Por Léo Mittaraquis (*)
“Para Proust, o ato de recordar é uma forma de experiência involuntária de efeito arrebatador, que não vivenciamos na própria ocasião nem podemos provocar com um trabalho de memória, dirigida pela consciência. Mas em momentos espontâneos, em virtude de uma associação casual, somos inundados com recordações que levam a uma simultaneidade de presente e passado e, com isso, tornam visível uma realidade situada além do tempo.”
Dietrich Schwanitz
Há quem diga e, creio, com acerto, que é perfeitamente possível elaborar um ótimo cardápio e uma boa carta de vinhos a partir da atenta leitura de cada volume de “Em Busca do Tempo Perdido”, de Marcel Proust. Conhecendo a obra completa como a conheço, não tenho, de fato, motivo algum para duvidar.
Até porque o escritor, segundo estudiosos das respectivas vida e obra, fora um verdadeiro gourmet, durante a mocidade. O comer e o beber o atraía. Sabia muito bem selecionar bons pratos e bons vinhos. Ressalte-se que nos seus últimos anos de vida, quiçá a manter uma alimentação mais leve, optou por filés de linguado, frango e batatas. Há quem inclua sorvetes, bolos e cerveja gelada.
O que, desta lista, corresponde à realidade, não importa tanto. A grandeza do autor justifica a inclusão dalgum mito.
A propósito, eis brevíssima biografia: nasceu a 10 de julho de 1871, em Auteuil, pertinho de Paris. Faleceu em 18 de novembro de 1922, em Paris. Tornou-se universalmente reconhecido com a, já citada, monumental obra “Em Busca do Tempo Perdido”. Quase uma autobiografia. Produção literária de complexa estrutura psicoalegórica.
Fui por demais sintético, mas exorto algum improvável interessado a buscar mais dados sobre o autor, sua existência, seu modo de ser.
Acredito que saber, com alguma substância, detalhes da vida de um escritor seja sempre de alguma valia no tocante ao maior entendimento da respectiva obra. E quando esta perspectiva é aplicada a Proust, saber mais sobre sua breve e, ainda assim, interessante vida, torna-se essencial.
Leitores comuns, entretanto, atentos, e estudiosos do campo literário consideram Marcel Proust um dos mais influentes escritores do século vinte, apesar de ter morrido cedo, aos cinquenta e um anos.
Proust escreveu sobre o próprio passado, experiências as quais viveu, de modo muito particular e intenso.
Por toda a obra, seis a sete volumes conforme a edição (editores ingleses, por exemplo, fundiram o quinto com o sexto), o tempo é o protagonista e o antagonista. Bebida e comida representam bem a passagem das horas, dos dias, dos meses e dos anos.
Antes de continuar, também quero, mais uma vez, entoar meu mantra: “não sou enólogo, não sou sommelier, não sou gastrólogo”.
As três áreas/profissões exigem anos de estudo e a devida certificação. Sim, eu estudo. Leio muito, pesquiso… E, evidentemente, bebo vinho à larga.
Mas é um exercício autodidata, sem nenhum reconhecimento oficial.
Aqui, em Aracaju, capital do estado de Sergipe, Brasil (localização é importante, afinal, estou a ser lido nos mais distantes rincões deste vasto e drummondiano mundo) há sommeliers e chefs/cozinheiros experientes e competentes com os quais tenho a honra de aprender coisa aqui outra ali.
Consequentemente, tampouco sou chef. Estou mais pra barrigudo de fogão.
Dito isto, voltemos ao tempo, à mesa e aos vinhos, ou seja, voltemos a Proust.
Por sinal, em 1991 foi publicado uma edição luxuosa, muito bem elaborada, intitulada, no Brasil, “À Mesa com Proust”, pela editora Salamandra, a partir da edição francesa, intitulada “Proust la cuisine retrouvée”, da Société Nouvelle des Éditions du Chêne. Não me baseei neste livro. Busquei, por vaidade e orgulho, confiar no que a idosa memória poderia trazer à luz. Contudo, recomendo a leitura.
No mais das vezes, quem não leu os sete volumes, reproduz, numa conversa, a xícara de chá e a madeleine. E, como soe ocorrer, é insuportavelmente secundado pelos demais iletrados convivas.
Assisti à tal cena, em silêncio, submetido a uma tortura única. Cá e lá com meus botões a resmungar, a rosnar surdamente: “Mas que cabrunco da peste dos infernos! A obra não se resume a um chá com bolinhos, oh, bando de parvos e tansos!
Tranquilize-se, oh, leitor. Não listarei, neste artigo, o completo cardápio proustiano. E cedendo ao trocadilho barato, porém, irresistível, digo que não o farei perder tempo… Quá, quá, quá!!! Há, outrossim, o fator preguiça mesmo, a acossar-me.
Folgo em informar que a mnemônica busca, levada a efeito pelo autor, dos específicos aspectos extraviados ao longo da dimensão na qual os eventos ocorrem e se sucedem, inclui cardápio bem mais amplo e variado.
Curioso é o fato de que o primeiro prato bem antes da literalmente bendita madeleine, é mencionado logo no primeiro volume, “O Caminho de Swan”. E qual é? Na tradução em língua portuguesa, algo como “bife à caçarola”.
Proust nos conta, a relembrar, sobre pratos com biscoitos, consumidos em Combray (isto ainda no primeiro volume). Discorre sobre ovos com creme, bolo de amêndoas. Sigo, sem citar volumes e capítulos a reproduzir os “de comer e de beber” que o escritor francês, mediante seu alto conhecimento gastronômico menciona: caviar, linguado, ostra, uvas, molho escabeche, sequilhos, gruyère, sidra espumante, manjar, ‘foie gras’, vinhos (como os d’Asti, de Swann, que os trazia para impressionar e, por isto, ser bem recebido; o Chianti servido com frutas, durante o almoço; o Porto após a refeição).
Hum, é verdade, nada de fingir que não lembro — e a madeleine.
Mas eu gosto, leitor. Amo o doce — a la rocaille ou coquille — biscoito.
O que amarga é o palrar tipo fotocópia de pseudoleitores. Coisa injusta com uma iguaria dotada de origem santa e nobre (há outra versão, contudo, prefiro esta).
A passagem em que chá e biscoito agem como gatilhos de um amplo e profundo fluxo de lembranças é uma das mais ricas em argumento e estilo. Quem cita por citar, sem nunca ter se dado ao “luxo” ler, pelo menos, todo o trecho, desmerece a si e, mais ainda, a obra.
Para que esses serumaninhos possam se passar por leitores, eis o trecho (volume I, “No Caminho de Swan”, tradução por Mario Quintana). Basta repeti-lo ‘ad nauseam’, com certa pompa e ênfase:
“[…] Minha mãe, vendo-me com frio, propôs que tomasse, contra meus hábitos, um pouco de chá. A princípio recusei e, nem sei bem por que, acabei aceitando. Ela então mandou buscar um desses biscoitos curtos e rechonchudos chamados madeleines, que parecem ter sido moldados na valva estriada de uma concha de São Tiago. E logo, maquinalmente, acabrunhado pelo dia tristonho e a perspectiva de um dia seguinte igualmente sombrio, levei à boca uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço da madeleine. Mas no mesmo instante em que esse gole, misturado com os farelos do biscoito, tocou meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem a noção de sua causa. Rapidamente se me tornaram indiferentes as vicissitudes da minha vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, da mesma forma como opera o amor, enchendo-me de uma essência preciosa; ou antes, essa essência não estava em mim, ela era eu”.
É só mesmo uma pequena parte de toda a digressão, linhas nunca mais superadas na história da literatura universal. Na edição amorosamente gasta que possuo, Edições Loyola – Globo, ano 1987, o trecho vai da página quarenta e oito a cinquenta e um.
Antes da sequência acima, à altura da página de número trinta, o vinho de Asti será citado. Saber disso evitará, se calhar, o fátuo madeleinizar da extensa e densa obra proustiana.
À semelhança de uma receita culinária, os personagens criados por Proust não remetem, cada um, a uma só pessoa que o autor conhecera. Seus personagens, em suas características individuais, são constituídos de modo múltiplo, com elementos extraídos de diversas figuras.
Nessas misturas, nessas harmonizações e, também, nesses conflitos e dramas, a comida e a bebida desempenham papéis fundamentais.
Marcel Proust ocupa seu justo e devido lugar entre os escritores que alçaram o status de titãs da atemporalidade.
Bem, chega. Creio que seja o bastante para se ter, pelo menos, uma vaga ideia.
Não será exagero, caso estejamos diante de alguém a ler “Em Busca do Tempo Perdido” desejarmos boa leitura e bon appetit.
Santé!