Se comes, tu bebes

De escritos, frio e vinhos brancos – Ernest Hemingway em Paris

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Por Léo Mittaraquis (*)

 

Enquanto eu comia as ostras com seu forte sabor do mar e seu gosto metálico que o vinho branco frio lavava, deixando apenas o gosto do mar e a textura suculenta, e enquanto eu bebia o líquido frio de cada concha e o regava com o sabor fresco do vinho, perdi a sensação de vazio e comecei a ficar feliz e a fazer planos.

Ernest Hemingway, Paris é Uma Festa

 

Inúmeras vezes, e ainda há de ocorrer pelos tempos seguintes, enquanto tempo houver, refleti (termo excessivo) sobre o suicídio de Ernest Hemingway. Tendo lido seus livros, por vezes de maneira serena, por vezes de maneira um tanto sôfrega, compreendi perfeitamente seu gesto, percebi, sem alimentar dúvidas, sobre a decisão racional: alguém que tanto vivera a vida, não a viveria, doravante, em vão.

Minhas madrugadas, transcorridas ao baforar enquanto consumo um bom charuto, um bom fumo para cachimbo, um bom cigarro (este que, no meu caso, em nome da fidelidade, é o Dunhill Carlton Blend Box – Tobacco of London Ltd), indefectível taça de conhaque bem à mão, ouvindo The Sweet Remains cantando “Howling Wolf” (tratando-se de Hemingway, é o que, com certa frequência, gosto de ouvir – todo o álbum, na verdade).

E penso no gesto final, inegociável, intransferível, inadiável, não-retornável, de Hemingway.

Paradoxalmente, ou nem tanto, salto para minha coleção de elepês, cato “Sinfonia n. 2″, “da Ressurreição”, de Mahler. Sempre a ouço como se fosse a primeira vez. Ouço a soprano, Anja Harteros, creio, sua harmonia vocal melodiosa a lamentar: “O homem existe na maior necessidade, o homem existe na maior dor”. Eis, Hemingway, eis a verdade.

Mas, nestes momentos, sou sequestrado pelo jornalista, contista, romancista, cronista, bêbedo, sedutor Hemingway. Leva-me, a segurar com força meu braço, a Paris.

E “Paris é uma Festa”.

Hemingway me olha fundo, nos olhos, hálito de charutos e vinhos baratos, e diz: “entre a necessidade e a dor há a vida. Vivamo-la!!!”

Ao escrever um artiguinho como o presente recorrendo ao fator Hemingway, sei que os mais atentos perceberão que empresto, querendo ou não, algo de valor às pobres sentenças. Pois o escritor é, ainda hoje, uma das figuras literárias mais icônicas, e isso não somente nos Estados Unidos.

Icônica e canônica, com os sedutores traços de bravura, ímpeto e vulnerabilidade.

Homens e mulheres, touros, tavernas, pardieiros, copos e garrafas criados à sua imagem e semelhança.

Uma das máquinas de escrever de Ernest Hemingway

Hemingway alçou o invejável status de grande mestre no campo literário e jornalístico. E sempre com a bebida presente como um aporte necessário, psicológico e intelectual. Vinho e uísque também foram e são seus personagens.

Jamais afirmarei, no entanto, que Hemingway foi único no que concerne à denominada técnica da focalização externa. Mas foi um cultor daquela ‘par excellence’. Suas descrições, sua intimidade e, ao mesmo tempo, seu distanciamento em relação ao relatado/descrito parece obedecer à estrutura narrativa de um roteiro cinematográfico.

Não admira ser “fácil” para roteiristas profissionais e diretores levarem adiante os filmes baseados na obra deste escritor.

Ernest Hemingway é certamente conhecido por sua relação com o vinho e o álcool em suas diversas possibilidades: qualquer um que tenha se aproximado da leitura de suas obras terá reconhecido nele uma paixão ou talvez algo mais. A vida de Hemingway foi um concentrado de experiências aventureiras nas quais viagens, escrita e vinho se entrelaçam, dando vida a um personagem que marcou a história da literatura mundial.

“Paris é uma festa”, não é, decerto, a representação máxima do talento literário de Ernest Hemingway. Mas é soberba e tocante. E caso se leia “O Sol Também se Levanta” depois da leitura de “Paris é uma Festa”, o primeiro revelar-se-á doloroso, desesperador ao extremo, ainda que Hemingway não tenha adotado o tom de autopiedade para o personagem principal. Nada disso.

Mas ainda estamos em clima de celebração. Paris!

Hemingway mudou-se para Paris com sua primeira esposa, Hadley, em 1921. O jovem casal morava em um apartamento na rue Cardinale Lemoine, no 5º arrondissement de Paris. O apartamento era minúsculo, sem água encanada e um banheiro que consistia em pouco mais do que um balde. Hemingway alugou outro espaço, na rue Descartes, 39, onde ele, isolado, escrevia.

O escritor e sua esposa foram para Paris por motivos, inclusive, profissionais. Hemingway conseguiu um emprego como correspondente estrangeiro para o The Toronto Star, jornal do Canadá. Ao longo da década de 1920, Hemingway cobriu a Guerra Greco-Turca para o Star. Durante este tempo, Hemingway passou a se relacionar com outros escritores e intelectuais, alguns americanos, que escolheram viver no bairro de Montparnasse, incluindo Gertrude Stein, F. Scott Fitzgerald e Ezra Pound.

Vale ressaltar que Hemingway, juntamente com os outros nomes que citei acima,  compartilhavam um estranho sentimento de desilusão diante da modernidade. Este posicionamento estético e espiritual fez com que Gertrude Stein os apelidasse de “A Geração Perdida”.

Publicado postumamente, em 1964, “Paris é uma Festa” continua sendo uma das obras mais lidas de Ernest Hemingway. Na verdade, posso até mesmo afirmar que é uma das mais cultivadas entre seletos grupos de leitores, e estes, em sua maioria, com idade acima dos cinquenta anos.

E, sim, esta coluna, estilo cariátide, este tão antigo e empoeirado quanto o meu, deve tratar de tecer as linhas da trama que reúnem literatura e vinho, afinal, “Se Comes, Tu Bebes”.

Conforme relato do grande biógrafo, crítico e estudioso da literatura americana Scott Donaldson, Hemingway, quando em espera pelo voo em algum aeroporto, começava a beber imediatamente Bourbon. Ao hospedar-se, mantinha dois baldes de gelo para manter os vinhos frios, pois o respectivo consumo poderia se dar a qualquer hora, inclusive de manhã cedo. Durante suas turnês, tinha ele à mão um pequeno cantil de prata, no qual dava longos goles.

O ato de beber e o ato de escrever são duas referências intimamente entrelaçadas em Hemingway.

“Paris é uma Festa”: o início da obra traz o mau tempo. Chove, as ruas ficam alagadas e lamacentas. Havia o “Café des Amateurs”. Segundo o escritor: “Era um café triste e mal dirigido, onde os bêbedos das proximidades se apinhavam, e que eu evitava, devido ao cheiro a corpos sujos e ao azedo da embriaguez. Os homens e as mulheres que frequentavam o ‘Amateurs’ andavam permanentemente embriagados ou, pelo menos, sempre que tinham dinheiro para isso, e a maior parte das vezes faziam-no com vinho que compravam em garrafas de um ou de meio litro”.

O livro selecionado por mim para este artiguinho é, como já dito, “Paris é Uma Festa”. Todavia citarei uma passagem de “O Sol Também se Levanta”: “Entrei para jantar. Para a França, era uma grande refeição, mas após a Espanha a comida parecia distribuída com parcimônia. Pedi uma garrafa de vinho. Seria uma boa companhia. Um Château-Margaux. Era agradável beber lentamente, saborear o vinho, beber sozinho. Uma garrafa de vinho é uma boa companhia”.

Vinhos, vinhos e mais vinhos…

 

Então são os brancos, os preferidos de Hemingway. Bem, o cabra bebia de tudo. Mas demonstrou apreço pelos brancos, como, por exemplo, o riesling feito pela cave de Hunawihr na Alsácia. É um vinho frutado, com um sabor seco, fresco.

Eis um outro trecho de “Paris é uma festa” em que o encontro do vinho branco com os frutos do mar é descrito de uma forma encantadora: “Um dos melhores lugares para comer goujon era um restaurante ao ar livre, que ficava para as bandas de cima do rio no Bas Meudon, onde costumávamos ir quando dispúnhamos de dinheiro para um passeio fora do nosso bairro. Chamava-se ‘La Pêche Miraculeuse’ e tinha um vinho branco excelente mais ou menos semelhante ao Muscadet. Era um sítio que se diria arrancado a uma história de Maupassant, com uma vista para o rio semelhante às que Sisley pintou”.

Não poderia, sob pena de parecer descaso, deixar de informar, com maior ênfase, ao leitor, sobre o amor do escritor pelo Château-Margaux de Bordeaux. Hemingway o amava tanto que apelidou sua primeira neta, Margot Hemingway, de Margaux.

Quem leu e, talvez, releia Ernest Hemingway, tem ciência de que o universo de personagens e cenários elaborados pelo escritor é, em diversas situações descritas, enevoado, cruel… Noutras, não obstante recusar-se à pieguice, é possível perceber uma elegante verdade, um descrever anatômico da alma dos seus “heróis” e heroínas”. As aspas chamam atenção para a ironia.

Ernest Hemingway voltará a Paris com sua nova esposa, Pauline. Mas descobrirá que, apesar da cidade se manter altiva como uma “amante experiente”, ele mesmo não se sente mais seduzido como antes. Alguns eventos agravaram esse afastamento, essa rejeição, como, por exemplo, o suicídio de amigos, companheiros das farras e das conversas sobre arte, literatura, história e política. Os pintores estavam passando por maiores dificuldades, ainda, já que não vendiam nem as poucas quantidades de quadros como antes.

E uma guerra, a Segunda Grande Guerra, se avizinhava. Havia o medo, o horror, pois, a Europa já havia experimentado um apocalipse entre 1914 e 1918. Nem todas as feridas haviam cicatrizado.

As bebidas, incluindo, evidentemente, o vinho, ajudavam um pouco a Hemingway no suportar a nova e terrível situação.

Hemingway reagia e resistia à sua maneira: mantinha uma voracidade extranatural, ao cultuar o comer, o beber, o brigar, o desafiar a morte.

Santé!

 

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Leo Mittaraquis

Léo Mittaraquis é graduado em Filosofia, crítico literário, mestre em Educação. Mantém o Projeto "Se Comes, Tu Bebes". Instagram: @leo.mittaraquis

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