O articulista Hernan Centurion faz uma viagem que, por certo, já está fazendo profundas transformações em vida que serão para sempre. Na semana passada, aqui neste espaço, ele começou a narrativa de sua viagem a Santiago de Compostela, no noroeste da Espanha, para visitar a Catedral onde está o túmulo de São Tiago Maior, um dos 12 apóstolos de Jesus, martirizado no ano de 44, junto a outros dois discípulos, Teodoro e Atanásio. Aqui ele segue com a parte II do seu relato. Boa leitura.
Por Hernan Centurion (*)
Acordei cedo devido ao barulho das obras da nova linha rosa do metrô aqui próximo à Praça da Liberdade no Porto, onde há uma bela estátua de D. Pedro I do Brasil e IV de Portugal, montado sobre um suntuoso cavalo. Hora de conferir se as roupas lavadas na véspera estão secas, preparar a mochila e arrumar-me para tomar um cafezinho para aquecer.
Dia lindo, céu de brigadeiro, temperatura bem amena por volta dos 15 graus. Já vejo nas ruas a movimentação de algumas dezenas de peregrinos portando suas mochilas e cajados em pleno curso das suas respectivas jornadas. Aproveito que tenho tempo disponível e, antes de ir à estação de trem São Bento com destino à cidade lusitana Valença fronteiriça à espanhola Tui, dou uma passada na Catedral da Sé do Porto, onde encontro, logo bem à sua frente, um pequeno marco com a concha símbolo do Caminho de Santiago de Compostela, cuja lenda nos remonta ao traslado do corpo do apóstolo Tiago, o Maior, pelo Mediterrâneo, contornando o estreito de Gibraltar até o Norte da Galícia, local em que ele tivera pregado outrora e, posteriormente, sido sepultado.
Engraçado que logo hoje, no Domingo de Ramos, porta de entrada da Semana Santa, quando Jesus aclamado adentra na cidade de Jerusalém, eu, na minha insignificância, chego a Tui, onde efetivamente iniciarei meu caminho.
Depois de uma viagem tranquila de cerca de 2 horas, desço na estação de Valença, cidade das mais setentrionais de Portugal e, poucos metros adiante, deparo-me com mais um marco no qual encontra-se grafada a distância a ser percorrida doravante, 117 Km. Agora o meio de transporte dar-se-á pela força propulsiva das minhas próprias pernas, num cenário cinematográfico de tirar o fôlego. Atravesso a ponte centenária sobre o rio Minho e visibilizo uma cidadela de pedras medievais, antiga capital galega, com ruelas e becos charmosos e Catedral imponente. Depois de uma caminhada leve de 3 km, aprecio a suspirante paisagem bucólica logo após uma curva, composta por um riacho de não mais que 2 metros de largura, cujas águas percorriam, placidamente, soando tal qual uma sinfonia perfeita, bem dentro de um pequeno pasto verdejante, de não mais que 300 m², confinando ovelhas de lã alva a pastar com suas crias. Lembro-me, de súbito, da música do poeta Gilberto Gil: “A paz, invadiu meu coração, de repente me encheu de paz…”
Já passa das 13 horas. A fome deu sinal de alerta, já que meu desjejum não passou de 2 cafés com 1 pastel de nata. Sento-me, pois, num pequeno bistrô de “tapas” e saboreio a inusitada culinária galega, ou seja, uma suculenta costela de porco assada lentamente por 8 horas, harmonizada com uma taça de malte fermentado (popularmente conhecido por chopp) da marca espanhola Estrela da Galícia, enquanto inspiro-me para escrever parte deste singelo roteiro.
Interessante é como, durante o percurso, começamos a ficar mais atentos ao mundo que nos cerca, procurando, consequentemente, as setas amarelas que indicam nosso rumo. Metaforicamente podemos correlacionar à atenção que deveremos ter ao agir e falar, medindo, respectivamente, nossas ações e palavras, a fim de não fugirmos do prumo, que na Maçonaria representa a joia do 2º vigilante, guardião da coluna da beleza, uma das quais sustenta nossos trabalhos esotéricos e que serve para nos recordarmos da retidão e integridade que devem nos guiar, na tentativa, pois, de alcançarmos o caminho da verdade, sem tropeçarmos ou perdermos o rumo.
Encerro este diário por hoje, tentando compreender o artista Juan Oliveira que criou uma bela escultura de bronze que acabo de encontrar ao anoitecer no Centro de Tui, denominada Glorieta de Vigo. Ela retrata três cavalos a galopar, mostrando-me nas entrelinhas, ou melhor, nos seus contornos, que devemos sempre caminhar com os olhares voltados para frente, enquanto os concorrentes combatem entre si logo atrás. Todo cuidado é pouco!
Buenas notches a ustedes!
Que noite mal dormida. Tal insônia tomou-me talvez pelo fuso-horário de 1 hora adiantada na Espanha. Acordo ainda com o quarto escuro e extremamente frio, digo gelado, em se tratando de um sergipano acostumado com temperaturas equatoriais. Isso se deve a uma massa de ar polar que acabara de chegar a Galícia e que fez o clima mudar ao avesso, com temperaturas médias de 12º C e grande tendência a despencar ainda mais, além de muitas nuvens num céu de tons cinzas.
Após um desjejum leve, dessa vez um apetitoso sanduíche de presunto e queijo de cabras espanhóis, acompanhado de uma xícara cheia de café coado, parto para o próximo destino: o Porriño, por trilhas e pontes de pedra floresta adentro, que remontam ao período histórico romano, circundadas por uma flora regional típica da estação vigente, isto é, do início da primavera europeia.
Interessante é que estava um tanto apreensivo caso viesse a chover e, ao acompanhar as últimas notícias do clima na noite de ontem, comentei, em um grupo social composto só por peregrinos sergipanos que já fizeram ou farão o Caminho, sobre essa problemática das possíveis precipitações e do mau tempo. Recebo então a seguinte resposta de um amigo e grande incentivador: ”Hernan, peregrino não reclama, só agradece”. Frase que a princípio pareceu-me chacota, todavia revelou-se envolta por um significado profundo e poder indescritíveis. Foi com ela na mente que dormi na véspera e incorporei-a durante os poucos mais de 17 km percorridos de muita chuva, podendo, assim, transpor esse (até então) desafio, com uma grande descontração que contagiou alguns que também caminhavam ao meu lado.
Muitas vezes reclamamos por poucas e ínfimas adversidades, enquanto somos agraciados com muitas dádivas e bênçãos que apenas uma minoria as possue. Enquanto nos queixamos da vida, deixamos de viver, apenas sobrevivemos, sem sequer aproveitá-la e, consequentemente, esquecendo de aprender e evoluir, contaminando com fluidos negativos aqueles com quem convivemos. Essa lição do caminho, ou melhor, essa prova prática, certamente foi crucial para meu bom desempenho no percurso que acabo de completar.
Chego, enfim, ao albergue. Hoje é dia de compartilhar não somente as dependências da estada, como também experiências de vida!
Bom descanso.
Sobre o Caminho de Santiago de Compostela existe uma máxima que já havia escutado e confirmei-a in loco: nunca estamos sozinhos, ou seja, sempre protegidos pelo GADU e ladeados por outros tantos peregrinos. Como não poderia deixar de ser sempre que viajamos mundo afora, conheci e fui agraciado com a companhia de uma brasileira natural de Cascavel no interior do Paraná, durante meu percurso de hoje. Senhora meiga e simpática que habitava com sua família, a saber: marido e um filho, em Londres, cidade em que aportaram há 7 anos com o sonho de vencerem pessoal e profissionalmente.
Conversamos sobre espiritualidade, religião e um pouco de nossas vidas e famílias, cujas histórias se assemelharam em vários aspectos, já que compartilhamos os mesmos propósitos e valores e, principalmente, procurávamos respostas aos enigmas que o mundo nos impõe. O colóquio foi deveras profícuo, tanto é que fizemos os 17 Km num piscar de olhos, percorrendo por florestas e montes, regados por relatos interessantes e edificantes, logo após alguns dias em profundo silêncio. Pareceu-me um verdadeiro “divã” a céu aberto, numa troca de experiências que indubitavelmente ficará registrada no diário do caminho.
Nesse trecho final do percurso, chamou-me atenção quando a ouvi confidenciar-me que depois dos anos até então vividos na Europa – faturando muito bem, com uma rotina avassaladoramente intensa no trabalho – sentia uma profunda solidão e ausência dos parentes e amigos, dos momentos de lazer, dos festejos regionais e da tranquilidade que ficaram para trás no Brasil. A minha mente, em profunda atividade, fez-me subitamente recordar das aulas de Literatura com o saudoso professor Landisvalte (acho que é assim que se escreve), quando nos ensinou os versos que iniciam o poema “Meus 8 anos” de Casimiro de Abreu: “Oh! Que saudades que tenho/ da aurora da minha vida/ da minha infância querida/ que os anos não trazem mais!” Voltei ao diálogo quando ela até me confessou que pensava muito em voltar para sua Terra Natal, entretanto ainda receava não manter o mesmo padrão financeiro.
Após escutá-la atentamente, disse-lhe que procurasse as respostas dentro si mesma, que o caminho seria o instrumento a ajudá-la nas indagações que tanto lhe afligiam e que a verdadeira felicidade se encontrava nos pequenos detalhes percebidos com o olhar atento do coração, como nos momentos corriqueiros com a família, confraternizando com os amigos, ajudando o semelhante desconhecido, culminado, assim, na construção de uma herança de bondade que será transmitida para os descendentes e não somente numa recheada conta bancária, como muitos erroneamente ainda acreditam.
Por fim, comentamos sobre a finitude da vida e de que maneira encarar a morte, citando o best seller “A morte é um dia que vale a pena viver”, livro escrito pela médica Ana Claudia Arantes. Chegamos ao consenso de que a morte é uma transformação natural e enriquecedora do ser humano, mormente para aqueles que semearam a boa semente, a qual gerou bons frutos.
Despedimo-nos numa cafeteria bem no centro de Redondela, logo em frente ao belo Pazo Vilavella e segui o meu caminho ao albergue novamente sozinho, ou melhor, ladeado pelos outros tantos peregrinos desconhecidos.
A você, querida peregrina Thatiana, onde quer que esteja, resta-me desejar um “Buen camino”.
Apesar do albergue que pernoitei ontem, em Redondela, ser bem aconchegante e seus proprietários terem sido bons anfitriões, muito gentis, percebi, claramente, que nem todos os peregrinos a Compostela estão na mesma condição. Vislumbro que há quem faça o caminho porque gosta de trilhas e procura, exclusivamente, exercitar-se; outros por ecoturismo; e alguns por modismo. O que presenciei na noite de ontem foi algo nesse sentido, quando deparei-me com um grupo de jovens rapazes e moças que estavam curtindo uma festa privativa regada a cerveja e música alta até tarde da madrugada na copa do albergue, num clima de algazarra, trazendo, pois, certo transtorno àqueles que precisavam de uma boa noite de sono e eu era um destes. Com toda resiliência que o caminho exige, acabei metaforicamente caindo do beliche meio que agoniado, querendo sair daquele local antes mesmo que raiasse o sol , visto que não estávamos “vibrando” na mesma sintonia.
Às 7h30 já percorria o caminho, até aqui o mais longo e desafiador, entretanto, extremamente prazeiroso, haja vista as belas paisagens, bosques de pinheiros e eucaliptos, vilarejos, córregos, pequenas cascatas, aquele cheiro de “mato molhado”, além do fundo musical composto pelas gotas da chuva colidindo contra o chão e a correnteza dos riachos envolvendo as rochas assentadas nos seus leitos.
Encontrei minha compatriota Thatiana que me acompanhou novamente pelo trajeto. Interessante como é frequente esses encontros e desencontros e a interação com os mesmos peregrinos dos percursos anteriores. Dessa vez, conheci uma simpática e ligeira alemã de Frankfurt, uma argentina engraçada de Buenos Aires, um guia português de Lisboa, torcedor do Benfica, enfim, ratifico o que já comentei anteriormente, não estamos sozinhos por aqui.
Acontece que hoje senti levemente a parte física, sobretudo as pernas quando na subida dos vários morros e ladeiras, entretanto em nada abalou-me a vontade de chegar ao destino traçado. É fato que, numa jornada inusitada como esta, nosso corpo poderá padecer de alguma maneira, por mais que achemos que somos fortes e preparados. O que vale realmente é a vontade e o poder da mente em usar o sofrimento físico como combustível para manter-nos firmes no caminho, não desistindo na primeira bolha na sola do pé, dor na panturrilha ou garganta irritada pelo ar descomunalmente gelado. O que nos conforta é a grata recompensa, por exemplo, de emocionar-se às lágrimas ao adentrar à capela da Virgem Peregrina de Pontevedra e admirar, sobre o altar-mor, a incrível e inenarrável imagem de Nossa Senhora.
Estou quase no meio desta aventura. É hora de ir à missa na referida capela e orar, pois peregrino “raiz” não reclama, só agradece.
Obrigado, minha Mãe do Céu! Grato São Tiago!
O clima ajudou e a chuva deu uma trégua pelos 10 km iniciais de Pontevedra a Caldas de Reis, não obstante senti extrema falta da minha rotina habitual e, sobretudo, da minha família. Meus pais que por mim se doaram, minha dulcíssima esposa que nunca desistiu de mim apesar dos percalços, meus filhos, combustível que nutre minha vontade de viver cada dia mais e melhor. Vocês todos são o amanhecer que traz luz ao meu caminho. Se o céu da Galícia está cinza, minh’alma se ilumina pelo seus sorrisos que agora vejo claramente em minha lembrança.
Meu coração palpita forte e a mente, de imediato, traz-me à tona recordações da minha saudável infância, das brincadeiras no quintal das casas das minhas saudosas avós, dos tempos e colegas do colégio e faculdade, do início do namoro com aquela que veio a ser minha atual esposa, do nascimento um tanto atribulado de Henriquinho e da vinda do meu caçula Osorinho. Momentos únicos do passado longínquo que aparecem e vão como um sopro efêmero e que fortuitamente surgiram na minha memória aqui, bem na metade desta jornada transformadora.
Os tão comentados pensamentos que emanam no caminho são como bálsamos que lenta e suavemente banham o âmago da minha existência e mostram-me como a felicidade existe e está tão perto de mim, de maneira que os olhos físicos não podem enxergar, somente a Luz que ofuscou Paulo na estrada de Damasco poderia demonstrar.
A mim traz uma paz avassaladora, eleva o espírito tão próximo ao Divino como jamais sentira em 44 anos de vida. Faz-me, pois, derramar lágrimas de ternura, aliviando todas as angústias, dores ou quaisquer adversidades.
Bem aventurado aquele que entendeu o propósito da vida, que não se mede, não se compra, muito menos está à venda, conquista-se quando se pratica o bem e exerce a palavra de Deus, a fonte fecunda de amor incondicional, que proporciona uma explosão de júbilo no interior de quem o busca.
Chego na pitoresca cidade de Caldas de Reis de modo diferente. Talvez a ficha caiu… será?
Hoje não quero falar do caminho físico, das paisagens ou experiências externas, gostaria apenas descrever pouco das memórias que invadem a mente, assim como os sentimentos que escancaram as portas do meu coração.
Emocionado encerro por aqui, no silêncio frio do quarto do hotel.
Meu amor por vocês transborda.
Esse é o caminho!
Estou quase no fim do “camino”. Santiago de Compostela está a pouco menos de 30 Km. Depois de 5 dias de muita chuva, frio e céu cinza, fomos agraciados com a aparição do astro-rei: o Sol, com toda sua força e vigor.
Muito mais que fonte de luz e calor, sua importância para a vida no planeta vai muito além do que podemos imaginar, influenciando a vida dos animais e vegetais e até do nosso comportamento, trazendo consigo alegria e contentamento.
Como nunca dantes foi tão prazeroso, para mim, sentir no rosto cansado, úmido e frio o brilho e calor dos incipientes raios solares que surgiam entre nuvens que se dissipavam, massageando minha pele, renovando os ânimos e apontando com mais afinco o caminho a ser percorrido.
Cultuado em várias civilizações e religiões pelos quatro cantos como Rá no Egito, Hélio na Grécia ou Surya no hinduísmo, o astro-rei sempre esteve prioritariamente em pauta desde os primórdios, descrito no Antigo Testamento, mais precisamente no livro dos Gênesis, assim como no Evangelho de João, quando o associa a Jesus Cristo, reafirmando ambos, como fontes de vida verdadeira e plena. Só quem busca sua Luz, encontra-la-á. No caminho não seria diferente. Aqui as luzes solar e divina estão agora tão próximas, basta-me, doravante, segui-las.
E assim o mundo foi criado, a vida estabelecida e nosso destino traçado.
Pernoitarei em Padron, cidade que remonta ao Império Romano, local onde haveria aportado o barco com os restos mortais de São Tiago trazidos de Jafa no Oriente Médio.
Buen camino
A inquietude me consome, posto que me encontro ansioso pela chegada na sonhada Igreja que guarda o túmulo de Tiago Maior, apóstolo de Jesus. Entretanto, durante este longo trajeto de algumas centenas de quilômetros, o que de fato importa é o aprendizado assimilado e as boas histórias nele vividas.
Como costumeiro, na noite passada saí do hostel, despretensiosamente, para jantar uma comidinha mais leve e eis que me deparo com algo difícil de narrar, ou seja, uma encenação da Paixão de Cristo em plena Igreja de Santiago de Padron, às margens do rio Sar. Ruas tomadas pela procissão que lindamente descrevia o sepultamento de Cristo após ter sido retirado da cruz, num coordenado compasso, ao som da marcha fúnebre, fato de emocionar todos os espectadores ali presentes.
Pelas ruelas e praças bem perto, havia também tendas enormes que se assemelhavam ao que costumamos ver no Brasil, os food parks, onde serviam, intensamente, polvo cozido ao molho curry, costelas de porco com salsa galega, vinhos tinto e branco locais. Parecia muito com os festejos juninos da minha Terra Natal, o amado estado de Sergipe, tudo muito regado a conversas e boas gargalhadas e fartas comidas e bebidas. Fui agraciado, realmente, por uma inesquecível aula de fé cristã e cultura galega que só se vive, não se explica facilmente, momentos estes que estarão selados na “credencial de peregrino” da minha parca memória.
Acordo hoje um pouco mais tarde, ainda sentindo um pouco do vinho tomado a mais. Hora de preparar a minha companheira, a mochila, para mais uma vez, seguir pela estrada fria e chuvosa.
Estou quase chegando no trecho final deste imenso ponto de corte, divisor de águas, assim dizendo, marco na minha evolução como ser humano e espírito. Em pouco mais de uma semana provei experiências que jamais teria dantes imaginado e que, se é fato que escutei o chamado divino, aqui estou, cansado, mãos frias, face molhada, um pouco ofegante, pés doloridos, silhueta mais fina, não obstante feliz, em êxtase d’alma.
Paro para repousar a 7 Km de Santiago, na pacata Aldea Ventín em Milladoiro. Amanhã será o “gran finale”, com muita fé e ajuda de Jesus Cristo Ressuscitado, estarei em Santiago de Compostela.
Torçam por mim que rezarei por cada um de vocês.
Anoitece nas imediações de Santiago de Compostela e, na solidão do quarto de hotel, em profunda reflexão, logo depois de percorrido quase toda a trilha e das revelações que o Caminho de Santiago me proporcionou até então, fui mais uma vez surpreendido hoje ao falar por vídeo-chamada com minha família, quando interrompido por um choro copioso, que traz um sentimento um tanto reconfortante e deveras prazeroso, que lava a alma e aquece o coração.
Então prontamente me questiono: por que tenho caído tanto em lágrimas? Lá vai o médico querer elocubrar que, fisiologicamente, a produção da lágrima é fundamental para lubrificação da córnea, camada mais externa do globo ocular, auxiliando-o também na sua proteção, removendo, isto é, lavando tal membrana da presença de corpos estranhos, mais conhecidos como ciscos.
Por outro lado, vem-me à mente a expressão jocosa, “lágrimas de crocodilo” que significa aquele que age com hipocrisia e falsidade, por conseguinte, alguém que não merece nossa confiança.
Todavia o que pretendo confidenciar aqui nesse particular desabafo, finalizando minha missão na Galícia, não passa pela questão do choro como proteção contra partículas ou reação a uma inflamação ocular, às conjuntivites, tampouco o que está embutido na linguagem metafórica que simboliza, por exemplo, falsídia ou fingimento.
Certamente não! O choro que diariamente me toma é fruto de um sentimento estranhamente inusitado, não sei bem, dá alívio, paz, mansidão, contentamento, enfim, faz o coração palpitar, as mãos tremerem, a voz embargar, o rosto enrubescer e os olhos cerrarem. Surge toda vez que rebobino a fita da trajetória de minha vida, das escolhas tomadas, dos percalços enfrentados, dos erros quer por ação ou omissão reconhecidos, isto é, tudo isso resumido em algo maior, uma profunda gratidão por ter sido abençoado em possuir mais do que mereço, perante minha insignificância no cosmo.
Este Caminho parece-me um imenso confessionário ou divã sem intermediários, padre ou terapeuta, respectivamente. Conectamo-nos com Deus e conosco mesmos a cada instante, quando tais memórias da vida pregressa aparecem abruptamente sem motivos, como se fossem frutos dos planos divinos. Nada é por acaso.
Isso talvez se caracteriza pelo que tanto ouvimos: ressignificar, ou seja, “pôr em pratos limpos” (popularmente falando), reordenar, reconduzir, lapidar, desbastar nossas condutas, selando um compromisso de fidelidade inicialmente para consigo, bem como para com a humanidade e todo o universo. A verdadeira transformação parte do âmago de cada indivíduo, da reconstrução do templo interior, pois, somente assim, poderemos contagiar nosso entorno, emanando energias positivas, almejando dias melhores e plantando a boa semente para usufruto das gerações vindouras.
Pode parecer até campanha a santo ou até a posse para o cargo de beato. Justamente a intenção é diametralmente contrária. Gostaria sim de propagar que devemos trabalhar a autocrítica, a fim de que reconheçamos nossas falhas, fraquezas e vícios, tornando-nos, pois, mais alertas e vigilantes a cada palavra proferida ou atitude tomada, sempre com a palavra perdão na ponta da língua, evitando-se, assim, danos maiores para nós e, sobretudo, nosso semelhante, já que toda ação gera uma reação. Somos humanamente imperfeitos, em busca constante da Perfeição. Exponho essa experiência como um testemunho sincero de um singelo e incipiente peregrino, que partira de um lugar distante acreditando na reforma interior e chegou ao destino cônscio disso.
Há muito que ser feito. Não paremos de trilhar o caminho da vida, onde quer que estejamos, uma vez que a estrada é sinuosa, porém, quem a percorre atento, seguindo as setas do destino divino, saberá aprender e certificar-se quão perfeitamente incrível é Deus, o Grande Arquiteto do universo.
Acabo por aqui com a visão embaçada e garanto que não foi um cisco atrevido.
Para mim o Caminho de Santiago de Compostela é surpreendente e está chegando ao fim com um gostinho de quero mais, encharcado não somente pela chuva torrencial que caiu, não obstante por incontáveis lágrimas de profunda gratidão derramadas por mim e vários outros peregrinos.
Um orgulho por você, amado irmão