Por Germano Xavier (*)
Era o meu último ano em Salvador-BA quando li o livro “Bartleby, o escriturário” (Uma história de Wall Street) pela primeira vez. O ano era o de número 2004 e eu contava 19 anos de idade. De Herman Melville (o Homero do Oceano Pacífico, no dizer de Albert Camus), escritor estadunidense tido como um dos precursores da filosofia existencialista e autor da obra acima citada.
Eu “somente” havia lido o seu texto mais importante: Moby Dick, publicado originalmente em 1851 e, curiosamente, motivo para seu “desprestígio” literário quando ainda em vida. Após o deleite sentido ao ultrapassar as muitas páginas e as águas infindas do oceano, como mais um trpulante do navio baleeiro Pequod na fantástica busca à enfurecida baleia branca, a história do excêntrico escriturário Bartleby me ocorreu às vistas.
Deitado no sofá da sala, ali no 201 do bloco 61, no Conjunto dos Comerciários, numa tarde amena, li de um só pulso o impactante livreto que, segundo Jorge Luis Borges (meu escritor preferido), é uma das obras literárias mais relevantes da humanidade. Digo impactante porque, apesar de curto o enredo, foi após o findar da leitura que tive a noção perturbável de como um “não”, enquanto resposta, pode ter seu sentido salvaguardado e justificado em nossa humanidade quando nos encontramos diante de certas situações convencionadas como corretas e básicas dentro das relações sociais.
O conto é narrado por um velho advogado que trabalha no bairro nova iorquino de Wall Street. Com o aumento da demanda de trabalho dentro do estabelecimento, o advogado-narrador, tentando cumprir com o seu quinhão, percebe que os seus dois ajudantes oficiais, Nippers, Turkey, assim como o menino Ginger Nut não conseguiriam dar conta das novas empreitadas e, assim sendo, resolve contratar mais uma pessoa para acelerar as atividades. Depois de colocar anúncios nos jornais, Bartleby surge à porta destinado a ocupar a vaga de copista de documentos estritamente burocráticos:
“…palidamente limpo, tristemente respeitável, incuravelmente pobre!” Conta-nos, o advogado-narrador, que nenhuma pessoa lhe causou tanta estranheza e lhe despertou tantos sentimentos como o jovem Bartleby.
Desinformado quase que por completo a respeito do novo contratado, segue dizendo:
“Bartleby foi um daqueles seres sobre os quais nada é passível de confirmação.”
Tudo estava indo bem, Bartleby aparentando ser um sujeito por demais responsável com os seus afazeres. É quando ocorre o primeiro susto. Requerido pelo chefe a conferir todo o trabalho que houvera feito, Bartleby calmamente responde:
“Prefiro não fazer.”
Após o primeiro desordenamento provocado pela inesperada resposta do novato, uma série de alterações morais, psicológicas e de humor são desencadeadas nos personagens que compõem a trama.
“… havia algo em relação a Bartleby que não apenas me desarmava estranhamente, como, de um modo maravilhoso, tocava-me e desconcertava-me.”
Num misto de piedade e inconformismo, o advogado-narrador começa a ser atingido de diversas formas pela personalidade obscura e misteriosa de Bartleby.
“Não são raros os casos em que um homem intimidado de uma maneira irracional e sem precedentes tenha suas crenças mais básicas abalads.”
“Nada irrita tanto uma pessoa séria quanto uma resistência passiva.”
E Bartleby, numa resistência estóica a qualquer pedido, seguia desafiando “sem desafiar” – porque não era verbalmente ríspido, agindo sempre com o extremo da paciência – a ordem natural das coisas.
“Eu me sentia estranhamente disposto a provocar uma nova oposição de sua parte para arrancar alguma fagulha de raiva dele a que eu pudesse responder da mesma forma. Mas era o mesmo que tentar fazer fogo esfregando os nós dos dedos numa barra de sabão Windsor.”
Certo dia, indo a um culto numa igreja próxima, o advogado resolveu passar antes no escritório. E, para a sua surpresa, lá encontra Bartleby. Detalhe: não era dia de expediente. Bartleby conseguira adentrar não só a alma e mexer com as faculdades mentais de todos os seus convivas, mas agora havia tomado de vez o espaço físico do lugar, o que causava ainda mais confusão no arranjo das reflexões inerentes a ele feitas pelo chefe.
“Porque eu considero castrado um homem que permite tranquilamente que seu funcionário lhe dê ordens e diga-lhe para retirar-se do seu próprio imóvel.”
Mas, ao mesmo tempo:
“Não se podia pensar por um segundo sequer que Bartleby fosse uma pessoa imoral.”
“Ao relembrar todas essas coisas e compará-las com o fato recém-descoberto de que ele fizera de meu escritório sua residência fixa e lar, e sem esquecer de seus caprichos mórbidos; ao relembrar isso tudo, um sentimento de prudência começou a tomar conta de mim.
“Eu poderia oferecer compaixão ao seu corpo, mas não era seu corpo que lhe doía; era sua alma que sofria, e a sua alma eu não conseguia alcançar.”
Diante de tal dérbi, o chefe decide demiti-lo. Mas ouve a resposta:
“Prefiro não ir.”
“Ele era mais um homem de preferências do que de conclusões.”
Beirando a estafa, lutando contra sua própria cólera e já por demais entregue ao desconhecimento de alguma provável solução para o caso de seu funcionário, o advogado decide, ele próprio, distanciar-se de Bartleby.
“… um errante, que se recusa a sair do lugar?”
“Já que ele não vai me deixar, eu devo deixá-lo.”
…
O final não cabe a mim contar, porque não é meu desejo tirar de você, leitor, o prazer da plena leitura. O certo é que quando me perguntam se eu já li a história de Bartleby, digo que sim e ainda complemento: foi lendo este livro que aprendi a muitas vezes dizer um “não” como resposta. O condensado “prefiro não” (no original: I would prefer not to) evoca um tempo reflexivo de que o ser humano está demasiado carente atualmente.
Engendrado numa mecânica social sistemática, onde as relações humanas se dão através de valores baseados na eficácia de sua produção, ligados a uma forma desumana de vida, capitalista ao extremo, o simples gesto de não aceitar fazer o que é requerido acaba se transformando numa metafórica afronta à “entidade superior”, detentora do poder. Sófocles, dramatrugo grego, já dissera certa vez: “Há algo de ameaçador num silêncio muito prolongado”, e o silêncio de Bartleby, apesar de aparentar-se simples, funciona como o grito mais operante, o berro último contra o absurdo dos modos “normais” de se viver e de se relacionar, a reação mais pura diante de uma barbárie metamorfoseada em rotina, quase sempre camuflada e desconectada da verdadeira essência do ser humano.
O livro é uma ode à rebeldia coletiva, partindo do princípio de que somente através de uma mobilização individual somos capazes de reverter os quadros de subalternidade, desrespeito e desassossego a que estamos diariamente sujeitos. Vale lembrar o contexto histórico ao qual o livro está unido, época de afirmação do modo de produção capitalista. Aí me recordo de um dia, numa aula no curso de jornalismo, quando um professor disse-me: “Germano, seu silêncio é mais perturbador que todo o barulho da sala”. De chofre remontei Bartleby dentro de mim, com fixas peças de obstinação e verdade. Naquele dia me senti na pele daquele jovem escriturário de Wall Street, silencioso em sua revolta interna, explodindo como um vulcão ativo suas ânsias mais vorazes, perscrutando da vazia paisagem na janela o sentido mais íntimo destinado ao verbo “SER”.
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