“Os fomentos, subsídios e estímulos da rede de proteção à população, e ainda, aos empreendedores foram precários e atrasados”, afirma o advogado Thiago Noronha, ao analisar a situação em que passam empregadores e empregados diante da pandemia da covid-19, que obrigou o fechamento do comércio por quase 90 dias. Nesta segunda-feira, é possível que o governador de Sergipe anuncie a retomada da atividade econômica, mesmo assim com restrições, em virtude dos números nada animadores de infectados, taxa de ocupação das Unidades de Tratamento Intensivo (UTIs), taxa de isolamento social e mortos. Se a retomada for, de fato, anunciada, Thiago Noronha faz um alerta aos empresários: “o aumento de casos tem causado o temor de ‘novas ondas’ do vírus. Enquanto perdurar as Medidas Provisórias (MPs) e o estado de calamidade pública, o empregador deve se valer de todas as flexibilizações que a legislação de exceção dá neste momento. Inclusive, de analisar no seu caso se vale a pena voltar com toda a equipe ou não”. Thiago Noronha, que assina a coluna “Empreendedorismo&Inovação” no portal, sempre na primeira quinta-feira de cada mês, concedeu a seguinte entrevista ao Só Sergipe.
SÓ SERGIPE – O mundo vive uma situação atípica com a covid-19, pois com o isolamento social a maioria das empresas foram obrigadas a fechar as portas, ainda que temporariamente. São quase 90 dias sem a economia girar, os empresários preocupados e os trabalhadores mais ainda. Diante desse quadro quais são os principais problemas que, como advogado trabalhista, chegam ao seu escritório?
THIAGO NORONHA – Os principais problemas estão relacionados à situação excepcional em que vivemos. Quando falam “desculpem, esta é minha primeira pandemia” parece brincadeira, mas é uma realidade. É a primeira para toda uma geração. A “gripe espanhola” foi em meados de 1920. Sem contar que estamos num mundo completamente diferente daquele de outrora. Um mundo globalizado, interconectado, interdependente. Por isso, inclusive, a escalada de “surto” para “pandemia” foi em questão de meses. Todos os problemas jurídicos trabalhistas decorrem das incertezas do momento atual, e dos naturais conflitos de interesse decorrentes da legislação frente à realidade.
SS – Algumas pessoas não são cuidadosas ou não têm condições de fazer uma reserva financeira e administram as empresas sempre na corda bamba. Estão sendo frequentes os casos de empregadores que não têm como pagar as rescisões trabalhistas? Se sim, qual tem sido o procedimento nesses casos?
TN – Costumo dizer, e essa é uma das duras realidades da situação atual, que a covid-19 veio “passar uma régua” no ambiente empreendedor no país. Temos uma matriz empresarial muito heterogênea e, infelizmente, os fomentos, subsídios e estímulos da rede de proteção à população e, ainda, ao empreendedor foram precários e atrasados. Se uma empresa “sobreviveu” arrecadando num mês para pagar a folha no final do mês, sempre houve algo de errado. Infelizmente a “culpa” da falta de planejamento e/ou execução não foi da pandemia, o negócio já vinha, como dito no popular, “mal das pernas”. É duro dizer isso, pois como advogado que atuo na área empresarial e trabalhista, compreendo que um negócio, por exemplo, um comércio familiar transgeracional (que passa de avô para o filho e, depois, para o neto) é a história de uma família, é um legado. Porém, essas situações trazem lições profundas. Todos, em maior ou menor medida, estão sendo afetados. Quem teve velocidade em se adaptar ou até mudar completamente seu negócio, sofre menos. Quem fica insistindo na volta do “normal”, certamente demorará mais neste processo. Respondendo a sua pergunta: quem não tem como pagar as rescisões precisa negociar. Existem decisões e até uma alteração na MP 927 proposto pela Câmara dos Deputados para permitir o parcelamento dos acordos trabalhistas, enquanto perdurar o período de calamidade pública da covid-19. Porém, é preciso entender que, na outra ponta, há um trabalhador e sua família. Esse também precisa dessas verbas rescisórias para sobreviver. A melhor solução, neste (e em muitos) caso é buscar um “caminho do meio” via acordo.
SS- Um outro problema é que houve autorização de redução de jornada e de salário. Mas nesse cenário, para algumas pessoas a demanda de trabalho aumentou e elas não ganham por isso. O que fazer nesses casos?
TN – A redução de jornada e salário veio no bojo da Medida Provisória 936. Essa MP teve (tem) como objetivo principal a manutenção dos empregos e a preservação da renda do trabalhador. Obviamente, há perdas. Para ambos os lados. O Estado está compensando a parcela suprimida do pagamento através de um percentual do salário, porém o empregador precisa ter em mente que a redução do salário imposto pela MP implica, também, na redução da jornada. Se a demanda aumenta, consequentemente, terá aumento da jornada. É o chamado “tempo à disposição do empregador”. E isso pode gerar problemas e, quiçá, demandas judiciais futuras. Mas entra no bojo das incertezas provocadas pelo momento atual. Nesses casos, é importante que as duas partes busquem definir e documentar tudo, de modo que um não invada o direito e os limites do outro.
SS – Alguns trabalhos não podem ser feitos em home office e a empresa não demitiu e mandou o cidadão para casa. Quais os riscos para o trabalhador numa situação dessa?
TN – Essa situação enquadra-se na hipótese do inciso II do Art. 5º da MP 396, da suspensão do contrato de trabalho. Durante esse período, o trabalhador com seu contrato de trabalho suspenso receberá o equivalente a 100% do seguro-desemprego a que teria direito. Além disso, o empregador que demitir um trabalhador que estiver com o contrato suspenso poderá pagar multa conforme Art. 10°, §1º da MP 936.
SS – Muitas pessoas comentam que trabalham mais em home office do que na empresa, pois antes tinham horários estabelecidos, e em casa não mantiveram essa rotina. O colaborador pode cobrar hora extra, por adiantar o serviço fora do horário e num feriado, por exemplo?
TN – Essa é uma pergunta complexa, pois a Reforma Trabalhista (que regulamentou o trabalho remoto) não regulou se, nesta modalidade, haveria ou não controle de jornada de forma convencional (por horas “de serviço”). É importante destacar que uma das exigências do teletrabalho (Art. 75-C da CLT) é o contrato por escrito. Nesse contrato é importante constar de que forma será auferido o trabalho, se será por “horas” ou “por demanda”. Se por “horas”, entra na regra de “tempo à disposição do empregador”, cabendo à empresa realizar o controle desse desempenho por sistemas de login/logout ou quaisquer outras tecnologias. Se por demanda, não há a incidência de horas extras, porque o trabalhador é quem define quando cumpre a tarefa, o empregador só quer a tarefa entregue antes do prazo acordado.
SS – E se o empregador cobrar demandas no final de semana, comportamento que ele não tinha quando o servidor ia para empresa? O colaborador pode cobrar ou se recusar a fazer o trabalho for do horário de expediente?
TN – Se o contrato estiver suspenso ou com horário reduzido, o trabalhador pode se recusar a trabalhar. Mas são hipóteses bem delicadas, na prática. Sabemos que a relação trabalhista é uma correlação de forças desproporcional. Então, a recusa injustificada ou desfundamentada pode ensejar uma demissão por justa causa, por exemplo.
SS – O que fazer se o trabalhador está no grupo de risco (hipertenso, diabético, etc.), mas o patrão de termina que ele tem que ir para a empresa?
TN – O trabalhador pode, através de atestados médicos e documentos similares, requerer formalmente seu afastamento. Foi comum, no começo da pandemia, o afastamento sumário dos grupos de risco comprovados (idosos e pessoas com comorbidades). Caso a empresa não o faça, o trabalhador pode procurar seus direitos (à vida, principalmente) através do poder judiciário.
SS – É possível que a partir de amanhã (segunda-feira, 29), o governo inicie a retomada das atividades econômicas. Isso quer dizer que o salário do colaborador será aquele que ganhava antes da pandemia ou o patrão pode manter ainda os vencimentos reduzidos?
TN – A retomada das atividades, por iniciativa dos estados e municípios, não significa que todas as empresas vão voltar com tudo. Existe uma discussão muito forte na opinião pública sobre o que seria esse “novo normal”. Estamos vendo as experiências na Europa, EUA, Ásia e, em algumas regiões do Brasil, que a reabertura não trouxe bons frutos frente à pandemia. Pelo contrário, o aumento de casos tem causado o temor de “novas ondas” do vírus. Enquanto perdurar as Medidas Provisórias (MPs) e o estado de calamidade pública, o empregador deve se valer de todas as flexibilizações que a legislação de exceção dá neste momento. Inclusive, de analisar no seu caso se vale a pena voltar com toda a equipe ou não.
SS – Em virtude da pandemia a empresa deu férias coletivas, mas ninguém tira férias para ficar confinado em casa, como tem ocorrido por causa da covid-19. Este trabalhador pode alegar que não eram férias e pode pedi-las, combinando com o empregador?
TN – Outra pergunta complexa e que ainda não temos como dar uma resposta sobre como isso vai ser encarado no futuro. Férias é direito constitucional do trabalhador (Art. 7º, inciso XVII, da CF/88), todavia a fixação do gozo das férias é prerrogativa do empregador. Aqui nós temos um conflito de normas. Na prática, sempre houve um ajuste entre empregador e empregado para que as férias “calhassem” em períodos que combinassem com as férias do (a) companheiro (a) ou dos filhos, ou mesmo de uma viagem planejada. A bem da verdade, é que quem define as férias é o empregador. No caso de férias coletivas, é uma negociação, normalmente sendo validado pelo sindicato. Porém, repito, estamos num momento excepcional. E mesmo a concessão de férias coletivas “a contragosto” ou “para ficar em casa” tem como fundamento primordial a manutenção dos empregos. Então, cabe bom senso entre as partes para harmonizar esse conflito. Em último caso, sobrará ao judiciário trabalhista decidir sobre essa e outras tantas controvérsias que estes tempos estranhos produzem e continuarão a produzir pelos próximos meses.