Ao trabalhar em sala de aula a abordagem de Jeremy Rifkin sobre trabalho e educação em sua obra “Sociedade com Custo Marginal Zero”, com alunos de ensino superior em licenciaturas em Física, Química, Matemática e Espanhol, somente dois tinham noção do que é direita e esquerda. Uma aluna que dizia votar em Bolsonaro justificava a opção porque ele era corajoso; já o colega dissera que direita é ditador, conservador e quem está no poder. Após a explicação sobre as expressões um disse que “ia pensar.”
Noutra turma com alunos de Filosofia, alguns(as) outros(as) de várias licenciaturas, a mesma pergunta teve respostas das mais variadas e pelo menos, mais de 20%, não sabiam responder. Ante tal constatação, fizemos um breve histórico na sala ensejando posicionamentos diversos. Faremos um sintético relato para ao final opinarmos sobre o momento atual.
Por volta da segunda metade do século XVIII os ideais do Iluminismo, movimento cultural, filosófico, político e social que colocava a razão como a melhor forma para conquistar emancipação, liberdade e autonomia, fervilhava na Europa com epicentro na França opondo-se ao absolutismo presente em todo continente e além-fronteiras. Numas das fases da Revolução Francesa a convocação da Assembleia Nacional Constituinte se organizou em grupos: à esquerda, os radicais eram liderados por Robespierre e considerados populistas, chamados de Jacobinos, integrantes da baixa e média burguesia que defendiam os interesses do povo. No centro, os Girondinos que eram integrantes da alta burguesia, mais moderados e na extrema direita, os remanescentes da aristocracia, conhecidos por aristocratas, defendiam a volta do poder absoluto do rei, portanto conservadores.
Já no século XIX, Karl Max e Friedrich Engels, pensadores alemães, buscam explicar a necessidade de transformação social através do econômico e político se opondo ao capitalismo. Doravante, quem era adepto do marxismo e, portanto, do socialismo, era tido como esquerda e quem defendia o capitalismo era tido como de direita. Cada corrente com suas subdivisões (radical e moderado). União Soviética depois Rússia, China e Cuba foram os principais adeptos da tentativa de implantar em seus governos o pensamento desses filósofos.
No século XX, esses países, à força, tentaram fortalecer o pensamento de esquerda. As ausências de transparência política, de liberdade de expressão e o atraso tecnológico, dentre outros fatores, conduziram todos ao retorno para o capitalismo, ressalvando a tentativa lenta de Cuba já no século XXI. Após 2002 no Brasil, o governo Lula manteve o capitalismo intacto, com leves momentos de opção pelos miseráveis, profundas alianças com políticos de vários matizes e condutas conservadoras. Tentou conciliar no poder, esquerda e direita.
No governo da presidente Dilma aflora, a intolerância de ricos contra pobres, do sul contra nordeste, de pessoas que se dizem amigas ao ponto de agressões desde o esconderijo nas redes sociais até fisicamente ante uma palavra ou cor de camisa vestida por outra. Tudo a pretexto de direita e esquerda. A intolerância grassa o país como nunca nos últimos 60 anos. Parece, para algumas pessoas, ser prazeroso agredir com palavras, gestos, imagens e até fisicamente as outras.
Diante desse cenário, como fica a disputa entre esquerda e direita? Quem se diz contra a “esquerda” é realmente de direita? Defende o individualismo exacerbado? O controle dos pobres pelos ricos? Quem se diz contra a “direita” é realmente de esquerda? Defende tomar tudo dos ricos e dividir com todos? Defende a socialização dos meios de produção? Os intolerantes têm consciência porque exercem a intolerância?
Historicamente, o marxismo ruiu e o capitalismo cambaleia em sucessivas crises, manipulado pelos bilionários do capital especulativo mundial. Lembremos: “o mercado não aceita, tá nervoso”. Quem é o mercado nestas expressões? Poucas dezenas de milionários que manipulam especulando.
Pensadores e educadores tateiam na busca de outros caminhos. Jeremy Rifkin nos dá grandes contribuições. Pensamos que historicamente não há como patinar numa ou noutra direção. Talvez o caminho dos prossumidores seja novo alento. O que não dá para a humanidade é ficar agarrada ao radicalismo ideológico e excluir tolerância, respeito, compartilhamento, solidariedade, coletivismo, diversidade, conciliação, mediação e individualidade como pilares de sua vivencia neste começo do século XXI. Pensamos que discutir esquerda e direita com discurso e estratégias do século XX é medicamento vencido que acelera a intolerância alimentada entre o confronto das tendências sem benefícios à convivência humana.
Na contemporaneidade percebemos pessoas que se dizem de esquerda, argumentando e praticando a partir dos seus interesses pessoais. De igual modo, do lado oposto, pessoas que se intitulam conservadoras de direita argumentam e agem, por vezes, baseando-se em princípios coletivos.
A intensificação do individualismo no século XXI não acontece por acaso e remonta ao século XVII com o pensamento de filósofos da modernidade como Renê Descartes (1596-1650) e John Locke(1632-1704). O primeiro organizou seu pensamento na hegemonia do sujeito marcado pela frase “cogito ergo sum” – penso logo existo. O segundo, “a verdade para todas as atividades era a razão”. O pensamento de ambos, dentre outros, contribuiu para a construção de uma ética individualista centrada na obediência e na aceitação da realidade.
O caos argumentativo praticado pelas pessoas se estabeleceu no século XXI, de tal maneira, que a exacerbação da intolerância passou ser rotina na sociedade. Muitas pessoas que se dizem de esquerda ou direita brigam no trânsito por uma passagem, um estacionamento, uma fila, uma imposição de argumento numa reunião, uma música, um saco de lixo, time de futebol, bebida, mensagem nas redes sociais, uma opinião politica, etc. Tudo por conta da prática exagerada do individualismo.
“O individualismo é o mais ocidental dos valores. Esta primazia do indivíduo constitui o cerne da herança judaico-cristã”. Louis Dumont acentuou como o individualismo se tornou o valor fundador das sociedades modernas. Em sua obra, ele apresenta um estudo sobre o desenvolvimento do conceito moderno de indivíduo.
Embora seja conceito que permeie a sociedade ocidental, o individualismo não se revelou de um dia para outro em nosso meio, pois “a configuração individualista de ideias e valores que nos é familiar não existiu sempre nem aparece de um dia para outro. Fez-se remontar a origem do “individualismo” a uma época mais ou menos remota; segundo, sem dúvida, a ideia que dele se fazia e a definição que se lhe dava. E mais: “Pode sustentar que o mundo helenístico estava, no que tange às pessoas instruídas, tão impregnado dessa mesma concepção que o cristianismo não teria podido triunfar, a longo prazo, nesse meio, se tivesse oferecido um individualismo de tipo diferente. Eis uma tese muito forte que parece à primeira vista contradizer concepções bem estabelecidas”.
Temos, assim, um paralelo entre o indivíduo moderno ocidental e o indivíduo tradicional da antiga sociedade indiana. Dumont explica que quando o indivíduo constitui o valor supremo, trata-se de individualismo. Nesse caso, o indivíduo não pode ser submetido a ninguém, sendo as suas regras pessoais que movem a sua existência. Quando o indivíduo se encontra na sociedade como um todo, trata-se de holismo. O modelo indiano de sociedade é holista, a sociedade moderna ocidental é individualista. Continua Dumont “para os modernos, o homem basta-se a si mesmo e está em relação direta com sua razão e com Deus”. O indivíduo é um ser autônomo, integrante de uma comunidade que forma o Estado, tornando-o o poder supremo.
A ideologia do individualismo funda suas bases sobre a igualdade e a liberdade. Ao desprezarem a hierarquia social, todos os homens tornam-se iguais e livres perante o Estado. Não há referências para se espelhar; a noção de direitos e deveres se desvanece. O homem moderno abdica de todo sistema de crenças e valores, negligenciando a trajetória de sua história social para consagrar a satisfação pessoal. Ocorre uma desintegração do indivíduo em relação à sociedade. Ele vive em função das suas necessidades individuais, de maneira que a existência do outro varia de acordo com sua necessidade.
Na sociedade de consumo, sua essência caracteriza-se por mais produção e mais consumo, principalmente dos “bens” materiais, habitualmente associados às novíssimas tecnologias e o vazio de valores com ausência de referências morais e éticas. O consumismo tenta restabelecer o equilíbrio “homeostático” e sentir-se mais revigorado. As Ciências Humanas, principalmente a Sociologia e a Psicologia, criaram e continuam a criar os instrumentos necessários para perceber como é que se pode cada vez mais transformar seres humanos em títeres. Perguntamos, neste início do século XXI, como é que se chegou a tamanho egoísmo, a tão grande relativismo?
Explicar-se tudo a partir do individualismo “eu penso, eu quero, eu sei, eu vejo assim”, não poder ser a última alternativa. Porque não substituir por como nós pensamos, como queremos? Como sabemos? Como vemos? Para substituir basta nos colocarmos no lugar do outro ante de tomarmos a decisão.
Dirão alguns “é difícil; o sistema, a vida, é complicado”. Toda vez que transferirmos a culpa para o outro buscamos a isenção e a acomodação e ficamos no mesmo lugar, muitas vezes continuando a reclamar e nada mais; portanto não fazemos nossa parte. O que fazemos como maçons? O que uma Academia pode fazer? Provocar, refletir, divulgar e praticar o fortalecimento de valores onde o consumo exagerado seja contido, onde o respeito às pessoas nas suas diversas características seja praticado, onde a tolerância seja regra e onde a individualidade exista sem exacerbação.
Direita, esquerda, individualismo, e tendo como contraponto a intolerância, o consumismo exagerado ensejando o descarte, eis o cenário. Refletem também no descarte de valores expressos nos atos e palavras das pessoas. Tudo tem o mesmo sentido, amor e ódio, felicidade e alegria, poder e protesto. É preciso resignificar conceitos, gestos, sentidos das palavras, tendo o imperativo do diálogo.
(*) Valtênio Paes de Oliveira , professor, advogado, especialista em educação, doutor em Ciências Jurídicas, autor de A LDBEN Comentada -Redes Editora, Derecho Educacional en el Mercosur- Editorial Dunken e Diálogos em 1970- J Andrade.