quinta-feira, 14/11/2024
Coleta seletiva é necessária e tem custo elevado Fotos: Célia Silva

 Agentes ambientais – invisíveis e explorados

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Célia Silva, especial para o Só Sergipe

A coleta seletiva de lixo na capital é feita pela Cooperativa de Agentes de Reciclagens de Aracaju (CARE) sem contrato e sem remuneração. A cooperativa, criada há 23 anos por ex-catadores do antigo lixão da Terra Dura, vem buscando a prefeitura para contratação e taxação do serviço, mas os valores negociados não se afinam.

Procurador do Trabalho, Emerson Resende

A Empresa Municipal de Serviços Urbanos (Emsurb), órgão da PMA responsável pela gestão do lixo na Grande Aracaju, oferece R$ 100 por tonelada, segundo o presidente da CARE, Dárcio Ferreira Santos. Já a planilha de custos elaborada pela CARE em parceria com o Ministério Público do Trabalho e Associação Nacional dos Catadores de Reciclagem (ANCAT) chegou ao triplo desse valor.

“Estamos buscando o diálogo, mas o Ministério Público do Trabalho está de olho e se não houver acordo, recorreremos à Justiça”, disse o procurador do Trabalho Emerson Albuquerque Resende. Ele participou da execução da planilha e ressaltou que coleta seletiva é necessária e tem custo elevado.

Precarização ambiental  

A precarização na coleta seletiva de lixo não é exclusividade de Aracaju. Pesquisa divulgada este ano pelo Compromisso Empresarial para a Reciclagem (CEMPRE) revelou que 45,1% das cooperativas no país fazem o serviço em troca de parcerias e sem remuneração.

A Emsurb respondeu à reportagem por meio de nota e informou que mantém parceria entre a Prefeitura de Aracaju e a CARE, para a coleta seletiva domiciliar em 15 bairros da capital e em pontos destinados ao descarte do material reciclável.

Além desse compromisso, segue a nota, a Emsurb promove em atividade seis ecopontos – com mais quatro em preparação – Pontos de Entrega Voluntária e o programa Cata-Treco.

Coleta, separa, armazena e vende

A coleta de resíduos recicláveis é feita por quatro caminhões da CARE. Os veículos, doados à cooperativa pelo Banco do Brasil, Codevasf, Banco do Nordeste e Funasa, percorrem os condomínios seguindo calendário e retornam à sede da cooperativa, no bairro Santa Maria, antiga Terra Dura.

Caminhões da Care
Um dos caminhões da Care

O prédio tem seis galpões e uma sala administrativa. Os salões abrigam materiais recicláveis, além de um refeitório, um para triagem e outro para estoque. A triagem é o ponto de chegada dos caminhões. Severina da Silva Santos, 55, catadora que veio do lixão da Terra Dura, e hoje cooperada, separa os materiais que têm serventia. “Aqui, hoje, eu posso dizer que trabalho com dignidade”, disse a mulher que há 24 anos tirava do lixão, na companhia dos filhos, o sustento da família. “Hoje, é daqui que vivo”.

A CARE surgiu de um grande engajamento social que envolveu a Unicef, ministérios e defensorias públicas, Prefeitura de Aracaju, Governo do Estado e a Universidade Federal de Sergipe, além de empresas públicas, privadas e estatais. O esforço tinha como meta retirar crianças e adultos do maior lixão da capital e dar a eles educação, saúde, trabalho e moradia dignas. A partir da CARE outras cooperativas de reciclagem surgiram a partir de 2010 e hoje existem mais três na capital.

Todo o trabalho na CARE é feito por cooperados, desde a coleta nas ruas até o administrativo. Atualmente, são 60 associados, menos da metade do que tinha há oito anos, e comercializa 140 toneladas de recicláveis por mês, que seguem para atravessadores do Estado.  O rateio mensal mínimo para os catadores é de um salário mínimo, mas já chegou ao dobro desse valor.

Grandes desafios: rentabilidade e sustentabilidade

Conflitos e soluções

A queda nos números, segundo o presidente da cooperativa, veio depois da saída da Petrobras e de outros grandes geradores de descartáveis. “A fuga da Petrobras e de empresas grandes, que geravam muito material pra gente, nos enfraqueceu”, disse.

O grande desafio é trazer rentabilidade e sustentabilidade para as cooperativas. A contratação do serviço é o primeiro passo para o equilíbrio futuro das contas. “Continuamos mantendo o rateio de um salário mínimo a cada cooperado, mas já não garantimos mais as duas refeições que servíamos, o descanso remunerado, nem investimentos em capacitações”, complementou a diretora operacional da CARE, Amanda Bispo.

Falta educação ambiental

A falta de educação ambiental para contribuir com a coleta seletiva é outro problema. Segundo a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos (Abrelpe), mais de 70% dos brasileiros não separam o lixo comum do reciclável.

Esse descuido gera, além de enormes impactos ao meio-ambiente, rombos à economia. De acordo com a Abrelpe, o prejuízo chega a R$ 14 bilhões por ano. Os catadores informais também sentem as perdas. “Latinha vale ouro pra gente”, disse Joelma Trindade dos Santos, 41 anos e dois na catação de recicláveis.

O MPT mantém projeto para fortalecimento das cooperativas. Uma linha é a criação de uma rede de associações de coleta de recicláveis e a luta pela contratação dos serviços de coleta seletiva. Os trabalhos já começaram com a formatação da planilha de custos da CARE, com a participação de reuniões com a Emsurb e na destinação de multas para as cooperativas.

A revogação do Recicla +, programa criado em abril do ano passado, foi comemorada pelas 2.061 cooperativas de reciclagem existentes no país. A iniciativa estabelecia uma série de exigências impraticáveis para cooperativas, mas viáveis e atrativas para grandes empresas e grandes atravessadores.

O assessor técnico da Associação Nacional de Catadores e Catadoras de Recicláveis para Sergipe (ANCAT), Adriano Santos, participou das discussões em Brasília, em fevereiro deste ano, para propor avanços para cooperativas e catadores informais. Ele disse que o Recicla + fomentava uma concorrência desleal para o setor. “Foi uma grande vitória, pois o que havia era uma concorrência desleal”, afirmou.

Por outro lado, a recriação do Pró-Catador acendeu uma luz de esperança para as cooperativas, especialmente na formação e fortalecimento de parcerias com o poder público. “As prefeituras precisam entender que a coleta seletiva é de responsabilidade deles”, complementou Santos.

O Pró-Catador foi lançado em 2010 e engavetado nos últimos anos.

Legislação

A Política Nacional de Resíduos Sólidos  estabelece que a coleta seletiva é um serviço essencial de natureza compartilhada, porém não trata de remuneração.  Mas cooperados e ambientalistas entendem que uma associação dessa natureza não sobrevive sem a responsabilização financeira das prefeituras.

A invisibilidade que dói

 

“Gosto de dar bom dia, mas muita gente não responde. Tem gente que fecha a porta na cara, quando estamos catando. Botam fezes de cachorro junto ao lixo que a gente mexe para catar nosso sustento. As pessoas não sabem, mas latinha vale ouro pra gente e botam o nosso ouro misturado com tanta sujeira. Por que não separa?”

São trechos de um longo desabafo de Joelma Trindade dos Santos, 41, e 10 filhos. Acompanhei parte da rotina de trabalho de Jô, como gosta de ser chamada, e os relatos aconteceram ao longo da jornada que faz acompanhada da filha de sete anos e da parceira de trabalho, a catadora autônoma Jane dos Santos, 48.

Em alguns momentos, os relatos foram interrompidos por choro, como quando ela expressou a sua invisibilidade. “Dói a gente falar com as pessoas e elas nem olhar pra gente”.

Jô acorda às 4h30. Faz o café e acorda a filha. Ela mora com a menina e o filho rapaz na ocupação Valdice Teles, bairro 17 de Março, onde 90% são catadores autônomos, segundo o líder da ocupação, Diego Teles.  Os outros oito moram com o pai, em Umbaúba, cidade do Centro-Sul de Sergipe.

Quando o dia clareia, mãe e filha deixam o barraco e seguem em direção aos condomínios da Aruana, bairro vizinho ao 17 de Março. O carrinho de supermercado é o suporte para quem lhe der uns trocados.

Mais adiante, Jô encontra Jane e caminham juntas na jornada que dura entre cinco a seis horas. O que consegue juntar, leva direto para um sucateiro do Santa Maria, localidade próxima e que reúne grande número de atravessadores. Apura no máximo R$ 30, que vai gastar na bodega com a compra do alimento do dia.

De volta ao barraco de dois cômodos, Jô não para. Faz almoço, prepara a filha para a escola, leva a menina, volta para o barraco, arruma, varre e só então descansa. Faz caça-palavras, quando tem, passatempo preferido da mulher que estudou até a quarta-série do fundamental.

Catadora busca vaga no 3º ano do ensino médio

A catadora Beatriz Kelly, 23 anos, mora em um barraco na mesma ocupação de Jô. “Cato recicláveis porque não encontrei trabalho, nem oportunidade”, disse a alagoana. Ela chegou a Aracaju há três anos e iniciou 2023 buscando uma vaga no 3º ano para concluir o ensino médio.

O contingente de catadoras e catadores autônomos no Brasil é desconhecido e as estimativas variam muito – de 210 mil, de acordo com o IPEA, a 1 milhão, segundo o Movimento Nacional dos Recicláveis (MNCR). Em Sergipe, a estimativa da ANCAT aponta para 5 mil trabalhadores.

Eles vivem em condições insalubres, de extrema vulnerabilidade social e precarização do trabalho. O catador informal André dos Santos Santana tem 43 anos de idade e aparência de 60.  Magro, com desvio severo na coluna ele trabalha desde os 13 anos catando recicláveis na rua. Hoje tem uma carroça que possibilita fazer uma média de R$ 70 por dia.

Santana foi um dos 55 catadores informais presentes na conferência realizada este mês em Aracaju pela Secretaria Especial de Governo da Presidência da República. O evento reuniu numa escola do bairro 17 de Março, catadores de várias partes de Aracaju.  “Uma vida com dignidade, é o que a gente quer”, disse o morador da ocupação Valdice Teles, no bairro 17 de Março.

Sem dignidade, sem benefícios sociais, sem teto

Santana falou da falta de fiscalização nas balanças dos atravessadores, do preço que eles pagam pelo material repassado e da violência a que são submetidos nas ruas. Falou também das dificuldades para manter os dois filhos autistas sem ajuda do poder público. Segundo pesquisa do Cempre, 68% dos catadores do país não recebem nenhum benefício social.

Edineuza Jesus Romão, 52, mora no bairro Porto d’Antas com quatro filhos. Cata recicláveis pelas ruas do Centro de Aracaju com um carrinho de geladeira pela manhã e à noite. “Meu benefício foi suspenso”, lamentou ao se referir ao bolsa-família a que tinha direito.

Agentes ambientais desprezados

“Os catadores de resíduos sólidos são agentes ambientais. Eles não apenas limpam o chão da nossa cidade, mas, principalmente, dão o destino correto àquele item descartado que será reaproveitado, evitando mais danos ao meio-ambiente. Portanto, o poder público precisa colaborar de forma efetiva, pagando pelo serviço”, destacou o técnico da ANCAT, Adriano dos Santos.

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