Por Acácia Rios (*)
Cai sob o murro do vento
e a doçura não se estraga
para o ouvido ávido em captura:
os cajus são pomos dourados
a mais pura gostosura.
Ronaldson
Aracaju
Cajueiro arara cor de sangue.
Caetano Veloso
Ao presentear-me com um punhado de cajus avermelhados, olorosos e dulcíssimos, a minha aluna Valéria Vieira suscitaria em mim a lembrança de “Um amigo de infância”, do escritor maranhense Humberto de Campos, que tinha um cajueiro como amigo, plantado por suas mãos. Não hesito em afirmar que, na minha opinião, é um dos textos mais belos da memorialística literária brasileira. Conheci-o numa antologia escolar (particularmente tenho grande apreço por ela) e nunca mais o esqueci.
Antonio Candido, em uma de suas entrevistas, afirma que a Anthologia Nacional ou collecção de excerptos, de Fausto Barreto e Carlos de Laet, por exemplo, foi a forma pela qual ele e vários de sua geração conheceram os autores clássicos. Para mim, também, as antologias foram essenciais. São obras de divulgação que cumprem muito bem o seu papel de nos levar aos textos originais.
Personagens vegetais são recorrentes na literatura. Outro grande exemplo – este mais conhecido no Brasil – é O meu pé de laranja lima (1968), de José Mauro de Vasconcelos, cuja árvore conversa com o personagem, e que será objeto de uma crônica futura. (Teria o maranhense influenciado o escritor potiguar?) No caso de Humberto de Campos, trata-se de um texto memorialístico motivado pela lembrança de um menino que, encorajado pela mãe, plantou uma muda que havia acabado de arrebentar de uma castanha e cujo crescimento ele acompanha durante todas as fases da vida, entre idas e vindas de São Luís, Belém do Pará e Rio de Janeiro.
No dia seguinte ao da mudança para a nossa pequena casa dos Campos, em Parnaíba, em 1896, toda ela cheirando ainda a cal, a tinta e a barro fresco, ofereceu-me a Natureza, ali, um amigo. Entrava eu no banheiro tosco, próximo ao poço, quando os meus olhos descobriram no chão, no interstício das pedras grosseiras que o calçavam, uma castanha de caju que acabava de rebentar, inchada, no desejo vegetal de ser árvore. Dobrado sobre si mesmo, o caule parecia mais um verme, um caramujo a carregar a sua casca, do que uma planta em eclosão. A castanha guardava, ainda, as duas primeiras folhas unidas e avermelhadas, as quais eram como duas jóias flexíveis que tentassem fugir do seu cofre.
A antologia escolar da minha infância se perdeu no tempo, mas o texto ficou dentro de mim. Compartilhei-o, lembro bem, com amigos escritores e nenhum deles o conhecia. Somente com o advento da internet pude encontrá-lo, pois seria difícil localizá-lo de outra forma, a não ser em uma biblioteca que tivesse parte da obra do autor, há anos sem reedição. E qual não foi a minha surpresa quando me deparei com um texto maior do que o conhecido, já que várias partes haviam sido suprimidas para caber na antologia. A leitura da versão integral foi outra grata surpresa, uma ampliação do prazer estético que me havia sido proporcionado décadas antes.
Humberto de Campos (1886-1934) nasceu na cidade de Miritiba, que hoje leva o seu nome, mas a família se mudou para Parnaíba, já no estado do Piauí, onde plantara o cajueiro. Jornalista, crítico, poeta, contista, cronista e memorialista, tornou-se membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) em 1920. Na seara política, foi eleito deputado federal pelo Maranhão em 1920, mas com a dissolução do Congresso pela Revolução de 30, perdeu o mandato. Getúlio Vargas, no entanto, como admirador da sua obra e preocupado com a sua subsistência, ofereceu-lhe os cargos de inspetor de ensino e de diretor da Casa Rui Barbosa.
Quem se emocionou com o texto em algum momento da vida, fica ainda mais emocionado ao saber que o cajueiro da infância do autor ainda existe, mais de cem anos depois. Reina sozinho no pátio da casa onde ele morou, cercado por uma grade de ferro e com uma placa indicativa da sua história. A julgar pelas fotos, o cajueiro foi mudando e seus robustos troncos se espraiaram quase rentes ao chão. Ele é imenso em largura, altura e sentimento.
Mas décadas antes dessa imagem, em 1932, Humberto de Campos voltou à sua cidade natal e fotografou essa planta longeva, agregando-a ao livro Memórias (1933), em que o trata por “Um amigo de infância”. Deste modo poetizou a ausência prolongada: “O mundo toma-me nos seus braços titânicos, arrepiados de espinhos. Diverte-se comigo como a filha do rei de Brobdingnag com a fragilidade do capitão Gulliver. O monstro maltrata-me, fere-me, tortura-me. E eu, quase morto, regresso à Parnaíba, volto a ver minha casa, e a rever o meu amigo. “Meu cajueiro, aqui estou!” Reencontro e despedida, desta vez definitiva. Um ano depois, faleceria no Rio de Janeiro, aos 48 anos.
Depois da leitura desse texto, ainda na adolescência, me veio a vontade de plantar um cajueiro. Nunca o fiz. Sempre tivemos goiabeiras, mamoeiros, coqueiros, bananeiras, amoreiras e até um pé de araçá (hoje em dia, quase em extinção, assim como o de maçaranduba). Mas ao provar esse presente-caju ou caju-presente que é todo cor, olfato, textura, suco, origem e memória, essa vontade que ficou lá atrás é retomada. Separo as suas castanhas e guardo-as para plantá-las, à espera de que tão logo possa florescer em meu quintal um pé de caju carregado de “pomos dourados”.
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