Sim, os russos também sofrem. Os russos também confessam suas dores, seus amargores, seus dissabores. Os russos, apesar da sisudez e do aspecto aparentemente indiferente às coisas do coração e da alma, também comem do pão que o diabo amassa, diariamente, nos quatro cantos da Terra. Os russos, por fim, também sentem felicidade. E a literatura, mais uma vez funcionando como poço de guardações, opera um de seus papéis primordiais: revelar um tempo determinado, dotado de pormenores sígnicos, ou um mundo de símbolos, mesmo que a partir dos sentires de uma só pessoa, de um só poeta, de um só escritor.
Anna Andrêievna Gorienko, nascida em 23 de junho de 1889, adotou o nome Anna Akhmátova e com ele fez registrar uma das passagens mais belíssimas da poesia russa moderna. De opiniões fortes e de atitudes tidas como ameaçadoras para a época, Akhmátova desempenhou papel fundante para a consolidação da voz feminina na Rússia pós-revolução de 1917. Vivendo num tempo marcado pela opressão dos vários modos de expressão humana, a poeta de “soberana presença, nariz aquilino e lábios altivos” – como gostava de dizer – não se deixou corromper pela gratuidade das fraquezas e das rendições da rotina.
Mesmo sofrendo durante toda a sua vida males diversos, muitos de base emocional, a poeta abotoou seu casaco, saiu à rua e fez frente ao frio das horas. Anna não copiou modelos poéticos para criar sua lírica, não imitou suas precedentes russas para germinar seu discurso de luta pela classe feminina, não precisou se ancorar em cânones para aparecer diante de seus leitores. Ela simplesmente deu origem a um novo modo de fazer poesia, agora mais intimista, sem deixar de prezar pelo despojado de recepção rápida. Linguagem clara, versos desrimados, ausência de metáforas, temáticas do cotidiano, ritmo aberto e alígero são algumas das características gerais presente em toda a obra da artista.
Os poemas de “Noite” (Viétcher), seu primeiro livro, destacam-se por serem responsáveis pela elaboração de uma fase inicial muito mais baseada na consciência crítica da autora frente a sua própria vida e aos acontecimentos que, por um ou mais motivos, chegaram a interferir no curso normal de suas respectivas vivências. O apreço à reflexão sobre si mesma indica uma maturação da mulher enquanto ser de ação, que agora não só pensa o pensar, mas também pensa o agir do pensamento, ou seja, a sua atuação no meio em que se vive.
Apesar de se apresentar com uma carga muito grande de intimismos – o que pode ser confundido com uma espécie de fraqueza sentimental -, “Noite” encerra uma ideia generalizada sobre as transformações envolvendo mulher e sociedade, a partir do momento em que fica presente a participação desta voz feminil na tomada de decisões que o cotidiano lhe implica, seja ele familiar ou social. Uma mulher que sente as dores de um matrimônio mal resolvido e que tem no sarcasmo e na ironia prováveis armas para combater o mal que lhe assola são os caminhos mais utilizados pela artista, que também explora os espaços do vazio, do arrependimento e da frustração.
“Rosário” (Tchiôtcki), seu segundo livro, diferente do primeiro, já deixa mais evidente uma voz humana mais consciente de si mesma e do outro, mais centrada nos efeitos dos problemas vividos que perdida na visão do que deles poderiam vir a suceder ou suas causas. Em versejos simples e velozes, Anna vai se permitindo conhecer perante o seu leitor, como em: “… componho versos bem alegres sobre a vida caduca, caduca e belíssima”. Uma vida lhe atormenta, e esta vida faz-se necessária estar exposta, não para o usufruto da lírica da poeta, mas para o aprendizado da alma de um tempo pelos olhos alheios. Há uma espécie de desenvolvimento dos temas que foram matéria basal para seu livro inaugural, com apelos agora mais voltados à paciência e ao agir tolerante, sem o abandono de sua marca rebelde, contrastante da maioria, que reluta, indiferente às tiranias.
Anna Akhmátova escreveu mais de uma dezena de livros em vida, e muitas antologias de sua obra já foram organizadas e publicadas em diversos países. Entre os títulos, estão Revoada Branca, Tanchagem, Anno Domini MCMXXI, Junco, Réquiem: um ciclo de poemas, Sétimo Livro, Poemas Não-Coligidos e sua obra-prima Poema sem Herói. Deixou a certeza de que a palavra é um instrumento eficazmente feroz quando objetiva limpar as frestas de um tempo feito para se esquecer lembrando.
_________
(*) Germano Xavier nasceu em Iraquara, Chapada Diamantina-Bahia, em 1984. É jornalista pela UNEB e mestre em Letras pela UPE. Publicou o livro Clube de Carteado (Franciscana, 2006). Seu livro de contos intitulado Sombras Adentro (ainda não publicado) foi finalista do IV Prêmio Pernambuco de Literatura (2016). Em 2021, publicou o livro O Homem Encurralado (Penalux); e em 2022 , Esplanada do Tempo, que compreende a segunda parte da Trilogia do Centauro. Escreve para encontrar o equador de todas as coisas.
Essa é a força que nos guia:
“E a literatura, mais uma vez funcionando como poço de guardações, opera um de seus papéis primordiais: revelar um tempo determinado, dotado de pormenores sígnicos, ou um mundo de símbolos, mesmo que a partir dos sentires de uma só pessoa, de um só poeta, de um só escritor.”
Germano Xavier