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Por Léo Mittaraquis (*)

 

Todos remetem o prodígio da arte a algum estranho departamento dir-se-ia que situado, sabe-se lá como, à margem daquele doloroso e iluminante desafio que é o mistério da morte ante o milagre da vida; assim constroem-se moinhos de vento em nome justamente da razão acordada e assumida… Ou existiria realmente, afora o sono esplêndido da arte grega, um pós-goyesco sonho da razão?

Bruno Tolentino, poeta e ensaísta

 

 Frequentemente pensamos em obras de arte como possuidoras de significado, e pensamos em museus como lugares onde esse significado pode ser exibido e encontrado.

Garry L. Hagberg, professor, filósofo e músico jazzístico

 

O título, capcioso, reconheço de pronto, apresenta-se num leque de infinitas, por assim dizer, possibilidades. A palavra “amor” tem origem no latim amare, que era usada para expressar afeição, preocupação e desejo por alguém. Talvez também proceda de ‘amma’, termo indo-europeu relacionado ao sentimento incondicional. Notadamente o amor expressado pela figura materna. Quanto ao conceito arte, sem intenção novidadeira, segundo maioria dos dicionários etimológicos, este vem do latim ars, que significa literalmente “técnica”, “habilidade natural ou adquirida” ou “capacidade de fazer alguma coisa”. Com o passar do tempo, o termo latino ars passou a designar um tipo de técnica relacionada à produção de objetos com beleza estética, ou aquilo que é esteticamente agradável aos sentidos humanos. Surgia assim o conceito da “arte”.

Então “A Arte de…” tem o poder de remeter às mais distintas das coisas, universais e particulares.

Deixando de lado a encheção de linguiça, a enxugação de gelo, o desnecessário artiguinho deste sábado de outubro abordará um livro, creio, bem interessante, intitulado o “O Amor Pela Arte”, do sociólogo e filósofo Pierre Bourdieu.

Então, o que temos é o amor pela arte de ir aos museus e, lá estando, ver e admirar a arte manifesta de várias formas e por vários autores.

Há tempos dou voltas em torno deste livro. Mas não levava a efeito comentá-lo. Motivo? Bourdieu virou gazua para qualquer porta acadêmica. À esquerda e à direita o dito cujo foi (mal) lido, (mal) compreendido, (mal) interpretado. Seu estilo de escrita, um tantinho complicado, devido, na minha opinião, à sua preocupação (justa e necessária) de fundamentar e explicar (diria até mesmo historicizar) cada termo ou expressão por ele usados, dava e ainda dá margem para as mais esdrúxulas exegeses. Doutores, mestres e graduandos, ricamente dotados de pobreza lexical, “traduziram” conforme lhes aprouve, o discurso representativo do sistema ‘bourdieusiano’. Nos meus anos de academia, ou seja, de universidade, antes do meu ‘auto-ostracismo’, vi e ouvi cada coisa de arrepiar tudo quanto é pelo ou penugem: “intelectuais” valendo-se de Bourdieu qual cheque em branco já assinado. O estelionato cultural corria à solta.

Não querendo, como diria o imenso poeta Osvaldino Marques, me alinhar aos aleivosos, mas, sim, dar provas, resistia a comentar, como já disse, a referida obra.

Mas eis que, após duas garrafas dum excelente espanhol, região de Rioja, e ser tomado por um atávico espírito intrépido, dum hispânico e flamenco ímpeto, me decidi por trazer à baila “O Amor Pela Arte”, de Pierre Bourdieu, devidamente lido, anotado, glosado.

E se não me assolar providencial preguiça, quem sabe produza outros artigos sobre este extraordinário pensador.

Ah! Cumpre observar que a produção não é de autoria apenas de Bourdieu, o outro autor, Alain Darbel, sociólogo francês, combatente no cenário dos conflitos militares argelinos e integrante ativo do Centro de Sociologia Europeia, fez muito bem sua parte, notadamente os detalhes estatísticos, os quais fundamentaram com solidez os argumentos e teses inerentes à obra ora abordada. É isso: a parte estatística do livro se deve muito mais a Darbel do que a Bourdieu.

A dupla dinâmica, como diria o historiador da filosofia Will Durant, soltou os cachorros da raça das desconfortáveis questões: o acesso aos tesouros artísticos é aberto a todos e, na verdade, proibido à maioria? O que separa quem vai a museus dos demais, ou seja, dos que não vão? Os amantes da arte vivenciam seu amor como algo livre de condições e condicionamentos?

É certo que os autores tentam fornecer respostas sociológicas para essas questões, vale dizer, respostas lógicas e empíricas. Contudo, ao final da leitura, pelo menos para mim, a proposta se mantém numa condição um tanto aporética.

Mas a leitura atenta vale a pena, sim. As perspectivas diante do fenômeno “amar a arte”, no sentido de se buscar a compreensão, a consciência de como aquele se dá no tecido social e em cada um de nós, sem dúvidas promove nossa elevação espiritual no que toca a observar e admirar as produções artísticas, notadamente as clássicas ou as que mantêm o propósito clássico do cultivo ao Belo. O livro funciona quase como um manual, sem, porém, se deixar engessar pelo superficial e automático discurso normativo.

Muito pelo contrário, ainda que não seja minha intenção aprofundar as implicações aqui, o livro traz resultados de pesquisa de campo extremamente úteis no que concerne ao entendimento do ato, voluntário ou induzido, de se visitar museus.

Significativa a abordagem quanto à influência familiar neste ritual. O que será visitado, visto, compreendido, dependerá do capital cultural proporcionado, antes de tudo, pelo ambiente doméstico. Proporção é a palavra. E tudo dependerá muito desta.

Sim, todos nós temos, queiramos ou não, senso de gosto, de preferência cultural subjacente. E essa referência tão visceral determinará, em grande parte, o que nos será agradável e atraente. Isso em praticamente tudo, mas, o caso aqui, é de interesse contingente à nossa posição diante dos objetos considerados obras de arte: música, pintura, literatura…

Estabelecida percepção sociocultural e econômica, manifestada  por Bourdieu e Darbel, levou-me a admirar este livro, dada a funcionalidade, a profundidade e, ao mesmo tempo, imediaticidade da mesma:  “A estatística revela que o acesso às obras culturais é o privilégio da classe culta; no entanto, tal privilégio exibe a aparência da legitimidade. Com efeito, neste aspecto, são excluídos apenas aqueles que se excluem. Considerando que nada é mais acessível do que os museus e que os obstáculos econômicos — cuja ação é evidente em outras áreas — têm, aqui, pouca importância”.

Isto, dito por intelectuais à esquerda (livres, entretanto, do infantilismo sobre o qual alertou Lenin), é revelador de mais um fato paralelo, ou intrínseco, ao descrito pelos autores: é sim possível posicionar-se num dado campo ideológico sem tentar aviltar a própria inteligência, vale dizer, a própria dignidade. Ou seja, sem mascarar a realidade.

Confesso que sempre corro o risco de incorrer neste equívoco: algo de metafísico, no tocante à arte permanece em mim. Ante um Giuseppe ARCIMBOLDO, um Sandro BOTTICELLI, um Hieronymus BOSCH, um Jan van EYCK, me é difícil recordar de que o objeto que admiro é fruto da cultura, vale dizer, da mão e da mente humana. E, na verdade, nem tento tanto manter o lastro do racional, deixo-me levar, ponho-me a sonhar…

Bourdieu e Darbel funcionam, em mim, como sinais de alerta. As Belas Artes, por mais maravilhosas que sejam, são resultado da labuta aliada ao talento. E os museus são os espaços – técnicos, materialistas e operatórios – em que podemos nos dedicar a olhar, a aprender, a comover contando com algumas horas para isso.

Iara Mittaraquis em visita ao MASP durante a exposição “Francis Bacon – A Beleza da Carne”

Decerto que museus são espaços amplamente acessíveis. O valor de referência desses lugares para a sociedade, em maior ou menor grau (porém sempre constante), afeta as políticas públicas — estas falsas disposições favoráveis à formação cultural de indivíduos e comunidades. São falsas, contudo, são pragmáticas, e podem ser apropriadas pelas pessoas que não se excluem da franca possibilidade de promover  o ‘habitus’ pessoal e coletivo de se fazer presente nesses espaços que pesquisam, colecionam, conservam, interpretam e expõem o patrimônio material e imaterial local e universal.

Compreenda-se, aqui, neste artigo, o ‘habitus’ como um senso interno quanto ao modo de se comportar. Em vez de nos deixarmos levar por um conjunto de regras sociais que sentimos que devemos aderir, o ‘habitus’ deve ser o conjunto de habilidades e recursos sociais que nos permitem nos integrar com o entorno, sem que percamos as características inerentes à nossa individualidade.

O sociólogo e filósofo Pierre Bourdieu

Bem, Bourdieu suscita interpretações e interpretações. A possibilidade do leitor, caso detenha estofo para tanto, discordar do meu entendimento em relação ao termo está incluída e não surpreenderia a mim… Ou sim? Hum…

O que é o museu, na percepção destes dois autores? Respondem: “O museu fornece a todos, como se tratasse de uma herança pública, os monumentos de um esplendor passado, instrumentos da glorificação suntuária dos grandes de outrora: liberalidade factícia, já que a entrada franca é também entrada facultativa, reservada àqueles que, dotados da faculdade de se apropriarem das obras, têm o privilégio de usar dessa liberdade e que, por conseguinte, se encontram legitimados em seu privilégio, ou seja, na propriedade dos meios de se apropriarem dos bens culturais, para falar como Max Weber, no monopólio da manipulação dos bens de cultura e dos signos institucionais da salvação cultural”.

Em tempo: “suntuária/suntuário refere-se a despesas, contas. Também a magnificência. E por aí vai…

O subtítulo do livro “O Amor Pela Arte”, a saber, “Os museus de arte da Europa e seu Público”, alerta de que a pesquisa levada a efeito se deu inteiramente no velho continente. Mas quando é lido com atenção, se o leitor detém capacidade de exercitar correlações, enfim, com conhecimento e boa vontade, percebe-se que mais de um aspecto se reproduz na nossa realidade.

Bourdieu e Darbel parecem saber disso. E, na verdade, têm de sabê-lo. Há disposições, as quais, não obstante se apresentarem como inerentes à um campo específico, no caso, aqui, o campo da Arte, são comuns onde quer que este campo se estruture. Isto em razão de a arte transcender, em termos, as limitações de que seria a linguagem e a cultura de onde se originou.

Portanto, nem que seja por “apenas” isto, vale a pena ler e estudar “O Amor Pela Arte”.

Acredito nisto.

 

Santé

 

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