domingo, 17/11/2024
Capa do livro de Marcos Almeida
Capa do livro de Marcos Almeida

Almeida Antológico – A propósito de Florilégio Latino: textos poéticos bilingues traduzidos e comentados

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Por Léo Mittaraquis (*)

 

Todo o coro dos escritores prefere os bosques e foge da cidade, cliente que é de Baco, aquele que gosta de dormir e de sombra. E agora queres tu que eu, no meio da algazarra noturna e diurna, consiga cantar em odes e seguir as pisadas já calcadas dos bons poetas?

Quintus Horatius Flaccus

Não que as pessoas acreditem literalmente nesses mitos esplêndidos; mas a poesia que há neles ajuda os homens a suportarem a prosa da vida.

Will Durant

Afirma-se que um poema não pode ser lido como poema, porque é primeiramente um documento social ou, rara, mas possivelmente, uma tentativa de triunfo sobre a filosofia. Contra esta abordagem eu reclamo uma resistência tenaz cujo único objetivo é conservar a poesia de um modo tão íntegro e tão puro quanto possível.

Harold Bloom

 

O estofo intelectual do escritor, músico e pesquisador Marcos Almeida, valendo-me, aqui, de termo usado por Eugene O’Neill, em “Longa Jornada Noite Adentro”, como bem sabido entre os iniciados, é denso, firme e de excelente qualidade. Suas publicações o provam em sobejidão. E quem, como eu, é ungido com o privilégio de passar uma noite ao lado deste humanista (adjetivo este dito aqui sob o valor clássico, renascentista), a beber ótimos vinhos, comer os pratos impecáveis elaborados por sua esposa, Jaqueline, chef par excellence (melhor Paella que já comemos, eu e Iara), ouvir o melhor da música, conversar com seus serenos e inteligentes filhos, trocar ideias sobre a cultura clássica, decerto manifesta o mais alto grau de reconhecimento, pois, sabe que, ao final da tertúlia, sentirá o espírito ainda mais enriquecido.

Tocante é perceber que Marcos Almeida, ciente do que sabe, do seu patrimônio imaterial denso e imenso, disto não se ostenta, preferindo, mesmo, ceder a palavra ao interlocutor, dando seu parecer de forma branda, segura e simples, sem nunca ocultar a satisfação, a alegria.

Amigo que honra, como poucos, a amizade. Um verdadeiro perfil ciceroniano.

Almeida traz, em si, a noção de amizade de Cícero — existencial, estética, antropológica, ou seja, humanista, ainda que esteja eu a incorrer em anacronismo. O desejar coisas boas a outra pessoa para o próprio bem daquele que ama, juntamente com a mesma vontade da parte daquela pessoa para com você, bem como um acordo completo sobre todos os assuntos, sejam do humano e ou do divino, amigos unidos pela boa vontade e afeição mútuas.

Então, chega-me às mãos livro seu publicado em 2006, “Florilégio Latino — Textos poéticos bilingues, traduzidos e comentados”. Leitura tardia? Sim, concordo. Mas sinto que se faz tarde com a compensadora maturidade minha. Não muita, mas vão-se uns dezoito anos da publicação. Penso, sem intenção absoluta, que algo a mais, mesmo mínimo, devo ter aprendido neste interim, o que me valerá para compreender melhor a obra.

Almeida manifesta uma perspectiva individual-humanista sobre a essência, a estrutura mesma do conceito/fenômeno “Civilização”.

Diz-nos o autor: “Fazendo-me mais claro, acredito que existiram duas fases realmente únicas da civilização propriamente dita. A primeira, entre o quinto e o quarto século antes da era cristã, quando os pilares da dramaturgia (Ésquilo, Sófocles e  Eurípides) e da filosofia (Sócrates, Platão e Aristóteles)  conseguiram materializar na Grécia Antiga tudo o que o homem possui de mais belo e altaneiro. A segunda, compreendendo um intervalo de dois séculos — um antes da  era cristã e o outro imediatamente após —, quando o latim  deu à luz a incomparável prosa de Cícero, aos deslumbrantes  versos de Virgílio, Ovídio e Horácio, e ao monumental registro histórico de Lívio e Tácito, entre outros”.

Não é de surpreender que essa visão esteja muito próxima, resguardadas as especificidades, da exposta por um dos maiores historiadores da contemporaneidade: Kenneth Clark.

Diz-nos Clark: “Ao estudar a história da civilização, deve-se tentar manter um equilíbrio entre o gênio individual e a condição moral ou espiritual de uma sociedade. Por mais irracional que pareça, acredito no gênio. Acredito que tudo de valor que aconteceu no mundo foi devido a indivíduos. No entanto, não se pode deixar de sentir que as figuras supremamente grandes da história — Dante, Michelangelo, Shakespeare, Newton, Goethe — devem ser, até certo ponto, uma soma de seus tempos. Eles são muito grandes, muito abrangentes, para terem se desenvolvido isoladamente”.

Asseguro a você, improvável leitor, de que Almeida e Clark se equiparam. Ambos detêm o conhecimento e cultura necessários para que ocupem o lugar que lhes é de direito. São pensadores cientes da responsabilidade, a qual voluntariamente assumiram: preservar o melhor da memória da Humanidade.

“Florilégio Latino” foi produzido por um autor que sabe, como poucos, harmonizar a síntese com o essencial. Nada se perde, nada do que é importante está ausente. Ele compreende que não há como cobrir o todo, portanto, oferece ao leitor uma seleção cuidadosa do que deve ser recordado, cultivado e dito. Ou seja, Almeida põe, sobre a mesa do aprendizado perene, todos os dados necessários. Saibamos usufruir disto. Sejamos gratos ao gesto.

A obra é bem seccionada: uma generosa introdução de duas páginas e meia. E é o bastante para apresentar bem tanto o livro como o autor.

As seções, ao lermos o sumário, denotam a grandeza de tão nobre empreitada: “Poesia Clássica Latina”; “Poesia Medieval Latina”; “Poesia Moderna Latina”; “Epílogo”.

Tradução do autor, diretamente dos idiomas originais. Sim, Almeida os domina.

Cada nome da literatura clássica é devidamente apresentado. O que auxilia muito o leitor ao ler os respectivos poemas. Um exemplo de todo este cuidado de Marcos Almeida, recortado, por mim, de forma arbitrária, do corpo de texto, é o seguinte: “Os poemas de Virgílio são um tanto longos para serem traduzidos em sua totalidade neste Florilégio. Assim sendo, optamos por incluir a magistral introdução da Eneida — uma peça obrigatória no repertório de qualquer amante da latinidade —, e o quarto livro das Bucólicas, onde Virgílio parece descrever o nascimento de Jesus Cristo com uma antecipação de quase quarenta anos. Aconselho que cada frase seja lida com cuidado, pois apresentam duplo sentido para o incipiente cristianismo. Note, também, que o ‘príncipe dos poetas’, até mesmo por razões cronológicas, não podia ser cristão. O fato é que, devido à sua aparente “premonição”, ele foi considerado até o final da Idade Média como um precursor dos santos, capaz inclusive de operar milagres; e o seu túmulo em Nápoles tornou-se lugar de peregrinação Observe ainda que Dante Alighieri (1265 – 1321), na Divina Comédia, escolheu Virgílio para honrosamente guiá-lo na sua poética visita ao mundo dos mortos!”

Florilégio não se basta às traduções diretas (como se isso fosse pouco). Almeida antecede às produções literárias com textos introdutórios curtos, porém, ricos em detalhes, em referências. E, mediante estes, mais uma vez denota-se a grande altura intelectual do autor.

A cada apresentação é relacionada com uma das quatro seções (incluo, também,  o epílogo), o leitor tem acesso a fatos, a explicações muito importantes. Ler, em seguida, as obras traduzidas, torna-se muito mais seguro. Ou seja, céu de brigadeiro e mar de almirante (no bom sentido, entenda-se).

A título de exemplo, destaco na seção “Poesia Clássica Latina”, sobre o poeta Catulo: “Sua obra completa consta de pouco mais de uma centena de poemas, em sua maioria curtos (apenas oito poemas são considerados longos). Ficamos surpreendidos pela sua extrema franqueza ao apresentar os vícios humanos – inclusive os seus — e pelo modo como retrata a vida cotidiana, sem retoques. Torna-se impossível, creio, lê-los e ficar indiferente”.

E, na seção “Poesia Medieval Latina”, lemos sobre Hildegard von Bingen e sobre a tradução levada a efeito por Almeida: “(1098 – 1179 d.C.) foi a décima filha de uma família de nobre alemães. Tornou-se depois madre priora do convento. De tão religiosa, costumava ter visões envolvendo anjos, Jesus, Maria etc. Seu confessor, um abade, pediu-lhe que registrasse suas experiências místicas acerca da doutrina cristã. Preocupada com o fato de seu talento vir a ser considerado herético, solicitou o parecer de ninguém menos do que Bernardo de Clairvaux, líder da recém-criada ordem monástica dos cistercienses e defensor da polêmica Ordem dos Cavaleiros Templários. A resposta foi extremamente favorável, o que a incentivou a escrever diversos tipos de obras — poemas, hinos, orações e até uma enciclopédia de medicina caseira chamada Liber Simplicis Medicinae — , tornando-se uma das únicas mulheres medievais a conseguir reconhecimento por seu valor intelectual. Desconheço se os seus cânticos já foram anteriormente traduzidos em português. Acredito que não. Um comentário final, destinado aos amantes do latim “clássico”: observe que a escrita latina em terras germânicas da época era bem diferente da que se considera atualmente como padrão ‘clássico’ de ensino do latim”.

A seção “Poesia Moderna latina”, última, antes do “Epílogo” é dedicada a Rimbaud e a Baudelaire.

Verdadeiro manual de leitura crítica, disposição generosa do caminho das pedras.

Não será diferente no que diz respeito aos demais autores traduzidos.

“Florilégio Latino “, de Marcos Almeida, é fruto de extenuante laborão, embora prazeroso, compensador.

Ressalte-se mais uma vez: o autor, conhecedor do Latim, não se vê à mercê de traduções duvidosas. Confia em si, sob as generosas bênçãos do Senhor Pai Altíssimo. E mais: recusa-se a uma tradução mecânica, dicionarizada. Esta tem seu valor, sua utilidade técnica e imediata. Entretanto, Almeida debruçou-se sobre poemas, sobre autores extraordinários, sobre uma língua que traçou, em diversos aspectos, os caminhos da civilização ocidental. E é Literatura, é lírica, é subjetividade, é alma do indivíduo.

A atitude de Almeida me remete, de imediato, ao pensamento de Harold Bloom, em “O Cânone Ocidental” sobre a grandeza do material, o qual os apaixonados estudiosos desejam trazer para seus respectivos idiomas: “O que existe muito claramente é um fenômeno de excelência literária inigualável, com um tão forte poder de pensamento, de caracterização e de metáfora que sobrevive triunfantemente à tradução e à transposição, e convoca o interesse em virtualmente todas as culturas”.

Leitura de muitos? Não, de jeito nenhum. Fosse há quarenta anos, arriscar-me-ia a ampliar o espectro. Hoje, ao assistir, à volta e à distância, pretensos intelectuais, ‘pseudopensadores’, os quais, a todo momento,  revelam sua ignorância, sua grave falta de habilidade na escrita, sua incapacidade de extrapolar a obviedade piegas, sei do deserto no que concerne ao escopo e as virtudes do bom raciocínio — simplesmente não mais existe; sei do oásis no qual decidi por habitar, onde recebo tão somente aquele ou aquela que tem, de fato, recordando Sartre, em “A Idade da Razão”, algo a dizer.

Não, “Florilégio Latino” tem endereços certos… Não foi escrito para corações fracos.

Somos poucos, nós iniciados, heráldicos. Estamos em meio ao implacável processo de extinção. E o desaparecimento do Espírito começa no apagar da Memória. Notadamente da memória e do cultivo da Cultura Clássica, da herança da infinita (pelo menos, deveria ser assim) Antiguidade.

Nada há para fazer contra isso, no sentido de deter o medonho processo.

Podemos, quiçá, decidirmo-nos por ocultar a paixão febril pela Arte Clássica (visual, musical e literária) com um melancólico véu de sereno jovialidade do espírito teórico, apascentador, este que tão sabiamente foi condenada por Nietzsche, esta sutil e [i]legítima defesa contra a verdade. É uma escolha aceitável, compreensível, diante do inexorável extermínio ao qual estamos a ser submetidos. Mas podemos também optar por resistir em nossos jardins, em nossas varandas.

Publicações (tão raras) do calibre de “Florilégio Latino”, de Marcos Almeida, não é referência para uma pueril esperança em dias melhores, em tempos futuros nos quais um Renascimento Cultural, vale dizer Espiritual, acontecerá. É documento, hoje, para os que escolheram não transigir e um testemunho póstumo dum vazio avassalador que se instalará, o qual se avizinha e que se imporá, prevalecerá.

E o destino da alma? Hades ou Campos Elísios?

Seremos — quase o somos já — refugiados em nossos próprios corações. Alguns de nós (como eu, provavelmente) ir-se-ão desta para melhor (ou pior) bem antes.

Por ora, aproveitemos o tempo que nos é concedido. Bebamos bons vinhos, ouçamos boas músicas, leiamos boas obras, cultivemos as boas amizades, amemos nossas belas mulheres — honremos o Bom, o Belo e o Sublime.

Santé 🍷

 

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Sobre Leo Mittaraquis

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Léo Mittaraquis é graduado em Filosofia, crítico literário, mestre em Educação. Mantém o Projeto "Se Comes, Tu Bebes". Instagram: @leo.mittaraquis

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