Eles têm a mesma idade, convivem há quase meio século, e a passagem do tempo em vez de uni-los, afastou-os. Com o tempo as diferenças só aumentaram. Estão sempre em campos opostos, seja de desejos, sonhos, projetos de vida, conquistas ou visão de futuro. Ele pensa em poupar para o futuro, ela diz que não sabe se acordará viva na manhã seguinte. Até uva-passa é motivo de discórdia, um gosta, o outro detesta. Um gosta do azul, o outro do vermelho.
As divergências começam sempre na mesa do café da manhã.
Judith, sempre elétrica, ligada na tomada, alta voltagem, acorda primeiro, troca a roupa de dormir, no banheiro escova os dentes, os cabelos, coloca cremes faciais, lépida se encaminha para a cozinha. Passa o café, arruma a mesa e coloca as roupas na máquina de lavar. Todos os dias a máquina de lavar bate ponto; ele diz que se a máquina fizer uma denúncia ao Ministério do Trabalho, ela pagaria multa.
José, notívago, acorda tarde, custa a pegar no tranco, remancheia na cama, como a organizar a mente para o dia que só agora começa para ele. Diz que já correu muito, hoje cansado, procura desacelerar.
José carrega em si: um menino, um jovem, um adulto e agora no outono da vida, um velho. Cansado de tantos perrengues, segue na caminhada, medindo cada passo, para não tropeçar e cair. Isso serve para os pés, a língua, a mente. Sabe que se fritar o juízo, tudo piora. Procura manter a calma e a fleuma. Para quem viu o mundo acabar tantas vezes, e no dia seguinte está do mesmo jeito, José levanta da cama, se encaminha ao banheiro, troca de roupa, escova os dentes, vai para o desjejum matinal.
Como não recebe mais jornal impresso, lê os jornais do dia no IPad, que depois do celular é o objeto que mais tempo fica em suas mãos. Louco por música, ao chegar na cozinha liga Alexa, sua nova paixão, presente do Dia dos Pai. Viciado em tecnologia, vive cercado de bugingangas eletrônicas. O IPad é sua janela para o mundo. Na pandemia, o tablet quase não lhe saiu das mãos: filmes, livros, jornais, até TV José assiste no IPad. Tem três aparelhos.
Geralmente ao chegar à mesa do café, encontra Judith, que diferente de José, não é tão tecnológica, faz uso das redes sociais com parcimônia, sem excesso.
Judith acha que até os amigos do marido são virtuais, diferente dos dela que são de carne e osso, de longas datas.
As querelas do dia, no café da manhã é sobre o Natal que se aproxima. José gosta muito de Natal, ama casa ornamentada com tudo: árvore, presépio, guirlandas, jarros, almofadas, luzes, muitas luzes. Garoto sem recursos, a árvore de Natal da casa dos pais era simples, sem graça. Hoje, José gosta de tudo grandioso, iluminado, colorido.
Judith, também gosta de Natal, mas acha desnecessário decorar a casa antes do começo de dezembro. Para ela, Natal é em dezembro, não em novembro, isso é coisa recente, para o comércio vender mais. Judith gosta de gente, de reunir amigos e parentes nas festas natalinas, com mesa farta, que ela mesma prepara.
José estranha o silêncio da casa, a bate-estaca está parada, sem querer perguntar a Judith o motivo da máquina de lavar estar parada, toma o café devagar, degustando ovo pochete, cuscuz, queijo coalho, café com leite sem açúcar.
Alexa, toca Frank Sinatra, manda José. E sua amiga Alexa inicia a sequência do maravilhoso cancioneiro. Assim começa mais um dia de José & Judith, com Alexa a receber ordens para tocar as músicas que ele gosta e que fazem parte de sua trilha sonora.
“Ah! Alexa, como seria bom se todos fossem iguais a você”. “Alexa, toca My Way”.
Abaixo, a tradução da música My Way de Frank Sinatra. ( Clique aqui e ouça a canção)
“E agora, o fim está próximo, e então eu encaro o último ato
Meu amigo, vou falar claro, vou expor meu caso, do qual estou certo
Eu vivi uma vida completa. Eu viajei por toda e qualquer estrada
E mais, muito mais que isso, eu fiz isso do meu jeito
Arrependimentos, tenho alguns, mas então novamente, muito poucos a citar
Eu fiz o que eu tive que fazer e vi por completo sem exceção
Planejei cada curso traçado, cada passo cuidadoso ao longo do atalho
E mais, muito mais que isso, eu fiz isto do meu jeito
Sim, houve momentos, tenho certeza que você soube
Quando eu fiquei mal, mais do que podia mastigar
Mas por tudo isso, quando havia dúvida
Eu devorei e cuspi, enfrentei tudo isso e continuei de pé
E fiz isso do meu jeito, eu já amei, ri e chorei
Tive minhas conquistas, minha parte nas perdas
E agora, enquanto as lágrimas cessaram
Eu acho tudo isso tão divertido
E pensar que fiz tudo aquilo
E posso dizer, não de uma maneira tímida
Ah não, ah não, não eu
Eu fiz isso do meu jeito
Pois o que é um homem, o que ele tem?
Se não é ele mesmo, então não tem nada
Para dizer as coisas que ele sente de verdade
E não as palavras de alguém que se ajoelha
As lembranças mostram, eu levei os golpes
E fiz isso do meu jeito
Sim, foi do meu jeito”.
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Luiz Thadeu Nunes e Silva é engenheiro agrônomo, palestrante, cronista e viajante: o sul-americano mais viajado do mundo com mobilidade reduzida, visitou 143 países em todos os continentes.