sábado, 19/10/2024
Champs Élysées, um dos principais pontos turísticos da França Foto: Site Eurodicas

Champs Élysées em chamas

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Por Marcus Everson Santos (*)

 

No último e icônico movimento da celebrada “Sinfonia Coral” nº 9 opus 125 de Ludwing van Beethoven há uma “Ode à Alegria”. Concluída em 1824, a “nona sinfonia” tornou-se a primeira na história a carregar em sua estrutura um coro acompanhado por quatro solistas, soprano, contralto, tenor e baixo. O texto do coro final fora escrito pelo poeta e filósofo alemão Friedrich Schiller e, como tal, nos serve até hoje de chamamento à alegria, à fraternidade, à paz e à concórdia universal entre os homens. A “Ode” de Schiller musicada por Beethoven em sua “Sinfonia Coral” exorta:

 Ó, amigos, mudemos de tom!

Entoemos algo mais prazeroso e mais alegre!

Alegria, formosa centelha divina,

Filha de Elysium,

Ébrios de fogo, entramos em teu santuário celeste!

Tua magia volta a unir o que o costume rigorosamente

dividiu.

Todos os homens se irmanam, ali onde repousam tuas

doces asas.

Diante dessa exortação e, considerando o valor incomensurável da obra de Beethoven, dispensaríamos comentários, exceto aquele que magistralmente foi posto por Ottho Maria Carpeaux quando em seu livro “Pequena história da música” afirma ser “[…] o maior documento humano em música”. Concordo piamente com o Carpeaux, ao julgarmos a icônica posição que a “Sinfonia Coral” assumiu desde sua estreia e, sem incluir seus últimos quartetos de cordas, opus 131, 132 e opus 135 (meus prediletos), a obra do mestre nascido em 1770 em Bonn na Alemanha e falecido em 1827 em Viena, alcançou um importante momento do pensamento moderno. Em sua obra subscreveu-se os valores Iluministas e os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade.

Já em seu tempo, Beethoven não demorou muito até perceber que a utopia igualitária da Revolução de 1789 – levada adiante por Napoleão Bonaparte – no fundo carregava o germe totalitário e ditatorial. Fato conhecido é que Beethoven removeu a dedicatória que havia feito a Napoleão em sua 3ª Sinfonia dando-lhe um novo título “A Heroica”. Quando Beethoven se deu conta que, sob o disfarce propagandístico da liberdade, da igualdade e da fraternidade, Napoleão escondia uma agenda – um projeto pessoal de poder -, o compositor ficou transtornado e rasurou a dedicatória.

O escopo da Revolução Francesa foi destruir a antiga ordem e constituir outra que fosse anticlerical e antimonárquica. Nos meandros desse movimento de caráter intelectual, social, político e econômico estava latente a instauração de uma nova fé revolucionária.  Os autodeterminados “portadores da luz” (iluministas) pretendiam instaurar um novo culto, uma nova “cidadela celeste” de filósofos contra as trevas do misticismo e do fanatismo. Iluminados pelo poder “inconteste” da razão, a pretensão revolucionária era a de construir uma “nova justiça social” por meio do aperfeiçoamento do homem. Com o crescimento progressivo das ciências e das artes, Os iluminados sentiam-se capazes de criar um “novo homem” livre de superstições e misticismo.

Quando as reais intenções revolucionárias de liberdade, igualdade e fraternidade ganharam trágicos contornos no chão da realidade já não nos cabe discutir quais eram as suas intenções; quando as ideias dos iluminados se revelaram terrivelmente prepotentes e tão maléficas quanto àquelas que combatiam, logo nos damos conta que não há luz mais forte e poderosa do que aquela que ilumina o chão da realidade. A título de exemplo, a nova ordem napoleônica, fruto da “iluminada revolução”, tornou-se absolutista, imperialista. Esse fato nos mostra o quão se faz necessário ficarmos atentos ao que se passa menos no plano das ideias e mais no chão da realidade.

Insistimos que não há verdade maior que aquela que contemplamos no duro chão da realidade. Quando Napoleão tornou-se imperador na França revelando sua verve autoritária, ficou clara a distinção entre propaganda revolucionária e suas reais intenções. Beethoven não foi o único a tomar o “elixir poderoso do duro chão da realidade”, os séculos seguintes nos revelaram que, as mesmas forças revolucionárias interessadas em desconstruir antigas formas de poder, acabaram por construir outras formas poderosas de poder substituto.

A maneira de como o poder sempre se amplia encontra sustentação no que nos advertia Bertrand de Jouvenel em seu livro “O Poder: história natural do seu crescimento”, quando explica que “o Poder” sempre cresce em detrimento do individuo. A tentativa de desmistificação e desconstrução da antiga ordem social propugnada pela Revolução originou novos “cultos revolucionários de massa”.

No livro “Fanatismo ideológico: as origens dos cultos revolucionários” de Albert Mathiez – um belíssimo estudo sobre o fanatismo político – o autor examina os cultos das Revoluções Francesa e Bolchevique. No calor das revoluções seus resultados são invariavelmente os mesmos: não há grandes diferenças psicológicas entre os revolucionários; independente de seus contextos históricos, comumente, quase todos costumam agir guiados por algum tipo de fanatismo, seja ele político ou religioso.

No chão da realidade, revolucionários como Napoleão que conclamavam mais “liberdade”, “igualdade”, “fraternidade”, desejavam no fundo suprimir, forçar, desconstruir a ordem para estabelecer outra mais cruel e danosa do que a que havia antes. Em quaisquer que sejam as épocas, revolucionários combatem com unhas e dentes aqueles que julgam como sendo ignorantes e desonestos, mas, fecham os olhos para os escândalos de seus próprios pares desde que seja para defender a causa de sua fé revolucionária. O revolucionário fanático será sempre capaz de perdoar quaisquer crimes de seus correligionários para manter sem máculas o espírito de sua comunidade.

Nas sociedades herdeiras da modernidade, marcadas por uma forte heterogeneidade, o conceito de “vontade popular” não passa de uma abstração sem qualquer nexo com o chão da realidade. Quando se diz que é por meio do voto que a “vontade popular” mostra sua força, no fundo, o que acontece é que assim que chegam o poder, logo nos damos conta que a tal “vontade popular” jamais será obedecida. Uma vez no poder, as forças constituídas pela suposta “vontade popular” farão de tudo para se perpetuar e usarão todos os meios disponíveis para que o poder nunca troque de mãos. Foi desse modo que – disfarçado pelo manto das boas intenções – Napoleão traiu a confiança que Beethoven depositava na propaganda dos iluminados de sua época. Como se costuma dizer: “de boas intenções um mundo está cheio”.

Quanto à obra do Schiller e suas reflexões sobre a natureza humana – escopo de sua Ode à Alegria – ele acreditava que não havia como promover uma real transformação social e espiritual se não fosse por meio da arte. Schiller acreditava que homem era capaz de ir além de seu estado meramente físico e natural e rumar a um estado moral (espiritual). Assim, a maneira perfeitamente correta de se alcançar essa meta era por meio da arte, uma vez que sua tarefa era de preparar o espírito do cidadão para a mudança. Segundo Schiller, sem passar por uma real mudança estética (artística) uma nova ordem de coisas não tem como se sustentar por muito tempo.

Em sua obra Educação Estética do Homem, Schiller se mostra incomodado com as consequências da Revolução Francesa; nenhuma reforma estatal deveria acontecer sem antes passar por uma revolução estética do homem. Segundo ele, tal como viam os Gregos, fazia-se necessário restaurar a relação entre natureza e razão na arte. No lugar da fragmentação tipicamente moderna, era urgente restabelecer a integração das partes com o todo.

Abandonamos o efusivo apelo da “Sinfonia Coral” e passamos a caminhar há passos largos para o abismo espiritual.  Desde antão, a magia da “Alegria” (filha de Elysium) jamais conseguiu “[…] unir o que o costume rigorosamente dividiu”. O trabalho revolucionário de dividir para melhor conquistar as massas cada vez mais fanatizadas afastara qualquer manifestação de esperança. O ideário revolucionário – camuflado de boas intenções – atingiu gravemente a “Filha de Elysium”; “cortaram tuas asas”; No chão da realidade os homens jamais se irmanaram a não ser para defender seus próprios interesses.

Se, como nos diz Carpeaux, os destinos da humanidade e o da música de Beethoven estão intrinsecamente ligados, sugerindo que, se ela [a música de Beethoven] desaparecesse do nosso horizonte espiritual “a humanidade não seria humana”, então, o melhor e mais apurado diagnóstico de nossos tempos nos permitiu medir melhor a distância que estamos de valores como “irmandade”, “igualdade” e “fraternidade”.

Beethoven compôs a nona sinfonia quando já havia sido acometido pela surdez; mais que ninguém, ele tinha motivos para perder as esperanças. Quando se deu conta de seu real destino não fraquejou e deixou-se levar pela utopia revolucionária daqueles que prometiam um novo Champs-Élysées. Entregou-se ao seu trabalho musical acreditando que sua mensagem musical – extraída do silêncio profundo de sua surdez – reanimaria os corações dos homens a buscarem a paz, a concórdia e a harmonia.

Em nossos dias, o apelo magnífico de sua “Ode à Alegria” sequer resvala os ouvidos embotados por besteirol de todo tipo nos Tik Tok’s digitais.  São cada vez mais raros os ouvidos habilitados a perceber a beleza estética, musical e humanística que ele nos legou por meio da música. Seu chamamento espiritual converteu-se em mero produto de massa seja tocando no “carro do gás”, em “áudios de espera da telefonia”, em “propagandas de iogurte” ou em aberturas de novelas chinfrins.

O “Champs Élysées”, lugar mitológico da redenção universal do homem – exortado magistralmente por Beethoven e Schiller –, atualmente está em chamas e não há hidrômetro por perto.

“A Ode à alegria converteu-se em tristeza e os Campos Elísios em pó”.

 

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Sobre Marcus Everson Santos

Marcus Everson
Ensaísta, Professor Licenciado em Filosofia, Mestre e Doutor em Educação, Colunista do Portal Só Sergipe.

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