Por Luciano Correa (*)
Resgatei hoje do fundo de uma gaveta minha camisa da Canarinha, a seleção que sempre foi um dos poucos traços de união dos brasileiros, num país onde o conceito de Nação, desgraçadamente, só se manifesta nos gramados pebolísticos. Do quase nada de acerto dos bolsonaristas, uma delas foi a valorização de alguns símbolos. Por onde andei, sempre pude me lembrar onde estava pela presença constante de bandeiras e símbolos nacionais nos variados espaços públicos e privados. Mesmo na paupérrima Bolívia, nos mais longínquos rincões dos Andes, uma simples choupana de palha ostentava uma velha bandeira, muitas vezes rasgada e já descolorida pelo tempo e o vento. Aqui, passamos séculos ignorando os símbolos nacionais. Não vou recorrer às crianças atuais, colonizadas pelo Halloween. Vamos subir um grau acima, até os professores “de esquerda”: quantos aí conhecem e sabem cantar o Hino Nacional? O da Independência, nem pra assoviar? Quantos sabem que o Hino da Bandeira do Brasil é um dos mais belos hinos cívicos do mundo?
Foi preciso que uma turba selvagem reparasse que as belas canarinhas eram desprezadas e, com uma perspicácia fina, se apropriasse de tais símbolos. O resultado foi o que vimos: usar uma camisa virou adesão ideológica ao insano projeto político do capitão, o que fez com que gente como eu guardasse no fundo das gavetas ou, como tantos, se livrassem das inocentes peças transformadas em amuleto fascista. Em Sergipe, um ícone da esquerda local impôs a todos os monumentos uma estrela e coração socialistas esculpidos em cimento e pintado com as cores de Sergipe e do seu (dele!) partido. O brasão da Prefeitura de Aracaju só seria finalmente resgatado – justiça me façam! – por este locutor que vos fala, no comando da secretaria municipal de Comunicação, em 2017.
Não estamos tratando de camisas da seleção, evidentemente. Este é só um dos sintomas de como o mau exercício do poder denuncia o aparelhismo do Estado nos governos do PT, sobretudo pelas suas franjas mais ideológicas, embora tal caráter ideológico mereça aspas, muitas aspas. O discurso sustentado hoje por esses setores e pelo puxadinho envergonhado do PT, o Psol, é tão contaminado pelos identitarismos e pelo mais vil corporativismo, que velhos militantes das causas iluministas e republicanas já não se veem representados neles. A rigor, não são mais de esquerda, apenas se apropriaram das cores, do modus operandi e de algum verniz de discurso, incorporando o barulhaço constante, a máquina de difamação, o boicote sorrateiro ao funcionamento das instituições e a sabotagem como regra moral para tudo.
Por essas e pela dinâmica que o mundo viveu desde o fracasso do socialismo real, a esquerda mundial se perdeu e só se reencontrou na banalidade das causas identitárias. Até hoje aguardam a volta do seu novo Messias, uma nova revolução de 17, uma Cuba que não desse tão errado. No Brasil, a encomenda foi mal feita e o Messias que veio foi esse aí, causando um estrago que levará décadas para reverter. E que ninguém minimize: vai continuar sabotando a democracia diariamente, escorado em quase metade dos votantes de domingo passado. Essas organizações internas dos partidos de esquerda, principalmente o PT, são facções que tomaram o próprio líder Lula como refém nos seus dois governos. Com Dilma, politicamente fraca e sem aptidão administrativa, resultou no caos, dando no impeachment e na ascensão do Messias errado. É isso mesmo que acabaram de ouvir: os segmentos irresponsáveis dessa esquerda das “narrativas” produziram o ovo da serpente, porque o bolsonarismo nada mais é, senão, a mesma coisa, em sinal invertido.
O flagelo dos últimos quatro anos fez com que os “de bem”, ou seja, os que defendem a democracia, se juntassem em torno do único nome capaz de liderar a resistência, a tentativa (sic!) de reconstrução de um país arrasado, em todas as instâncias consideradas. Todos se juntaram nessa causa, mesmo os que, no primeiro turno, quase conseguiram desconstruir a imagem de Lula. Ou alguém esquece dos debates da Band e da Globo, jogos de seis contra um? Só Ciro Gomes, no espectro democrático, que, como sempre, foi Ciro Gomes. Sujeito em quem votei em 18 e pretendia votar em 22, até ser tomado de nojo por uma inteligência tão mal aplicada, um homem menor, cuspido da fábula da montanha que pariu um rato. Fiel ao próprio caráter, Ciro se omitiu novamente e foi cuidar dos próprios interesses, sabe-se lá quais.
Todos nos juntamos, com adesões do centro, da direita, do mercado, da mídia e, ainda assim, quase não despachamos o Capiroto do Planalto. O PT mesmo, as brigadas do MST e do desatinado MTST contribuíram muito menos com essa vitória, embora mantenham a pose de vencedores sozinhos. Um exemplo, em Sergipe, dessa arrogância que fez surgir o ódio contra as esquerdas: procurado por um dirigente do PDT local para entregar material de Lula no segundo turno, um dos generais das campanhas de Rogério e Lula no estado respondeu com esse primor de gentileza e urbanidade: “Mande fazer!”. Quando um partido empodera um bostífero desses apaniguado na vida boa vida da burocracia partidária, é porque não há mais referencial ético ou moral. Um vale tudo de arrivistas obscuros buscando crescer na escala social, sem princípios ou apreço à democracia. Não por acaso, Sergipe foi o estado nordestino que menos deu votos a Lula, além de não eleger o candidato do partido, o vazio e mal quisto Rogério Carvalho.
Lula ganhou com a metade sã do país, da qual nunca hesitamos em participar. Agora é a hora de fazer o governo do novo Lula, temperado pela injustiça da prisão e também consciente dos erros cometidos pela “companheirada”. Um governo múltiplo, plural, sem as igrejinhas ideológicas e a lodenta máquina partidária que tragou as gestões petistas. Sem a brodagem das leis de incentivo à Cultura e dos editais pras patotas carimbadas. Formar um governo com o Brasil real do jeito que é, com gente conservadora e careta também, mas decente e, de fato, republicana. A propósito disso, uma imagem distorcida saltou da tela de TV na primeira fala que o presidente fez logo após o resultado: o improvável e inescrupuloso deputado José Guimarães, o dos dólares na cueca, com sua cara de fastio, fazendo muxoxos para nosotros, posava ao lado do presidente eleito. Sei que o calejado Lula hoje é puta velha na política, no melhor dos sentidos, vacinado contra esses pequenos e grandes malandros da vida pública brasileira, mas não custa evitar imagens que possam trazer, pelo menos, uma urucubaca medonha. Bem-vindo novamente, Presidente! Você orgulha o Brasil lá fora e aqui dentro.
(*) Luciano Correa é jornalista.
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