Por Léo Mittaraquis (*)
O homem tem sua parte animal, que é o que o traz de volta à realidade. Mas o que havia para comer? Onde e como?
O Homem que Ri, Victor Hugo
Tem de beber comigo antes de ir;
Creio poder saudá-lo nesta casa,
Onde é provável que tenhamos festa.
A Megera Domada, William Shakespeare
A sociedade vitoriana encontra em Charles Dickens o seu retrato.
Cultura Geral, Dietrich Schwanitz
Ninguém é, decerto, obrigado a ler o que não gosta, o que não lhe causa interesse algum. E é sobre ler Literatura (Literatura literária, bem entendido) que estou a dizer. Este ou aquele título, este ou aquele autor, na minha perspectiva, não têm de ser de leitura impreterível, inescusável…
Salvo em momentos técnicos e estratégicos, quando há de se ler o que é para ler, sem negociação, melhor ler o que é de gosto, o que atrai e fascina. Estou de acordo com tal premissa e ponto.
Entretanto, ou talvez por isso mesmo, se o sujeito deseja fazer parte do universo literário, dispondo de mais alicerce e estofo, faz-se, creio, sensato e ajuizado deitar atentos olhos sobre as linhas escritas pelos gênios da narrativa. Sim, entra neste balaio a poesia, também, como contraponto da prosa. Mas é em nome da prosa, do texto corrido, que me ponho, hoje, a adubar as caraminholas.
Para tanto, selecionei um autor, o qual, se não é unanimidade (torço para que não o seja), detém alto poder como referência. Estou a apresentar a você, improvável leitor, Charles Dickens.
Motivo? O homem, além de competentíssimo escritor, era um gourmand, vale dizer, amava a boa mesa.
E tal amor, tal apreço, tal preferência refletiam-se em sua maravilhosa produção literária.
Comecemos por uma das suas obras mais populares: “Um Conto de Natal”. Valho-me, para este desiderato da edição publicada, em português, pela L&PM Pocket, acho que de 2004.
Ali, pela página 14, lê-se: “O prefeito, em sua poderosa prefeitura, dava ordens a seus cinquenta cozinheiros e empregados, para garantir que o Natal fosse comemorado com toda a fartura que merecia a casa oficial. E até o alfaiate, que havia sido multado por andar bêbado pelas ruas, preparava a massa para o bolo de Natal em sua pequena casa, enquanto sua esposa magrela saía com o filhinho para comprar carne”.
Fartura… Ou, pelo menos, um bolo e um pouco de carne. Quem conhece o natalino conto sabe que este trecho é um implacável, um cruel contraponto com um trecho anterior. Inverti a ordem para que vossas senhorias tenham uma ideia mais clara, se assim posso dizer.
Leiamos portanto:
“Cavalheiros beneficentes – Estamos tentando recolher fundos para dar algo de comer e beber para os pobres, e o mínimo para que possam se aquecer, porque estamos convencidos de que essas instituições têm muito pouco a dar para aliviar as necessidades da mente e do corpo dessa gente. Escolhemos esta época do ano porque, entre todas, é aquela na qual a Necessidade mais se faz sentir duramente e a Abundância tem mais prazer em dividir. Qual será a sua contribuição? Que quantia posso colocar em seu nome?
Scrooge – Nenhuma.
Cavalheiros beneficentes – Prefere que o seu nome não apareça?
Scrooge – Prefiro que me deixem em paz. Já que os senhores querem saber o que penso, eis minha resposta: não festejo o Natal e não me dou ao luxo de alegrar vagabundos. Contribuo para o sustento das instituições de que falei antes, e isto é o bastante. Quem estiver passando necessidade, que procure por elas.
Cavalheiros beneficentes – Muitos não podem fazer isso, e outros preferem a morte.
Scrooge – Que morram. Ajudarão, ao menos, a evitar o excesso da população. E além do mais, desculpem, mas estou me lixando para tudo isso”.
Nada agradável, pois. Dickens amava comer. E seu amor gastronômico era uma resposta ao tempo, quando criança e adolescente, em que passou fome. Quando teve de sustentar a família, aos doze anos, numa fábrica de graxa.
Seu pai se endividava frequentemente. Por isso foi condenado à prisão. Alguns pesquisadores afirmam que, não somente o pai, mas, toda a família, exceto Dickens e uma irmã, foi sentenciada. Passou um ano na “Prisão Para Devedores”, em Marshalsea, por uma dívida de quarenta libras e dez xelins a um padeiro.
Dickens foi encarregado da tarefa de fazer dinheiro para sua família endividada.
O futuro escritor já era sensível à percepção estética do mundo, criança inteligente, e que já havia demonstrado ser criativa. Submeter-se às duras condições de um trabalho desta natureza, era para que perdesse todas as esperanças. Quase aconteceu isso. Mas, e eis o paradoxo, a terrível experiência o levou a definir sua personalidade, sua visão diante das contradições inerentes à vida em sociedade.
Dickens tinha um especial e bem proporcionado talento para defender o homem comum em suas histórias, sem resvalar para o panfletarismo militante, um estilo de escrita que eventualmente ficou conhecido como dickensiano. Seus romances despertam compaixão pelos sobrecarregados e mal pagos. Tendo vivido tempos difíceis, Dickens equiparou comida e bebida à abundância, à realização, à felicidade, sentimentos evidenciados em quase todas as histórias que escreveu.
Recordemo-nos de que Charles John Huffam Dickens veio ao mundo em 1812, na movimentada cidade portuária de Portsmouth, Inglaterra. Nasceu em meio ao cenário das Guerras Napoleônicas e cresceu em um ambiente repleto de incertezas domésticas e grandes convulsões globais.
Suas experiências durante seus anos de formação, especialmente a prisão de seu pai e seu período na fábrica de graxa, haviam marcado nele uma empatia palpável pelos oprimidos.
Não é meu propósito, no momento, neste artigo, de desenvolver uma tese socioeconômica a partir dos escritos de Dickens. O assunto aqui é comida e bebida. Mas dar uma ideia do cenário não será de todo mau. Quem já leu Dickens sentir-se-á em casa. Quem não o fez talvez se sinta tentado.
Voltemos ao Conto de Natal.
Ao ser guiado pelo “Espírito dos Natais Passados”, Scrooge volta no tempo e se encontra, de repente, diante de uma “sombria casa de tijolos vermelhos, com uma pequena torre com um catavento em cima e um sino dependurado. Era uma casa grande, mas parecia em ruínas”.
Neste lugar o avarento reencontra sua alegre irmã, Fanny. Ela o saúda de forma efusiva. É pura felicidade. Repentinamente, “o diretor da escola apareceu em pessoa, olhando o jovem Scrooge com uma condescendência feroz, deixando-o atordoado com seu aperto de mão. Em seguida, levou os dois até a sala mais velha e gelada que havia, onde até os mapas nas paredes e os globos celeste e terrestre, perto da janela, pareciam congelados de frio. Ali, desencavou uma garrafa de um vinho muito suave e fatias de um bolo muito pesado e ofereceu-os em pequenas porções a cada um dos jovens. Ao mesmo tempo, mandou que uma empregada franzina oferecesse um copo de “qualquer coisa” ao cocheiro, que agradeceu muito, dizendo que preferia não tomar nada”.
Sim, aos alunos, “vinho muito suave”; ao cocheiro, “qualquer coisa”. E o cocheiro, em sua dignidade, recusa o copo. Eis Charles Dickens em toda sua perspicácia e elegância no narrar.
Ainda em “Um Conto de Natal”, mais adiante, lemos (diria quase assistimos, quase vemos, dados os detalhes, a riqueza da descrição) o trecho em que é descrito o encontro de Scrooge com o imenso “Espírito do Natal”. O avarento havia ouvido um chamado. Seguindo a voz, chegou ao próprio quarto: “Era seu próprio quarto, não havia a menor dúvida, mas tinha sofrido uma transformação surpreendente. As paredes e o teto estavam tão cobertos de vegetação que mais parecia um bosque, com frutinhas coloridas brilhando por toda parte. As folhas verdes do azevinho e da hera refletiam a luz, como se fossem cacos de espelho espalhados por todos os lados. Um fogo potente ardia na lareira, tão forte como jamais aquela triste construção de pedra havia visto, nem na época de Scrooge nem na de Marley, ou em inverno algum do passado. Empilhados no chão, na forma de um trono, havia perus, gansos, caças, aves, pernis, grandes pedaços de carne, leitões, longas tripas de linguiça, pastelões de carne, pudins de ameixa, barris de ostras, castanhas assadas, maçãs vermelhas, laranjas suculentas, peras apetitosas, imensas tortas natalinas e vaporosas poncheiras que perfumavam a peça com um cheiro delicioso”.
O que Dickens nos oferece nesta curta passagem? Um qualificadíssimo rol de itens comestíveis. Atentemo-nos: são comidas da época. Era o que se comia, desde que se tivesse condições materiais para tanto.
Vou citar o vinho. Porém, antes é preciso fazer jus ao paladar etílico de Dickens. Sua bebida preferida era o Gin Punch. E ele elaborou sua própria receita. Gostava muito mesmo. Em cartas, chegou a firmar que tomaria desta mesma bebida durante noventa anos.
Como observa David Wondrich, uma das maiores autoridades do mundo na história do coquetel e um dos fundadores do movimento moderno de coquetéis artesanais: “poucas coisas são mais dickensianas do que uma tigela de ponche. Um grande amante de bebidas, Dickens combinou ingredientes com rara competência. Temos, sempre que bebermos sua mistura, termos consciência de que estamos bebendo o Ponche de Charles Dickens”.
Em “Um Conto de Duas Cidades” lemos: “Aqueles eram dias de muita bebida e a maioria dos homens bebia além da conta. Tão grande foi o progresso que o tempo trouxe em relação a tais hábitos, que qualquer estimativa moderada da quantidade de vinho e ponche, que um homem engoliria, no decurso de uma noite, sem detrimento de sua reputação de perfeito cavalheiro, pareceria, nos dias de hoje, um ridículo exagero”.
Mais adiante… “O dia fora de um calor opressivo e, após o jantar, Lucie propôs que o vinho fosse levado para fora sob o plátano, e que se sentassem ali, ao ar livre. Como ela era o eixo em torno do qual tudo girava, eles se acomodaram debaixo da árvore e ela levou o vinho, para especial benefício do senhor Lorry; ela se havia nomeado, algum tempo antes, como guardiã do copo do senhor Lorry. Assim, ali sentados sob o plátano, encarregou-se de mantê-lo sempre cheio”.
Impensável degustar a literatura de Charles Dickens sem levar em consideração as bebidas destiladas e fermentadas. Junto aos pratos: pães com carne de boi ou de porco. Pastéis de carne de carneiro, bolos, cafés, ostras, camarões, língua, vitela, torta de peito de pombo, laranjas e sopas.
Minha opinião crítica sobre a produção literária de Charles Dickens tem e terá sempre algo de apologético. Ciente da minha pequenez, muno-me de cuidados ao comentar a lavra dum gigante. Com eventos, vinhos, gins, ponches, chás, o escritor tece a estética da generosidade com toques gastronômicos devidamente temperados. Tudo na justa medida, não há excessos. Há quem até mesmo diga que “generosidade” é seu sistema filosófico.
O que faz da alta literatura uma alta literatura? Ela é bonita, maravilhosa e induz à constante releitura.
O sucesso de público e de crítica chega até relativamente cedo para Charles Dickens. Sua primeira novela, “As Aventuras do Sr. Pickwick”, foi publicada em fascículos pela Chapman & Hall, de março de 1836 a até novembro de 1837. A primeira edição desta novela vendeu quinhentas cópias, a última, na época, vendeu quarenta mil.
Os títulos de Dickens possuem o poder de comover, de tocar e de transformar. Quando os releio, sinto sempre a vontade de preparar um sanduíche, assar uma costela de porco, beber alguma coisa que tenha a ver, como a cerveja, o vinho, o ponche… O autor nos convida a beber e comer o que for mais fácil e o que estiver mais à mão no momento em que nos pusermos a correr as páginas de uma das suas extraordinárias obras.
Farei isso, hoje. Exorto ao improvável leitor que tente fazer algo parecido.
Santé