Jorge Luis Borges nasceu em Buenos Aires, Argentina, em 1899. Viveu perto de 87 anos e adquiriu a cegueira mais incorrigível como “prêmio” por tanto amor e devoção à literatura. Autor de diversas obras, Borges sempre esteve no mais alto patamar do cânone literário. Dono de uma palavra tecida sobre o sudário do misterioso, do secreto e do mitológico, do metafísico e do fantástico, o homem que tinha verdadeira paixão por livros, principalmente enciclopédias, era possuidor de uma linguagem marcada por construções e narrativas labirínticas – leia-se “labirinto” como lugar de achar-se e perder-se. Para ele, era no espaço do texto onde tudo poderia acontecer, inclusive o despertar para a vida, inclusive o entendimento perante o dilema da morte, genitora de outros nascimentos.
Remoído e remoendo-se diante da tão extensa potência da memória, e agora sobrepujado pela presença da possibilidade do esquecer, do deslembrar o sentido das coisas e de suas faces, de suas sensações e iminências sígnicas, o escritor parece amargar um sentimento de derrota frente à evolução do seu corpo, do seu organismo que, velho e já gasto pelo uso, pressente o fim chegando. Ainda no texto, Borges questiona: “Por que lhe vinham essas lembranças e por que chegavam sem amargura, feito mera prefiguração do presente?”, duvidando, talvez, ou simplesmente incrédulo ao suspeitar da existência dessa forma viva, autônoma, agente de si: a memória.
Atulhado de emoções e recortes de lembranças, livrescas ou não, Borges altera a morosidade da mecânica das reminiscências e põe na superfície do tempo, à mostra de tudo e de todos, o rosto que há por debaixo do capacho humano, do tapete de nossa mente, livrando-nos de certas mortalidades e fragilidades infantis. “O que morrerá comigo quando eu morrer?”, pergunta o argentino, falecido em Genebra no ano de 1986. Percebe-se a sapiência e o alumbramento diante da existência de algo mais que não somente a armadura do corpo, da matéria, e essa percepção vai se perlongar nas páginas do livro inteiro.
Mais adiante, no texto Dreamtigers, diz assustado: “(Ainda me lembro dessas figuras: eu, que não consigo recordar sem engano a fronte ou o sorriso de uma mulher).” É a memória que persiste em não morrer, mesmo dentro da escuridão da visão ofuscada, opaca, translúcida. O susto de ter um-outro-olho, um olho que não para de lembrar, de ver, de rememorar, de reviver.
Após iniciado o confronto, Borges retalha-se em perguntas, a tomar como exemplo: “O que pratiquei com fervor na infância?” – quase uma tentativa de descobrir as razões que o fizeram possuir o “bem” ou o “mal” do guardar tudo, dentro de si. E continua: “Você se suicidou naquele dia?”; “O que ele sentiu?”; “O que buscam os espelhos?”… no centro do furação, no redemoinho da batalha que o autor trava consigo mesmo, surge a presença de Deus: “Fecho os olhos e vejo um bando de pássaros. A visão dura um segundo, talvez menos; não sei quantos pássaros vi. Era definido ou indefinido seu número?”, e finaliza o seu argumentum ornithologicum cosendo a frase: “ergo, Deus existe”.
A experiência de conhecer o algo-a-mais-que-apenas-humano faz com que Borges receie, sem muito titubear, que a morte não passa de uma ilusão. Portanto, o esquecimento, ou seja, a morte do que um dia existiu, é simplesmente uma mentira que criamos, ora por nos acharmos fracos ora por não tendermos à resolução de nossos próprios problemas, quaisquer que sejam eles. Nada morre, porque tudo é imortal. A morte pode ser uma invenção da debilidade do homem, uma espécie de doença. E o sonho, “o sonho de um é parte da memória de todos”, escreve no texto Martín Fiero, onde ainda cita: “o que aconteceu uma vez volta a acontecer, infinitamente”.
Navega pelas estradas do seu passado tentando averiguar os motivos para tanta liberdade entregue a sua memória, tanta incapacidade de manipular, domar o seu ato de esquecer ou o de lembrar. Depois de já ter lutado consideravelmente contra tais mistérios, Borges relata: “O esquecimento devora tudo”. Como um rolo compressor, o “parecer e o não ser” adquire o que tanto ele temia: a imortalidade. E o que fazer diante de uma coisa que nos parasita, que mora dentro de nós e que não podemos cercá-la? Buscar o silêncio, seria esta a resposta? Calar-se? Deixar-se? O que operar em nós mesmos quando somos muitos e ao mesmo tempo não somos ninguém? Qual a ordem do jogo e a dos dominados? Nesta celeuma, “sempre se perde o essencial?”, interroga Borges. Qual a voz que prevalece, qual o som que fica? O que vive, se “tudo já teve fim há muitos anos?” O que permanece, se “toda glória é somente uma das formas do olvido?”
A leitura borgeana não adormece quando fechamos o livro. Toda uma esfera de edificações se apronta no momento destinado à reflexão. Mestre da ficção, Borges confessa que muito do que está contido em sua obra não foi vivido, mas lido. Abre-se, então, a porta que dá para o vestíbulo da irremediável memória, este demônio que temos dentro de nós, tantas vezes ponto de partida para sofrimentos, angústias e alegrias várias.
No labirinto onde nos perdemos e nos encontramos dia ante dia, noite após noite, assombro vis assombro, resta-nos contentarmos com a ideia de que não estamos sozinhos dentro de nossa individualidade, que não estaremos mortos depois da morte, que não estamos vivos quando pensamos que estamos. Até porque, o que existe por detrás dos espelhos pode não ser muito bem o que imaginamos que seja. Porque nada pode ser tão óbvio quando suspeitamos que a escuridão é a nossa maior sentinela.
Trecho da obra:
Poema la lluvia (A chuva)
Bruscamente la tarde se ha aclarado
porque ya cae la lluvia minuciosa.
Cae o cayó. La lluvia es una cosa
que sin duda sucede en el pasado.
Quien la oye caer ha recobrado
el tiempo en que la suerte venturosa
le reveló una flor llamada rosa
y el curioso color del colorado.
Esta lluvia que ciega los cristales
alegrará en perdidos arrabales
las negras uvas de una parra en cierto
patio que ya no existe. La mojada
tarde me trae la voz, la voz deseada,
de mi padre que vuelve y que no ha muerto.
***
Bruscamente a tarde se há desanuviado
Porque já cai uma chuva minuciosa
Cai ou caiu. A chuva é uma coisa
Que, sem dúvida, sucede no passado.
Quem a ouve cair há recobrado
O tempo em que a sorte venturosa
Lhe revelou uma flor de nome rosa
De tão peculiar avermelhado.
Esta chuva que escurece os vidros
Há de alegrar os subúrbios perdidos
As uvas pretas de uma parra em certo
Pátio que já não existe. A molhada
Tarde me traz a voz, a voz desejada,
De meu pai que volta e que não morreu.
Germano Viana Xavier é mestre em Letras e jornalista profissional (DRT BA 3647). Desenvolve estudos e pesquisas sobre Literatura e Direitos Humanos – Comunicação e Cultura – Literatura e Letramentos – Língua Portuguesa – Linguística – Cinema – Educação e Educomunicação. Idealizador/Coordenador Geral do Jornal de Literatura e Arte O EQUADOR DAS COISAS (ISSN 2357 8025), periódico fundado em março de 2012 e que circula no Brasil, Portugal, Estados Unidos e Irlanda. Escreve desde 2007 o blog O EQUADOR DAS COISAS, cujo arquivo conta hoje com aproximadamente 2.000 textos de sua autoria. Em 2016, seu livro de contos SOMBRAS ADENTRO foi finalista do IV Prêmio Pernambuco de Literatura. Possui publicações em livros, jornais e revistas literárias diversas. Baiano desterrado, natural da Chapada Diamantina, tem 35 anos e atualmente habita o agreste meridional pernambucano. Canal no YouTube: www.youtube.com/oequadordascoisas
** Esse texto é de responsabilidade exclusiva do autor. Não reflete, necessariamente, a opinião do Só Sergipe.
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