Mulher alterada em muitos sentidos, estigmatizada e polida com diversos títulos e “encaixes tribais” – como por exemplo o de escritora “marginal” -, Ana Cristina Cesar ou simplesmente Ana C., como era mais conhecida, tinha tudo para não ser quem foi (alguns até acreditam no inverso, como eu). Mulher nascida em berço de ouro no Rio de Janeiro, ou quase de ouro, filha de pais protestantes e investida numa parcela da sociedade por demais jocosa e mesquinha, Ana C. tão logo cresceu foi adentrando na ciranda de pedra escondida por detrás da literatura. Sempre reclusa, fechada em cenhos, foi com esse instrumento nas mãos que Ana C. escreveria a sua curta e marcante história de vida.
Em seu livro A teus pés, originalmente publicado ainda antes de sua morte, Ana C. demonstra, sem deixar brechas no que tange a possíveis confundimentos, o quanto estava distante de toda estirpe de rotulagem literária em voga no seu tempo. É óbvio a aceitação da ideia de que ela bebeu do Tropicalismo, do modo de escrita “marginal” – diferente – de uma penca de escritores que estavam conquistando espaço no cenário das letras no Brasil, a tomar como exemplo Paulo Leminski, o Polaco, assim como de outros escritores que muito a influenciaram, como Katherine Mansfield, Clarice Lispector e T.S.Eliot, como também é evidente que a literatura produzida por essa carioca que veio ao mundo no ano de 1952 não se restringe a esses fatores simplesmente.
A teus pés, livro que a consagra, diz de maneira nada morna a que se destinavam os versos tortos de Ana Cristina Cesar. Breves, intensos, intimistas, autobiográficos e com uma aura misteriosa sobre o corpo e o não-corpo de cada poema, é com conforto que se pode dizer que ela tracejou sua letra como quem adornava o fazer de uma literatura perene, que não iria morrer instantaneamente às vistas de uma primária decaída. A primeira impressão que é transportada ao leitor é a de que há uma escritora lutando consigo mesma, num duelo que não tem um fim estipulável mesmo quando as páginas findam, numa batalha que atravessa todo o tempo de escrita hipnotizando-nos por meio de uma sedução estética disforme e ímpar.
A obra, que é aberta com uma belíssima coleção de fotografias e com prefácio de Armando Freitas Filho, entoa um canto que parece se autorrequerer e se autodenominar forte e destemido. Mesmo na falta de algo, a sugestão para a completude ou para o seu desejo é presente: “Eu tenho uma ideia./Eu não tenho a menor ideia./Uma frase em cada linha. Um golpe de exercício.”, diz no poema inicial, primeiro dentre muitos que não recebem título, o que dá ao conjunto textual um aspecto de interligações tanto no fator linguístico quanto no discursivo. Mulher transitiva, transitória, feita de transes, pouquíssimo apegada ao que quer que fosse, Ana C. começa a destilar um emaranhado de confissões que chegam aos olhos de quem lê como verdades absolutas.
A linha limítrofe entre a poeta e a mulher sofre um desgaste importante na medida em que a leitura é realizada. “Muito sentimental./Agora pouco sentimental.”, diz, revelando-se, sem querer se revelar. Acreditar ou não, tudo isso é uma outra história. No poema Inverno Europeu, escreve prosaicamente: “Não sou personagem do seu livro e nem que você queira não me recorta no horizonte teórico da década passada.”, ou ainda em Marfim: “As aparências desenganam. Estou desenganada. Não reconheço você, que é tão quieta, nessa história. (…) Palavra que não mexe mais no barril de pólvora plantado sobre a torre de marfim.” Nesta sua intempestuosidade, Ana C. continua se dissecando, como se num esforço de autoconhecimento: “Te apresento a mulher mais discreta do mundo: essa que não tem nenhum segredo”, excerto do poema Noite Carioca.
Não obstante, Ana Cristina desliga-se de tudo: “Eu não estava nem aí. (…) Duvido muito.” Nesse ínterim, reforça ainda mais seu teor de rebeldia: “Não olho para trás e sai da frente que essa é uma rasante. Garras afiadas, e pernalta.”, como escreve no poema Atrás dos olhos das meninas sérias. Ana é talvez feita do ingrediente do “Tesão do talvez.”, que engole “… desaforos mas com sinceridade.”, que “Só e sempre procura essas frases soltas no seu livro que conta a história que não pode ser contada.”, verso do poema Duas Antigas I. Mulher que fez “misérias nos caminhos do conhecer.”, que hoje livra os outros da verdade e que escreve “coisas assim,/para pessoas que nem sei mais/quem são,/de uma doçura/venenosa/de tão funda”.
A teus pés é um livro escrito por uma poeta que em 29 de outubro de 1983 pulou do prédio onde seus pais Waldo Aranha e Maria Luiza moravam, escrevendo de uma vez por todas seu poema mais revelador: o suicídio. Ana morreria ali, nascendo como uma rosa que não consegue esconder a beleza de suas íntimas desgraças, e que tampouco refuta diante do instante de se desbravar o desconhecido. Porque assim havia de ser, como bem ela avisou em um de seus poemas em prosa: “Às vezes me despeço com brutalidade. Chego a parecer ingrata.” Talvez fosse tudo o que ela quisesse dizer naquele momento. E que disse. Ou apenas escondera as palavras sob o capacho na entrada de uma casa qualquer, labirinto-mundo.
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