e pura realidade humana. Isso é tão relevante que irei enfatizar mais uma vez: o mito é a mais pura realidade humana! O ritual e o símbolo tornam o mito mais acessível. Estudar rituais é o mesmo que estudar símbolos e mitos, porque todos eles estão intrinsecamente ligados.
No Islã podemos fazer referência aos rituais que acontecem durante a peregrinação à Meca. Esses ritos possuem símbolos que remetem ao mito do profeta Abraão e ao profeta Ismael.
Da mesma forma, no Judaísmo temos o rito de sábado, que se estabelecem vários símbolos lembrando o momento da criação. O sábado deste modo torna-se um mito no qual as reverências ritualísticas ao sagrado são símbolos do momento mítico da criação.
O rito da Páscoa é um outro exemplo disto: na Vigília Pascal cristã uma vela branca que representa a luz de Cristo é acesa. Essa vela é do Círio Pascal. Perceba que o Círio Pascal é o símbolo que representa a luz de Cristo. Símbolo presente em um ritual que nos remete ao mito cristão da ressurreição. Onde há humanos há mitos, rituais e símbolos. O ser humano é um ser mítico, ritualístico e simbólico.
Convém explanar sobre os rituais de passagem. Os rituais que marcam a vida humana como os rituais de nascimento, de amadurecimento e de perpetuação da vida. E esses rituais encontram-se em diferentes culturas. O ritual de passagem delimita a fronteira a ser atravessada, é o acesso que o menino possui para o adulto, a transformação do imaturo para o maduro.
No norte do Brasil há a etnia Sateré-Mawé, durante o ritual de passagem o menino coloca as mãos em luvas de palha trançada; a luva está infestada com formigas Tucandeiras. Ao receber as picadas o processo ritual se inicia. Pode parecer estranho e impactante observar tal ritual de passagem, sobretudo com os olhos da nossa sociedade, mas para os indígenas que o praticam valores como força e compromisso são evocados (CARVALHO, 2019, p. 56). Toda a ritualística é preparada antes com demasiada atenção, inclusive durante o período o jovem a ser iniciado deve se alimentar de chibé de farinha, formigas torradas, castanhas, frutas, verduras e iguarias provenientes da caça (Ibidem, p. 110). Havendo aí uma preparação antes do próprio ritual.
Outro exemplo seria no Judaísmo, o menino judeu ao completar treze anos realiza o Bar Mitzvá, ritual de passagem onde lê publicamente a Torá, se tornando responsável pela observância dos mandamentos que regem a vida judaica (GALINKIN, 2001, p.62). Deixa de ser menino e passa a ser um homem. Há também toda uma preparação durante a passagem, inclusive alimentar (Ibidem, p.92). O compromisso para com o povo é sempre ressaltado.
Já na antiga Grécia, os jovens passavam por um longo período de Iniciação, no qual se incluía casar, participar ativamente da defesa da pólis, sendo no exército ou na marinha, e a celebração de rituais sagrados (FLORENZANO, 1996, p.19-32). Somente a partir daí passaria a participar da vida social adulta da cidade. O compromisso para com a cidade era sempre ressaltado.
Gregos, romanos, judeus, árabes, e tantos outros povos originários da África, Ásia, Europa e América possuíam, e alguns deles ainda possuem, rituais de passagem que servem para dermarcar a mudança de mentalidade da vida infantil para a vida adulta. Ou até mesmo iniciações para estágios mentais mais amadurecidos (MOORE; GILLETE, 1993). Os rituais, símbolos e mitos são extremamente necessários para a vida humana.
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Referências
BIERLEIN, J. F. Mitos Paralelos. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito. – Entrevistas com Bill Moyers. São Paulo:Editora Palas Athena, 1990.
CARVALHO, Joelma Monteiro de. Ritual de passagem: das terras indígenas às áreas urbanas dos Sateré-Mawé. Manaus: Editora UEA, 2019.
FLORENZANO, Maria Beatriz Borda. Nascer, viver e morrer na Grécia Antiga. São Paulo: Atual, 1996.
GALINKIN, Ana Lúcia. Os filhos dos mandamentos: uma discussão sobre a identidade judaica no contexto dos rituais de maioridade Bar Mitzvá e Bat Mitzvá. 2001. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001.
JUNG, Carl. Civilização em transição. Petropólis: Vozes, 2013.
XAVIER, Adilson. Storytelling: Histórias que deixam marcas. Rio de Janeiro: BestSeller, 2015.
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